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A expedição
por João Gilberto Noll
Ele estava diante da janela. Sim, pronto para morar no apartamento. Era o primeiro que comprava. Foi à cozinha, olhou os pratos e copos que adquirira à tardinha numa loja atulhada de vigias,
olhou a lixeirinha da pia, olhou tudo em volta se perguntando se agora que tinha obtido a propriedade de
alguns poucos metros, se tudo aquilo seguiria sendo seu
pelo resto da vida. Preferia que não, talvez? Já tinha as
primeiras nódoas nas mãos; no entanto, qual um jovem
recém-casado na ausência breve da mulher, verificava
os volumes, as formas do que seria deles para sempre
assim, pois nada ali se quebraria, nenhum copo, aquilo
tudo não conheceria a decadência, estariam presos numa espécie de eternidade que só entraria em erosão no
momento em que ele ou ambos adivinhassem que poderiam ir além -mas esse além lhe soava ali feito um
estado que pouco se lhe dava usufruir. Então era isso, só
isso: um homem olhava para os instrumentos jogados
na pia de uma cozinha no 11º andar de um bairro central, e essa insistência em ver o frugal que ainda conseguia comprar, mesmo às custas de enfrentar a multidão
das "Americanas" no meio de aparelhos sonoros dos
seguranças emitindo mensagens arranhadas, ininteligíveis -essa insistência em olhar o pouco que arrebanhara o fazia melhor, como se ainda tivesse tempo de se
pôr inteiriço sem o imperativo de outra presença humana, um doido, um doido que tivesse uma atenção tão
anexada ao imediato, àquilo que lhe circundava, que o
próximo passo seria o de rezar, rezar a cada uma daquelas coisas, como se assim os corpos banalizados pelo dia
atrás do outro lhe pudessem atender em alguma coisa
que ainda era incapaz de supor. A qualquer momento a
mulher poderia chegar, não fora longe, mas ainda havia
tempo de pesar as consequências de se envolver assim
tão longamente não só com aquelas peças da cozinha,
mas com o mesmo corpo de mulher que à noite vinha e
o queria mais. Porém nada disso era verdade, vivia celibatário, passava da meia-idade e teria que se haver agora pra valer só com aquelas coisas, mês a mês, anos, alguns, mesmo quando sua espinha se vergasse e ele pudesse ir só até a esquina para comprar maçãs argentinas, as mais vermelhas, suculentas, essas que em outras
épocas não tinha condições de comprar. Agora sim, vinha-lhe a aposentadoria de professor, miúda, certo,
mas que lhe proporcionava saciar suas franciscanas necessidades, se é que chegavam a tanto: comer no restaurante em frente aos sábados, comprar duas rosas por semana, admirá-las timidamente na sombra do mesmo
toldo, se empedernir à tarde de Ernesto Nazareth, ah
-só agora com a idade era capaz de sorver o melhor do
descanso, sesteava, às 9h da noite tomava o remédio
que lhe sedava um pouquinho, tão pouquinho que antes da cama tinha forças de espremer uma laranja e bebê-la, sentindo que ainda teria chances de encontrar alguém a quem fosse possível agradecer por algum favor
que ninguém lembrava mais. Ao deitar pegava um dos
travesseiros e o abraçava, e senti-lo ali entre os braços
era como a reparação do olhar que não soubera sustentar na rua -nos últimos anos suas pernas iam em passos mais lentos, pouca coisa, algo entre um passeio e um
destino certo, honrado, retilíneo. Aliás, quando se abraçava ao travesseiro surgia-lhe a idéia de que viera ao
mundo a passeio, e que, portanto, agora, aposentado,
estava de fato conhecendo o melhor, o inigualável, a ante-sala do que não queria pensar de chofre, pensava no
cada vez mais escasso campo à frente de mansinho, assim, como se nada mais lhe dissesse respeito, sob a terra
em que já estava a adivinhar o vento, o sol, noite ou chuva, não adivinhando nada, e então parecia que o sono
lhe tomava um sorriso, puxava-lhe de dentro como se
uma véspera de euforia que só um sonho dolorido teria
o condão de apagar. Esse sonho não lhe vinha nessas alturas, eram situações informes, lembrando aleijões de
barro, e quando acordava já não sabia de onde tirar algum proveito das trevas em que esteve o tempo todo
abraçado ao travesseiro feito a uma bóia, ou mais que
bóia, abraçado ao próprio homem a quem pedia um
aperitivo no mercadinho da esquina antes de dormir, o
homem o guiava para os fundos onde havia uma vassoura e um cão chiando adormecido como se com asma. Depois disso mais nada, só ele avaliando um peso
por trás que o fazia dobrar-se na frente da privada (a
calça do pijama pelo joelho), forçando-se para urinar,
sem êxito -essa frustração diária, tão sua conhecida;
entretanto dessa vez escorria da glande uma outra coisa, mais espessa e que ainda não era porra, era aquilo
oleoso que só na juventude ou na idade plena pôde ver
sair pelo pau de excitação, ainda antes de gozar, bem
antes, e ele se estonteou e se deixou lançar por uma força que o arrebatava de si -arrancando então de suas
entranhas o gozo venturoso, o fim...
João Gilberto Noll é escritor e autor, entre outros, de "Romances e
Contos Reunidos" (Companhia das Letras).
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