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Um mergulho em Dom Casmurro
Bem lido, "Dom Casmurro" vale por um tratado de psicologia moral, pois mostra que cada mente, em seu estado normal, abriga pulsões desconhecidas
O pessimismo de Machado não é um lamento queixoso
ou a lamúria das ilusões perdidas;
ao contrário, é um pessimismo viril
EDUARDO GIANNETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
O texto semeia, a leitura insemina. O
leitor lê o livro,
mas existem livros
que lêem o leitor.
À medida que lia, relia e me
preparava para escrever este
artigo -santa ousadia!- fui
também me dando conta de
uma imagem teimosa que volta
e meia aflorava em meio ao trabalho: o olhar zombeteiro de
Machado de Assis emergindo
do fundo das páginas de "Dom
Casmurro" e caçoando do meu
esforço em devassar os segredos da obra.
Não era uma imagem propriamente visual. Era a sensação difusa e semiconsciente de
estar sendo observado. De que
Machado calculara de algum
modo tudo aquilo, armara milimetricamente o jogo, e depois
se postara em algum camarote
da eternidade para desfrutar
do seu engenho e entreter-se às
minhas custas.
De repente, sentia, os papéis
se invertiam: a obra se divertia
comigo. Ela me interrogava; eu
me explicava. Se os livros tivessem olhos, os de "Dom Casmurro" seriam oblíquos e dissimulados -capazes de tragar
em suas linhas gerações de intérpretes empenhados em decifrá-los.
Textos seduzem. "Dom Casmurro" se oferece ao nosso deleite, enfeitiça-nos com sua arte, bule com a nossa intimidade, mas jamais se deixa possuir
inteiramente. O romance secreta ambigüidade por todos os
poros. A superfície polida que o
envolve é análoga à da vida que
retrata: uma fina película de
decoro sob a qual se agitam
-sem nunca irromper- as
mais ferozes, traiçoeiras e inconfessáveis correntezas.
"Dom Casmurro" não tem
prefácio. A autobiografia ficcional de Bento Santiago é uma
redoma intransponível. Só temos acesso aos estados mentais e ao universo subjetivo de
um narrador que resolve contar, movido pelo tédio de uma
velhice amarga e reclusa, episódios cruciais de sua vida.
Farta em divagações, a narrativa carece de acontecimentos. Atrofia da vontade, hipertrofia da cogitação. A máxima
que inspira a trama não é o "no
princípio era verbo" bíblico ou
o "no princípio era a ação"
faustiano. Para o Otelo anêmico de Machado, "no princípio
era a elucubração".
A perspectiva interna de
dom Casmurro -o Bentinho
cético da velhice- governa
brutalmente o retrospecto de
sua vida. Tudo o que sabemos
dos personagens foi filtrado
por sua memória. A grande incerteza -a dúvida que Machado semeia- reside no grau de
confiabilidade do relato.
Até que ponto a retrovisão
do narrador corresponde ao
que de fato se passou com ele?
A incerteza é radical. Quanto
mais se busca contê-la, pinçando aqui e ali resíduos de objetividade, mais ela se espalha.
Imagine no que se transformaria aquela mesma trama, só que
reconstruída a partir do ponto
de vista de Capitu ou Escobar.
O desfecho é fatal. O leitor
termina e a pergunta o assalta.
Afinal, traiu ou não traiu? Por
mais irrespondível e irrelevante que seja, a questão não cala.
O leitor volta ao texto e, lupa na
mão, sai à cata de pistas: interroga os personagens, esmiuça
as alusões eruditas. Não há
chave, não há prova.
O equilíbrio das evidências é
exato. A saída lógica, no caso,
seria a suspensão da crença,
mas a curiosidade não arreda.
Quem sabe um fato novo? E se,
por absurdo, um manuscrito
inédito de Machado ou uma
carta extraviada de Capitu revelassem toda a verdade? Estaria resolvido o mistério?
O verdadeiro enigma de
"Dom Casmurro" não é tanto o
suspense indecidível que nos
propõe, mas a força do transporte ficcional que o romance
proporciona, a ponto mesmo
de despertar uma demanda espontânea por respostas objetivas às dúvidas que suscita.
