São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2008

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+ Teatro

O amor segundo Shakespeare


Em Londres, interesse em alta por musicais da Broadway é ofuscado por montagens de clássicos do teatro de Shakespeare

CHARLES ISHERWOOD

Ainda mais do que costuma ser o caso, os teatros de Londres estão repletos de musicais norte-americanos. Temos "Violinista no Telhado" e "A Noviça Rebelde", além de "Cabaré" e "Chicago", e os títulos atuais não estão sendo negligenciados. "Wicked" tem em Londres sucesso semelhante ao conquistado em Nova York; "Avenue Q" não fica muito atrás; "Hairspray" tem críticas excelentes. E os britânicos produziram uma popular versão do filme "Dirty Dancing".
No entanto as duas produções de maior sucesso na cidade são montagens de Shakespeare, o que serve como um testemunho bem-vindo quanto ao público teatral da cidade. Conseguir ingressos para o "Otelo" no minúsculo Donmar Warehouse, com Ewan McGregor como Iago e Chiwetel Ejiofor, o novo luminar dos palcos da cidade, no papel-título, é empreitada impossível.
E, no National Theatre, uma montagem de "Muito Barulho por Nada" traz Simon Russell Beale como Benedick e Zoë Wanamaker como Beatrice, os dois incomumente maduros para os papéis, em um palco que combina luz e sombra.
Muitos livros foram escritos sobre as percepções multifacetadas de Shakespeare quanto aos turbulentos movimentos de um coração apaixonado, mas eu nunca havia justaposto "Otelo" e "Muito Barulho por Nada" em meus pensamentos.

Uivos e suspiros
Depois de assistir às duas peças em seqüência, elas pareceram representar um duplo estudo sobre a suscetibilidade do amor à influência de terceiros, tema recorrente nos demais trabalhos do dramaturgo, mas mais comovente nessas peças.
Elas nos falam sobre pessoas honradas que se apaixonam ou desapaixonam por falsos motivos, o que sublinha a estranha fragilidade do sentimento, com um suspiro de espanto em "Muito Barulho por Nada" e um uivo gutural em "Otelo".
Da mesma maneira que Otelo é convencido por Iago de que Desdêmona lhe foi infiel, Cláudio é iludido pelo malévolo dom João quanto aos sentimentos de sua noiva, Hero.
Em "Muito Barulho por Nada", a trama romântica mais sombria é contrastada com a mais leve, já que a união de Benedick e Beatrice é propiciada por uma trapaça mais doce. O traço que define a atuação de Beale e Wanamaker é uma límpida verdade humana que, em Shakespeare, requer imensa técnica para ser adquirida.
Os olhos de McGregor brilham como jóias iluminadas em meio às trevas de "Otelo". Nesta versão, a confiança que Otelo dedica a essa figura dúplice não parece uma falha de caráter gritante, mas sim o fruto de uma afinidade natural.
À medida que a história se aproximava de sua terrível conclusão, eu sentia intensamente "a dor de tudo aquilo", nas palavras de Otelo: o desperdício da bondade, a propensão do homem a semear trevas onde poderia haver luz. Mas havia glória em testemunhar os poderes de revelação de Shakespeare e a capacidade dos grandes atores para iluminá-los.


A íntegra deste texto foi publicada no "New York Times". Tradução de Paulo Migliacci .


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