São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2002

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A necessidade de representação

Segundo o ensaísta, para que a humanidade se adapte aos novos tempos será preciso ou relegar a democracia a um plano abstrato ou reinventá-la

por Manuel Castells

A esta altura, cada qual tem sua opinião sobre a globalização. Esse é o principal mérito do movimento global contra a globalização: ter posto na pauta do debate social e político algo que se apresentava como o caminho único e indiscutível do progresso da humanidade. Como é próprio de todo grande debate ideológico, este se dá em meio à confusão e à emoção, mortos incluídos. Por isso pensei que, em vez de acrescentar minha opinião pessoal às muitas que se publicam todos os dias, poderia ser mais útil para você, atento leitor, lembrar alguns dados que balizam o debate. A começar pela própria definição de globalização. Trata-se de um processo objetivo, não de uma ideologia, embora tenha sido utilizado pela ideologia neoliberal como argumento para arvorar-se como a única racionalidade possível. E é um processo multidimensional, não apenas econômico. Sua expressão mais determinante é a interdependência global dos mercados financeiros, propiciada pelas novas tecnologias de informação e comunicação e favorecida pela desregulação e liberalização desses mercados.
Se o dinheiro (o dos nossos bancos e fundos de investimentos, ou seja, o seu e o meu) é global, nossa economia é global, porque nossa economia (naturalmente capitalista, ainda que seja de um capitalismo diferente) se move ao ritmo dos investimentos. E, se as moedas são cotadas globalmente (porque, no mercado de divisas, há uma troca diária da ordem de US$ 2 trilhões), as políticas monetárias não podem ser decididas autonomamente nos marcos nacionais. Também está globalizada a produção de bens e serviços, em torno de redes produtivas de 53 mil empresas multinacionais e suas 415 mil empresas auxiliares. Essas redes empregam apenas cerca de 200 milhões de trabalhadores (dos quase 3 bilhões de pessoas que trabalham para viver em todo o planeta), porém tais redes geram 30% do produto bruto global e dois terços do comércio mundial.
Portanto o comércio internacional é um setor de que todas as economias dependem para a geração de riqueza, mas esse comércio reflete a internacionalização do sistema produtivo. Também a ciência e a tecnologia estão globalizadas em redes de comunicação e cooperação, estruturadas em torno dos principais centros de pesquisa universitários e empresariais. E o mesmo vale para o mercado global de trabalhadores altamente especializados, sejam tecnólogos, financistas, jogadores de futebol ou assassinos profissionais, só para dar alguns exemplos. As migrações também contribuem para uma globalização crescente do trabalho em setores menos especializados. A globalização inclui o mundo da comunicação, com a interpenetração e concentração dos meios de massa em torno de sete grandes grupos multimídia, ligados por diversas alianças a uns poucos grupos dominantes em cada país (na Espanha, quatro ou cinco, dependendo de como se conte). E a comunicação entre as pessoas também se globaliza com a internet (já vamos chegando aos 500 milhões de usuários no mundo e a uma taxa média de penetração de um terço da população na União Européia).

Relação local-global
O esporte, uma dimensão essencial do nosso imaginário coletivo, vive de sua relação local-global, com a identidade catalã vibrando com argentinos e brasileiros depois de ter superado seu localismo holandês. Por último, também as instituições políticas se globalizaram à sua maneira, construindo um Estado-rede em que os Estados nacionais se encontram com instituições supranacionais, como a União Européia ou clubes de decisão como o G8 ou instituições de gestão como o FMI, para tomar decisões de forma conjunta. Longe fica o espaço nacional de representação democrática, construindo-se os espaços locais mais como resistência do que como escalão participativo. De fato os Estados nacionais não sofrem a globalização, mas foram seus principais impulsionadores, por meio de políticas liberalizantes, convencidos como estavam e continuam a estar de que a globalização gera riqueza, cria oportunidades e, no final do percurso, também levará seus frutos à maioria dos hoje excluídos. O problema desse horizonte luminoso é que as sociedades não são entes submissos, passíveis de programação. As pessoas vivem e reagem com o que vão percebendo e, em geral, desconfiam dos políticos. E, quando não encontram canais de informação e participação, saem para a rua. Assim, diante da perda de controle social e político sobre um sistema de decisão globalizado que atua sobre um mundo globalizado, surge o movimento antiglobalização@, interligado e organizado pela internet, centrado em protestos simbólicos que respondem aos tempos e espaços dos agentes decididores da globalização e utilizam seus mesmos canais de comunicação com a sociedade: os meios de massa, nos quais uma imagem vale mais que mil palestras.

