São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2000


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A explicação do consumo não foi além do que se debate há séculos na economia
Do consumidor ao cliente

Gilson Schwartz
da Equipe de Articulistas

Para os economistas, considerar o consumo como um princípio organizador do sistema não é novidade. De modo talvez mais frio e calculista, é o que os "marginalistas" ou "neoclássicos" vêm dizendo desde o final do século 19. Já no plano filosófico e cultural, o consumismo (em especial nos países ricos) tem sido alvo de análises e críticas desde a "revolução" hippie dos anos 60. Janis Joplin pedia então a Deus que lhe providenciasse um Mercedes Benz. "All my friends have Porsches", justificava a humorada canção de protesto. A quem interessar possa, o Porsche psicodélico da mesma Janis Joplin está atualmente no saguão de entrada de uma exposição sobre a criatividade dos anos 60 no Museu de Arte Moderna de São Francisco.
Entre os pensadores rebeldes da economia política o tema também já deu muitas voltas. Os paradoxos de uma "classe ociosa" deram o mote para um dos fundadores do que se viria a conhecer como a vertente institucionalista no pensamento econômico, Thorstein Veblen, em 1899.
A rigor, desde as suas origens, a economia política buscou na satisfação dos interesses e necessidades dos indivíduos as suas raízes ou talvez a sua "âncora" (para usar uma expressão que ficou na moda mais recentemente). Adam Smith fazia digressões sobre a riqueza das nações, mas toda a genialidade de sua imagem da mão invisível deriva do paradoxo altamente positivo entre a busca fundamental de satisfação individual ou do interesse egoísta, de um lado, e a promoção do máximo de bem comum, de outro.
O sistema pressupõe um estado de confiança normal. Em Smith, que além de criar sua economia política cultivava uma filosofia moral, a arqueologia dos compromissos humanos revelava uma espécie de fundamento natural que ele definiu como a Simpatia.
Albert Hirschman foi um dos autores heterodoxos que sublinhou o parentesco entre essa estratégia retórica e a camuflagem de interesses. Estava em jogo garantir, ideologicamente, que o predomínio dos interesses privados fortaleceria o coletivo.
Em termos filosóficos, isso significa que o reino da necessidade perde objetividade. Ou seja, o "ser social" e mesmo a política não se estabelecem sobre o terreno das necessidades humanas, mas sim a partir da interação feliz entre sujeitos cuja autonomia nunca é posta em questão. O terreno das necessidades dá lugar ao teatro das preferências e opções individuais. É esse deslocamento que dá fluxo às energias do liberalismo clássico e do neoliberalismo contemporâneo.
Ocorre que a "ciência econômica", no final do século 19, descartou a referência a interesses e outros fatores considerados extra-econômicos ou irracionais. Colocou, em seu lugar, modelos formais de "preferência revelada" e "maximização sob restrições".
Dessa mutação cientificista brotaram duas vertentes, micro e macroeconômica, aparentemente antagônicas mas que afinal convergiram num modelo mais geral.
De um lado, foi aperfeiçoada a visão do "homo oeconomicus" como agente capaz de traduzir suas necessidades em preferências. Esse seria o fundamento microeconômico da racionalidade humana, sujeito ao que Doyal e Gough caracterizam como o "princípio da soberania privada" (1). De outro, desenvolveu-se uma visão macroeconômica, em que o consumo (matematicamente, uma função consumo) está correlacionado a variáveis como renda disponível, renda ao longo da vida, hipóteses sobre a dinâmica entre gerações ou sobre a propensão a consumir e a poupar em termos de fatores sociais, culturais e até mesmo étnicos.

Para o indivíduo do próximo século, o consumo dependerá do seu nível de educação


A fundamentação microeconômica do consumo tem efeitos políticos claros: se não há uma noção objetiva de necessidades humanas, se toda decisão de consumo é racional, pois depende da ordenação de preferências por parte de indivíduos soberanos, toda pretensão de regular o consumo (por meio do Estado ou políticas de bem-estar social, por exemplo) não passaria de fantasia metafísica ou, pior, tentação totalitária. Essa é a visão da nova direita, em alguns casos sob a roupagem libertária (com destaque para as obras de Hayek e Nozick). A construção de modelos macroeconômicos, parcialmente inspirados na obra de Keynes, completou a amarração neoliberal. A ponto de Michael R. Darby, no seu verbete sobre consumo no "The New Palgrave Dictionary of Economics", declarar que "a função consumo se desvaneceu como tópico de pesquisa intensiva sobretudo em razão do sucesso de trabalhos anteriores na elaboração de um consenso prático". Nessa visão, o consumo é função da renda. Toda a atenção desloca-se portanto para as medidas dessa dependência (a "propensão a consumir"). Indivíduos com renda baixa tendem a gastar toda a sua renda em consumo. Na medida em que aumenta o nível de renda, aumenta a propensão a poupar (reduz-se a proporção da renda que é gasta em consumo).