Quase sem se dar conta, o leitor
é transportado ao universo suburbano de Bentinho e se descobre a cobrar a verdade dos fatos em meio a um enredo que,
como bem sabe, não passa do
relato semidelirante de um
narrador casmurro.
O mais intrigante é que tanto
essa ilusão de realidade como a
demanda por uma suposta verdade objetiva que esclareça os
fatos emerjam de uma narrativa que prima pela violação sistemática das regras e convenções do romance realista.
Como em "A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristam
Shandy" de Sterne ou no "Jacques, o Fatalista" de Denis Diderot [Perspectiva], seus tios-avôs europeus, o romance de
Machado vira do avesso o intento de se buscar embalar o
leitor fazendo-o esquecer que
está lendo um livro.
"Dom Casmurro" sapateia
sobre os cânones do realismo,
ainda que preservando um meticuloso andaime de referências às datas e ao sítio urbano-geográfico dos acontecimentos, às idades e feições dos personagens e, principalmente, ao
modo como parasitam seu ganha-pão. O surpreendente é
que essa ruptura libertária com
o bom-mocismo narrativo em
nada prejudique o alcance do
transporte ficcional que a leitura do romance suscita. Ao
contrário. Ao escancarar as entranhas do fazer literário e tudo que ele tem de postiço e arbitrário, o livro produz um
efeito não de frio distanciamento, mas de hiper-realismo.
O narrador-personagem
Casmurro não deixa a "querida
leitora" na mão. A troça do romance escapista também se
presta ao escapismo. A negação
metaboliza e ultrapassa o negado: a rejeição do realismo intensifica a ilusão de realidade.
Mas nem só de alquimia narrativa e fria perfeição de engenharia sintática é feito "Dom
Casmurro". Se o romance rompe com o realismo literário, ele
abraça com revigorado ímpeto
o realismo psicológico. O apuro
formal é o veículo de uma causa cognitiva precisa.
A vida mental dos personagens é dissecada com precisão
cirúrgica pelo bisturi machadiano. O cientista Fortunato,
do conto "A Causa Secreta",
não faria melhor. Do verme das
pequenas vaidades que envenenam o cotidiano ao alvoroço
íntimo do amor que desponta,
poucas vezes o psiquismo humano foi flagrado com tamanha acuidade. Bem lido, "Dom
Casmurro" vale por um tratado
de psicologia moral.
Cada indivíduo é um microcosmo. A idéia de que a mente
em seu estado normal abriga
pulsões desconhecidas e, por
vezes, capazes de assombrar
quem as detecta em si, não precisou esperar pelo advento da
psicanálise. Platão vai ao ponto: "Em cada um de nós, mesmo naqueles que parecem mais
comedidos, existem desejos
terríveis por seu caráter selvagem e sem leis, e que se deixam
revelar pelos sonhos" ("República"). A fera subterrânea aí
está. Como lidar com ela?
As estratégias para se chegar
a um "modus vivendi" com os
impulsos arcaicos e exigências
instintivas que nos habitam em
segredo configuram o campo
de forças da personalidade.
O equilíbrio é tênue e sujeito
a súbitas reviravoltas. O mesmo Bentinho que recém-formado ouvia fadas ("tu serás feliz, Bentinho!") e recém-casado
"inventava passeios para que
me vissem, me confirmassem e
me invejassem" transformou-se no morto-vivo dom Casmurro ("moro longe e saio pouco,
tenho-me feito esquecer"); alguém que, ao receber a conta
das despesas com o túmulo do
filho Ezequiel, limita-se a suspirar: "Pagaria o triplo para não
tornar a vê-lo".
"Aquele que deseja, mas não
age, fomenta a pestilência". O
provérbio de [William] Blake
vai ao cerne do drama de Bentinho. Filho único e superprotegido de mãe viúva, educado em
casa por um padre antes de ser
mandado a contragosto para o
seminário, Bentinho se transforma no protótipo do bom-moço. Vive para agradar os outros. "O homem mais puro do
mundo", no dizer de Capitu.