Negros, verdes, vermelhos e roxos
Mas o que é esse movimento antiglobalização? Diante dos mil intérpretes que surgem a cada dia para revelar sua essência, os estudiosos dos movimentos sociais sabem que um movimento é o que ele diz ser, porque é em torno dessas bandeiras explícitas que se agregam as vontades. Sabemos que ele é muito heterogêneo e contraditório, como todos os grandes movimentos. Mas que vozes saem dessa diversidade? Uns são negros, outros brancos, outros verdes, outros vermelhos, outros roxos e outros etéreos de meditação e prece. O que eles dizem? Uns pedem uma melhor distribuição da riqueza no mundo, repudiam a exclusão social e denunciam o paradoxo de um extraordinário desenvolvimento tecnológico enquanto doenças e epidemias tomam grande parte do planeta. Outros defendem o próprio planeta, nossa mãe Terra, ameaçada pelo desenvolvimento insustentável, fato que hoje sabemos justamente graças ao progresso da ciência e da tecnologia. Outros lembram que o sexismo também se globalizou. Outros defendem a universalização efetiva dos direitos humanos. Outros afirmam a identidade cultural e os direitos dos povos de existirem para além do hipertexto midiático. Alguns acrescentam a gastronomia local como dimensão dessa identidade. Outros defendem os direitos dos trabalhadores no norte e no sul. Ou a defesa da agricultura tradicional contra a revolução genética. Muitos utilizam alguns desses argumentos para defender um protecionismo comercial que limite o comércio e o investimento nos países em desenvolvimento. Outros se declaram abertamente anti-sistema, anticapitalistas, claro, mas também anti-Estado, renovando os vínculos ideológicos com a tradição anarquista, que, significativamente, entra no século 21 com mais força vital que a tradição marxista, marcada pela prática histórica do marxismo-leninismo no século 20. E também há numerosos setores intelectuais da velha esquerda marxista que vêem resgatada sua resistência à onda neoliberal.

Policiais violentos
Tudo isso é o movimento antiglobalização. Inclui uma parcela violenta, minoritária, que entende que a violência é necessária para revelar a violência do sistema. Inútil pedir à grande maioria pacífica que isole os violentos, porque isso já foi feito, mas nesse movimento não há generais e muito menos soldados. Talvez fosse mais produtivo para a paz pedir aos governos que isolem seus policiais violentos, já que, segundo observadores confiáveis das manifestações de Barcelona e Gênova, a polícia só fez agravar o confronto. Não se pode descartar a hipótese de que alguns serviços de informação pensem que a batalha principal é a conquista da opinião pública e que assustar o povo com imagens de ferozes batalhas de rua pode minar o apoio às causas do movimento antiglobalização. Grande engano, pois em sua diversidade muitas dessas mensagens estão ganhando a mente dos cidadãos, como mostram as pesquisas de opinião em vários países. Dentro dessa diversidade, se existe algo que une esse movimento é talvez o lema com que se convocou a primeira manifestação, a de Seattle: "Não à globalização sem representação". Ou seja, antes de entrar no conteúdo do debate, rejeita-se uma de suas premissas: o fato de serem tomadas decisões vitais para todos em contextos e reuniões fora do controle dos cidadãos. Em princípio, é uma acusação infundada, uma vez que a maioria dos agentes são representantes de governos democraticamente eleitos.

A democracia insuficiente
Mas acontece que os eleitores não podem ler a letra pequena (ou inexistente) das eleições a que são chamados a cada quatro anos, com políticos concentrados em ganhar a campanha da imagem e com governos que já bastante trabalho têm em reagir aos fluxos globais e costumam se esquecer de informar seus cidadãos. Além disso, segundo a pesquisa apresentada por Kofi Annan à ONU durante a Assembléia do Milênio, dois terços dos cidadãos do mundo (incluindo os das democracias ocidentais) não se consideram representados por seus governantes. O que dizem os movimentos antiglobalização, portanto, é que essa democracia, embora necessária para a maioria, é insuficiente aqui e agora.
Posto o problema nesses termos, há dois caminhos possíveis: ou se transferem as decisões para o espaço dos fluxos imateriais, reforçando a polícia e relegando os princípios democráticos a um plano abstrato; ou se repensa a democracia no novo contexto da globalização, construindo sobre o que já se conseguiu ao longo da história. Que se faça uma coisa ou outra depende de você e de muitos outros como você. E depende de que escutemos, entre investidas policiais e imagens de televisão, a voz plural, feita de protesto mais que de proposta, que nos chega do novo movimento social contra esta globalização.


Manuel Castells é professor da Universidade da Catalunha e autor de, entre outros, "A Sociedade em Rede" e "Fim de Milênio" (ed. Paz e Terra).
Tradução de Sergio Molina.


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