São Paulo, Domingo, 26 de Dezembro de 1999


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OS NOVOS DEZ MANDAMENTOS

Robert Kurz


1. Não traficarás com órgãos humanos.
2. Não mandarás traçar o mapa astral de
teu cachorro.
3. Não comerás de pé.
4. Não farás jogging no acostamento.
5. Não pensarás com outro órgão senão
teu cérebro.
6. Não urinarás na água da banheira.
7. Não telefonarás sentado no vaso
sanitário.
8. Serás simpático com os extraterrestres.
9. Não farás sexo no elevador.
10. Não vestirás a calça pelo avesso.

Quanto menos se fala de crítica social, mais estridente é o apelo da empresa ética. Cada qual tem de equacionar as contradições da ordem dominante em seu próprio íntimo e contorná-las eticamente em sua ação individual. Para isso é que existem os mandamentos. Mas, de todas as sociedades, a capitalista é a menos talhado para a ética. Nela vale tudo (mas tudo mesmo, sem exceção), com a ressalva do cálculo econômico nu. Quando os custos parecem elevados demais, mesmo os mandamentos elementares não são cumpridos. Por outro lado, a pessoa não se peja de cometer os pecados mais atrozes, caso rendam muito. Para dissimular seu analfabetismo social, outrora o burguês atentava estritamente para as formalidades. Mas na cultura trash pós-moderna, não há mais nem sequer a fachada do bom gosto e da boa conduta; mesmo a etiqueta formal do barão Von Knigge sumiu. Ora, o sujeito que aparece para almoços de negócios vestindo fraque de "smoking" e calças de abrigo, este vende a própria mãe para traficantes de órgãos ou serra o cônjuge em pedacinhos para embolsar o seguro de vida. Dez mandamentos para um tipo assim só podem ser uma ironia. Mas não uma ironia cúmplice, na qual o homem pós-moderno vê retratadas suas próprias obsessões inocentemente. E sim uma ironia perversa, da qual aflora o que ele realmente é: um bárbaro de segunda linha, tão infantil quanto tecnicamente aprovisionado, supersticioso, parvamente egoísta e ao mesmo tempo agressivo consigo mesmo e autodestrutivo. Numa palavra: uma criatura pós-civilizatória. Portanto a mensagem é esta: quem precisa de tais mandamentos já é um caso perdido.


Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor, entre outros, de "O Colapso da Modernização" (Ed. Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Ed. Vozes).
Tradução de José Marcos Macedo.


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