Ocorre, porém, que a vida de
"anjo do céu" não é fácil. Para
nunca desapontar os que o cercam, ele maltrata a si mesmo. O
efeito dessa auto-anulação sistemática é que os impulsos e
apetites que não encontram
vazão no mundo passam a se
voltar para dentro, minando a
sua relação com Deus e consigo
mesmo. Preserva-se a respeitabilidade, salvam-se as aparências e o decoro, mas o preço do
desejo inibido é cada vez mais
alto: a pestilência se espalha.
O conflito intrapessoal e o
retorno do reprimido pontuam
a trama. As escaramuças e armistícios viscosos entre o anjo
e a fera dão a tônica do romance. Em três momentos críticos,
a escalada do conflito aflora à
superfície da consciência e permite entrever a besta atiçada
em ação: o seminarista Bentinho deseja secretamente a
morte da mãe enferma; o marido da adorada Capitu beira o
adultério com a esposa de seu
melhor amigo e o pai outrora
exemplar de Ezequiel por um
triz não mata o filho inocente,
servindo-lhe o café com veneno preparado para o seu malogrado suicídio.
O relâmpago de egoísmo e
luxúria no episódio do "desmaio da piedade filial" é exemplar. Bentinho está obcecado
pelo desejo de casar com Capitu. Ocorre que não pode consumar a paixão, pois foi prometido pela mãe à vida religiosa.
Uma tentativa de pedir-lhe a
compreensão para o caso resulta em humilhante fiasco. A
covardia o emudece e o futuro
seminarista aquiesce. Em vez
de confessar o que sente por
Capitu e, assim, magoar a mãe,
ele apenas declara: "Eu só gosto de mamãe".
Um dia, porém, a mãe adoece. Bentinho é chamado às
pressas do seminário e, em
meio à aflição, vislumbra um
raio torto de esperança. Em vez
de rezar pelo seu pronto restabelecimento, como era dever
de filho, abriga a fantasia de
que, com a mãe morta, o caminho ficaria livre para os braços
da amada. "Mamãe defunta,
acaba o seminário".
D. Glória melhora e Bentinho se arrepende da maldade
contemplada. Propõe-se a expiar a culpa com um gesto típico das transações fraudulentas
por meio das quais restaurava
seu armistício moral.
"Então levado do remorso,
usei ainda uma vez do meu velho meio das promessas espirituais, e pedi a Deus que me perdoasse e salvasse a vida de minha mãe, e eu lhe rezaria 2.000
padre-nossos... Eram mais
2.000, onde iam os antigos?
Não paguei uns nem outros,
mas saindo de almas cândidas e
verdadeiras tais promessas são
como a moeda fiduciária -ainda que o devedor as não pague,
valem a soma que dizem."
Bentinho dissimulou da mãe
o que sentia. O que ele afinal
não consegue, porém, é dissimular de si mesmo, sem fraquejar, o que sentia por ela.
Nem sempre é fácil sentir o que
em nós está sentindo.
Bentinho compreende que a
arte da dissimulação requer
não apenas duplicidade, mas
duplo talento. Fingir para fora
não é o mesmo que fingir para
dentro: "Uma certidão que me
desse 20 anos de idade poderia
enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas
não a mim". Ou, como ele se
queixaria mais tarde, na maré
montante da suspeita e da repulsa pelo filho que cada vez
mais faz lembrar Escobar,
"mas o que pudesse dissimular
ao mundo, não podia fazê-lo a
mim, que vivia mais perto de
mim que ninguém".
Ele se acostuma de tal modo
a se disfarçar dos outros que
acaba se disfarçando de si. Na
liga insossa do seu caráter, as
fronteiras desvanecem -à falsidade externa do hipócrita social, virtuose da afabilidade,
junta-se a falsidade essencial
do hipócrita interior, virtuose
do auto-engano.
O pessimismo machadiano não é ponto
de chegada, mas travessia; a casca protege o fruto
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O resultado é a perda de vitalidade, fruto da desintegração
psíquica, e o esfarinhamento
progressivo da personalidade.
Idéias sem pernas, fantasias
profusas, orgias de racionalização. Agir, só em último caso.
