São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2002

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A expedição

por João Gilberto Noll

Ele estava diante da janela. Sim, pronto para morar no apartamento. Era o primeiro que comprava. Foi à cozinha, olhou os pratos e copos que adquirira à tardinha numa loja atulhada de vigias, olhou a lixeirinha da pia, olhou tudo em volta se perguntando se agora que tinha obtido a propriedade de alguns poucos metros, se tudo aquilo seguiria sendo seu pelo resto da vida. Preferia que não, talvez? Já tinha as primeiras nódoas nas mãos; no entanto, qual um jovem recém-casado na ausência breve da mulher, verificava os volumes, as formas do que seria deles para sempre assim, pois nada ali se quebraria, nenhum copo, aquilo tudo não conheceria a decadência, estariam presos numa espécie de eternidade que só entraria em erosão no momento em que ele ou ambos adivinhassem que poderiam ir além -mas esse além lhe soava ali feito um estado que pouco se lhe dava usufruir. Então era isso, só isso: um homem olhava para os instrumentos jogados na pia de uma cozinha no 11º andar de um bairro central, e essa insistência em ver o frugal que ainda conseguia comprar, mesmo às custas de enfrentar a multidão das "Americanas" no meio de aparelhos sonoros dos seguranças emitindo mensagens arranhadas, ininteligíveis -essa insistência em olhar o pouco que arrebanhara o fazia melhor, como se ainda tivesse tempo de se pôr inteiriço sem o imperativo de outra presença humana, um doido, um doido que tivesse uma atenção tão anexada ao imediato, àquilo que lhe circundava, que o próximo passo seria o de rezar, rezar a cada uma daquelas coisas, como se assim os corpos banalizados pelo dia atrás do outro lhe pudessem atender em alguma coisa que ainda era incapaz de supor. A qualquer momento a mulher poderia chegar, não fora longe, mas ainda havia tempo de pesar as consequências de se envolver assim tão longamente não só com aquelas peças da cozinha, mas com o mesmo corpo de mulher que à noite vinha e o queria mais. Porém nada disso era verdade, vivia celibatário, passava da meia-idade e teria que se haver agora pra valer só com aquelas coisas, mês a mês, anos, alguns, mesmo quando sua espinha se vergasse e ele pudesse ir só até a esquina para comprar maçãs argentinas, as mais vermelhas, suculentas, essas que em outras épocas não tinha condições de comprar. Agora sim, vinha-lhe a aposentadoria de professor, miúda, certo, mas que lhe proporcionava saciar suas franciscanas necessidades, se é que chegavam a tanto: comer no restaurante em frente aos sábados, comprar duas rosas por semana, admirá-las timidamente na sombra do mesmo toldo, se empedernir à tarde de Ernesto Nazareth, ah -só agora com a idade era capaz de sorver o melhor do descanso, sesteava, às 9h da noite tomava o remédio que lhe sedava um pouquinho, tão pouquinho que antes da cama tinha forças de espremer uma laranja e bebê-la, sentindo que ainda teria chances de encontrar alguém a quem fosse possível agradecer por algum favor que ninguém lembrava mais. Ao deitar pegava um dos travesseiros e o abraçava, e senti-lo ali entre os braços era como a reparação do olhar que não soubera sustentar na rua -nos últimos anos suas pernas iam em passos mais lentos, pouca coisa, algo entre um passeio e um destino certo, honrado, retilíneo. Aliás, quando se abraçava ao travesseiro surgia-lhe a idéia de que viera ao mundo a passeio, e que, portanto, agora, aposentado, estava de fato conhecendo o melhor, o inigualável, a ante-sala do que não queria pensar de chofre, pensava no cada vez mais escasso campo à frente de mansinho, assim, como se nada mais lhe dissesse respeito, sob a terra em que já estava a adivinhar o vento, o sol, noite ou chuva, não adivinhando nada, e então parecia que o sono lhe tomava um sorriso, puxava-lhe de dentro como se uma véspera de euforia que só um sonho dolorido teria o condão de apagar. Esse sonho não lhe vinha nessas alturas, eram situações informes, lembrando aleijões de barro, e quando acordava já não sabia de onde tirar algum proveito das trevas em que esteve o tempo todo abraçado ao travesseiro feito a uma bóia, ou mais que bóia, abraçado ao próprio homem a quem pedia um aperitivo no mercadinho da esquina antes de dormir, o homem o guiava para os fundos onde havia uma vassoura e um cão chiando adormecido como se com asma. Depois disso mais nada, só ele avaliando um peso por trás que o fazia dobrar-se na frente da privada (a calça do pijama pelo joelho), forçando-se para urinar, sem êxito -essa frustração diária, tão sua conhecida; entretanto dessa vez escorria da glande uma outra coisa, mais espessa e que ainda não era porra, era aquilo oleoso que só na juventude ou na idade plena pôde ver sair pelo pau de excitação, ainda antes de gozar, bem antes, e ele se estonteou e se deixou lançar por uma força que o arrebatava de si -arrancando então de suas entranhas o gozo venturoso, o fim...


João Gilberto Noll é escritor e autor, entre outros, de "Romances e Contos Reunidos" (Companhia das Letras).


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