São Paulo, Domingo, 26 de Dezembro de 1999


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OS NOVOS DEZ MANDAMENTOS

Kenneth Maxwell


Eu havia esquecido quais são os dez mandamentos, devo confessar. Então peguei uma antiga Bíblia e os procurei em Êxodo, 20. Surpreendeu-me como minha memória havia confundido Moisés com as pregações do Sermão da Montanha, que então procurei em Mateus, 5. Não sou uma pessoa religiosa, o que explica minha ignorância, mas, depois de relembrar, continuei lendo, perdido na maravilhosa linguagem da grande edição do rei James, e perguntei-me por que demorei tanto a fazê-lo. Suponho que foi uma reação à experiência de ser obrigado a frequentar o culto religioso pelo menos quatro vezes por dia no internato, dos 9 aos 19 anos. Mas isso faz 40 anos e não serve como desculpa; então peguei meu Shakespeare, que também éramos obrigados a ler, e com cujas peças me apresentava todos os anos no teatro da escola, e percebi que foi uma dádiva ser imerso nessa linguagem e submetido a ela quatro vezes por dia durante dez anos, e como essa experiência deve ter influenciado profundamente minha escrita. Assim, meu primeiro mandamento é voltar a ler os clássicos, não por dever, mas por prazer.
Os mandamentos originais nos dizem para honrar pai e mãe. Perdi meu pai neste ano. Eu tinha viajado ao Brasil e, assim que desci do avião em Nova York, recebi a notícia. Fora algo súbito, inesperado, e voei em seguida para a Inglaterra. Na pequena cidade de Devon onde ele morava, tudo parecia dickensiano, íntimo e notavelmente sem mudanças no que se refere às questões importantes como vida e morte. Eu estivera em Belo Horizonte na véspera de deixar o Brasil, dando uma palestra sobre a Inconfidência Mineira. Antes, havia caminhado até o Palácio da Liberdade para uma agradável reunião com Itamar Franco e, depois, fui convidado para jantar com alguns de seus partidários políticos, velhos nacionalistas decididos a combater o "sociólogo paulista" do Planalto com todos os meios legítimos disponíveis.
Comemos carne, tomamos uísque escocês e fiquei convencido de que eles estavam realmente dispostos a fazer o que diziam. Um deles havia perdido o filho, e era sua primeira noite fora de casa. Conversamos sobre o fato, sem imaginar que na manhã seguinte meu pai morreria. Então, meu segundo mandamento é respeitar a tradição, não para exercer reação, mas para que, nas ocasiões de grande perda, sejamos capazes de agradecer pela vida com palavras que gerações de falecidos têm considerado reconfortantes.
Devo terminar o que começo. Tenho demasiados projetos, livros, artigos, obrigações inconclusas. Meu terceiro mandamento é terminar tudo isso.
Quarto: agradecer às pessoas com mais frequência pelo que fazem por mim. Tenho essa intenção, é claro, mas intenções não bastam. Não é bom esperar. Devo fazê-lo.
Quinto: atender aos telefonemas.
Sexto: tentar ser filosófico em relação às organizações sem fins lucrativos. Eu trabalho em uma delas. Lembro que alguns anos atrás estava no elevador da Bolsa de Nova York com um grupo de executivos de uma fundação, quando entraram dois corretores detestáveis. Eles nos olharam e disseram em voz alta que estava "cheirando a falta de lucros". Sei o que queriam dizer.
Assim como as universidades, as entidades sem fins lucrativos sofrem da praga das "divergências menores", um fenômeno que cria tempestades em copo d'água e gera deficiências grotescas e notáveis antagonismos pessoais, ressentimentos e ciúmes. Eu odeio isso, mas acho que tenho que me acostumar.
Sétimo: eu gostaria de escrever um livro que realmente dê dinheiro. Poderia livrar-me da necessidade de trabalhar numa entidade não-lucrativa.
Oitavo: eu pensava que os dez mandamentos diziam alguma coisa sobre perdoar nossos inimigos. Fico aliviado ao ver que minha edição do rei James não o diz. Tento perdoar os inimigos, mas, francamente, acho difícil. Eu não tinha percebido a que ponto isso é uma característica familiar. Os Maxwell, originalmente um clã das planícies da Escócia que roubava gado e assaltava viajantes, eram famosos, soube recentemente, por jamais esquecer, muito menos perdoar. Parece que os Maxwell e os Johnson, outro clã das fronteiras, travaram uma luta sangrenta durante várias gerações, ao longo de séculos, e enfeitavam suas casas com a pele arrancada dos inimigos. Portanto fico aliviado por saber que meu justificado antagonismo contra alguns brasilianistas tem origem histórica. Mas sei que isso é errado e tentarei melhorar.
Nono: vou fazer mais exercícios. Adoro nadar, mas no lugar onde vivo a piscina congela durante três meses. Preciso encontrar um esporte de inverno que me agrade e seja prático.
Décimo: devo ir ao Brasil com mais frequência. Quando deixei o Brasil, após uma estada de dois anos na década de 60, pensei que voltaria logo e com frequência. Mas não aconteceu. O regime militar tornou impossível durante algum tempo, depois me envolvi em outros assuntos. Houve uma longa lacuna de dez anos antes que eu voltasse, e agora não é fácil escapar pelo tempo necessário para uma temporada razoável. Numa recente resenha de um de meus livros, Frederic Mauro disse que escrevo "du haut de son observatoire new yorkais" (ele falava sobre Portugal, na verdade, e não sobre o Brasil, o que é um consolo). Mas esse é certamente um problema. Como estudante, no Rio, eu desprezava aqueles estrangeiros sabichões que passavam alguns dias lá e falavam autoritariamente sobre todos os assuntos, e prometi nunca me tornar um deles. Como voltei a abordar assuntos brasileiros, devo lembrar minha resolução da juventude.


Kenneth Maxwell é historiador inglês, autor, entre outros, de "A Devassa da Devassa" e "Pombal - Paradoxos do Iluminismo" (ambos pela Paz e Terra).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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