Ameaça muito, nada executa;
promete e jura de boa-fé, não
cumpre. Premido pela fera do
ciúme, Bentinho perde o pé de
sua realidade interna e o senso
de realidade. Desesperado, decide matar-se.
Vai à farmácia e compra o veneno. Sai pela ruas levando a
morte no bolso. Visita os parentes, janta fora e vai ao teatro
-estão levando "Otelo". Quando Desdêmona morre pelas
mãos do marido suplicando
inocência, o público irrompe
em "aplausos frenéticos". Do
que o Mouro não foi capaz por
causa de um simples lenço! A
desproporção agride. A conclusão de Bentinho tem a força de
um teorema: "O último ato
mostrou-me que não eu, mas
Capitu devia morrer". Do que a
distorção egocêntrica aliada à
lógica do ciúme -"green-eyed
monster"- não é capaz?
Bentinho vagueia até a madrugada. Retorna, mete-se no
escritório e decide que é hora
de consumar o ato. Manda vir o
café para misturar a droga.
Uma imagem lhe vem à cabeça.
É que Catão, o paradigma da
virtude entre os romanos antigos, antes de se matar, leu e releu um livro de Platão. Por que
não reviver a bela cena? "Não
tinha Platão comigo; mas um
tomo truncado de Plutarco, em
que era narrada a vida do célebre romano, bastou-me a ocupar aquele pouco tempo, e para
em tudo imitá-lo, estirei-me no
canapé." Assim disposto, nosso
Catão de subúrbio se entrega
por alguns instantes à leitura
edificante e à "cocaína moral
dos bons livros".
Logo outra imagem lhe surge. O que imaginarão os outros
quando ele for encontrado ali,
estirado no divã, o volume caído ao lado? Bento imitando Catão? Resolve desistir da idéia.
Repõe o volume na estante "antes de beber o veneno".
A inversão é sublime. Sozinho no escritório, Bentinho simula a pose de varão romano
perante si mesmo -é como se
imagina. Quando lhe ocorre
que a pose, veiculada nos jornais, pode empanar a integridade do ato, ele dissimula a simulação -é como deseja que os outros o imaginem. Para não
parecer o que ele é (simulacro
de Catão), finge ser o que não é
(ele mesmo). Onde termina o
hipócrita social, onde começa o
hipócrita interior? Como dialética entre pose íntima e pose
pública seria difícil pedir mais.
Questão da paternidade
O enigma da paternidade de
Ezequiel seria passível de solução: um teste de DNA o resolveria. Mais escorregadia é a questão da paternidade autoral do
livro. Machado é o genuíno pai
da criança. Mas qual a natureza
da relação que mantém com o
pai de aluguel da obra, este híbrido de memorialista e moralista cético que é Casmurro?
A opção pela primeira pessoa
narrativa permite ao escritor
dizer o que pensa (ou não) sem
jamais se expor. Machado deita
e rola no uso do estratagema.
Em "Dom Casmurro", como já
fizera em "Memórias Póstumas", sua voz se insinua de forma intermitente nas falas do
narrador, sem que nunca saibamos se é ele mesmo ou o personagem que tem a palavra. O espantoso talento literário do filho de d. Glória só faz crescer a
suspeita de contrabando.
Em algumas passagens o
timbre machadiano é inconfundível. Penso nos epigramas
lapidares, muito ao estilo dos
moralistas franceses do século
17, espalhados como dádivas
pelo texto. Mas a presença de
Machado não se reduz a pitadas
virtuosísticas. O romance traduz uma concepção geral e uma
atitude frente à vida. Que visão
da condição humana emerge
das profundezas do livro?
Amor, religião, política, ciência, poesia, filosofia, amizade
-escolha um caminho para a
salvação do homem, um sentido possível para o existir: nada
escapa ileso do raio-X machadiano. Ele não faz concessões:
escava e goza; descasca e ri.
O contraste com Dostoiévski
é gritante. Mesmo no mais tenebroso crime do escritor russo há um vislumbre de esperança. Em Machado não há crime: tudo se afrouxa e esmorece. Mas também não há esperança. Machado escarafuncha a
miséria inconfessa dos personagens, mete a agulha na ferida
e escancara o que há de postiço,
mesquinho e absurdo em suas
crenças e aspirações. "Oh! como a esperança alegra tudo",
recorda Casmurro de sua mocidade. "Amai, rapazes!"
O pessimismo machadiano é
um fato, mas como interpretá-lo? Mário de Andrade indagou:
seria possível amar Machado?
A comparação com outros mestres, mais esperançosos do homem, leva-o a concluir: "Aos
artistas a que faltem esses dons
de generosidade, a confiança na
vida e no homem, a esperança,
me parece impossível amar. A
perfeição, a grandeza da arte é
insuficiente para que um culto
se totalize tomando todas as
forças do crente. A um Machado de Assis só se pode cultuar
protestantemente".
Cito a opinião de Mário de
Andrade para me contrapor a
ela. É mais fácil admirar Machado do que amá-lo. Mas o parecer do modernista padece de
uma falta de empatia e generosidade ainda maior do que
aquela que atribui a Machado.
O diabo em forma de pessimismo em seu legado talvez não seja tão feio como se pinta.
Machado castiga e escarnece
de muita coisa: o sentimentalismo derramado dos românticos; o consolo precário e oportunista das religiões; as pretensões da ciência moderna; as
aberrações da política; o ardor
fugaz dos amantes; os embustes da moralidade; a vaidade do
fazer literário; sonhos de glória;
qualquer forma de entusiasmo
ou exaltação do ânimo. O capítulo das negativas vai longe.
Seu pessimismo, contudo,
não é um lamento queixoso ou
a lamúria das ilusões perdidas.
Nele não há traço de rancor. O
que temos é um pessimismo viril, no qual o distanciamento, o
apuro da forma, o humor e uma
espantosa acuidade psicológica
sustentam uma atitude de crítica perante nossa tragicomédia
de subúrbio.
À negatividade de superfície
que recobre o projeto machadiano de flagrar nossa miséria
inconfessa é preciso contrapor
os valores que sua obra afirma:
o valor estético da perfeição
formal; o valor cognitivo de sua
psicologia; o valor existencial
do humor como arma de defesa, reação e transcendência
diante da vida tal como está.
Parafraseando Albert Camus, para quem o "desprezo"
seria a resposta do homem
diante do seu absurdo, em Machado não há destino que não
se transcenda pelo humor.
Quem escreve uma obra, por
mais sombria, revela algum otimismo. Se os pessimistas realmente acreditassem no que
pregam, não haveria sentido
em dizê-lo. Se tudo é falso e nada importa, então por que haveria de importar a falsidade e
desimportância de tudo? Se ela
importa, então negamos a premissa -algo tem valor. Mas se
não importa, como de resto tudo mais, então voltamos ao
ponto de partida- a pregação
pessimista também não importa. A vida segue o seu curso.
Imagine um cético da possibilidade do conhecimento, mas
que defende o seu ponto de vista com argumentos robustos,
evidências cuidadosas e lógica
impecável. Instabilidade análoga perpassa Machado.
Por mais compacto e implacável que possa parecer à primeira vista, o fato é que o pessimismo machadiano aloja em si uma singular contradição: ele
almeja compartilhar o seu desencanto. A pergunta que não
cala é: por que dividir e espalhar assim a desesperança? Em
nome do que imortalizar o legado de sua descrença?
O ato desmente a fala. A busca e o sofrimento humanos não
lhes são indiferentes. A vida errada é senha de outra vida, não
a que é narrada. Do fundo do
desencanto compartilhado, a
voz humilde da esperança teima em se fazer ouvir, a dizer
que há algo por que existe e por
que vale a pena viver.
"Todas as coisas boas", observa Nietzsche, "estimulam à
vida, mesmo um bom livro escrito contra a vida". O pessimismo machadiano, concluo,
não é ponto de chegada, mas
travessia. É preciso passar por
ele, mas justamente para assimilar sua força e ir além dele. A
casca protege o fruto.
EDUARDO GIANNETTI é economista, cientista
social e professor do Ibmec-SP. É autor de "O
Valor do Amanhã" (Companhia das Letras), entre outros livros.
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