Modelos de equilíbrio
A partir daí, os modelos tornaram-se mais sofisticados e, no limite, resgataram o fundamento microeconômico. Ou seja, não basta a referência à renda, é preciso especificar como os indivíduos fazem as suas escolhas. Surgiram modelos conhecidos como de "ciclo de vida": os agentes resolvem problemas de distribuição de seu consumo ao longo do tempo (problemas de consumo intertemporal). Nessa decisão entram em cena aspectos ligados à renda, mas também motivos ligados à precaução (por exemplo, expectativas de restrições financeiras ou de liquidez, grau de aversão ao risco e ao endividamento) e mesmo institucionais (como no célebre exemplo do Japão, onde o consumo seria baixo e a poupança elevada por causa da escassez de imóveis e, mais recentemente, devido ao medo do desemprego). Muito facilmente, portanto, o debate sobre consumo na teoria econômica convencional desloca-se para o terreno de modelos de equilíbrio geral, em que a micro e a macroeconomia funcionam harmonicamente sob o princípio da soberania privada. Mesmo entre os pensadores mais rebeldes o consumo veio para primeiro plano. Em 1973, o pós-marxista Jean Baudrillard declarava algo com que economistas neomarxistas e regulacionistas afinal concordariam: o esgotamento do modelo fordista. Era o fim da produção como princípio organizador da sociedade (modelo calcado no sistema industrial de produção de massa inaugurado no início do século pela Ford). No seu lugar, os problemas de motivação e promoção do consumo ficavam em primeiro plano. Aliás, desde o início do século outro economista de inspiração marxista chamava a atenção para certo tipo de consumo como força motriz. Para o polonês Michal Kalecki, o consumo que faz a diferença é o consumo dos capitalistas. Esse panorama de idéias sobre o consumo, mais ou menos estável tanto à esquerda quanto à direita, enfrenta um novo desafio teórico a partir da emergência de uma economia de redes (Internet etc.) ou de um suposto novo paradigma, não apenas econômico, mas, segundo os mais eufóricos, até mesmo civilizacional. Mas entre os acadêmicos mais sérios ainda há muito ceticismo quanto ao eventual impacto das redes nas teorias econômicas do consumo. Muito do que se apresenta atualmente como novidade revolucionária já estava presente em Baudrillard, que chamava a atenção para a produção e circulação de "signos", e em Keynes, que alertava para a subordinação das decisões de investimento (e, portanto, de produção, emprego e consumo) aos sinais e expectativas formadas e processadas no sistema financeiro. Tudo muito antes da Internet.

Porta-estandarte
Voltando ainda mais no tempo, o próprio Marx já alertava para o caráter de fetiche ou simulacro do sistema de preços e salários. O materialismo de Marx começava e terminava com a própria mercadoria, matéria e condição da sobrevivência, alvo de investimento (até libidinal) do consumidor que se crê autônomo, mas que também serve de porta-estandarte da alienação. Talvez o tema realmente novo não seja propriamente o consumidor ("consumer"), mas sim a figura do cliente ("customer"). É aliás interessante usar os termos de engenharia da rede, onde as máquinas são organizadas em sistemas de "clientes" e "servidores", para designar o novo estatuto civil dos indivíduos que interagem com o mercado. Mesmo o consumidor racional do pensamento econômico tradicional, que fazia escolhas, era passivo. Na mais rigorosa formalização do equilíbrio geral, feita ainda no final dos anos 50 por Arrow e Debreu, cada agente toma decisões com base num "consumption set" (conjunto pressuposto de alternativas de consumo). Do consumidor ao cliente algo pode mudar. Da passividade supostamente racional pode brotar uma atividade que, no entanto, nunca será totalmente racional ou teorizável. Essa possibilidade está inscrita na banalidade da expressão "o cliente em primeiro lugar". Possibilidade, pois é rara a empresa que se dispõe a enfrentar o cliente inquisidor como algo mais que um estorvo. E talvez mais raros ainda sejam os consumidores preparados para ultrapassar o limiar da passividade bovina cultivada pelo marketing de massa. Mas as novas tecnologias também prometem um marketing de nicho. E a disputa entre padrões é ainda tão intensa que, embora obter ganhos de escala ainda seja uma condição de acumulação de capital, há imensos espaços abertos à ação dos clientes e de organizações públicas (governamentais e não-governamentais). A difusão de novas tecnologias agudiza um problema de atrelamento dos clientes a determinados padrões ("lock-in"). Dominar mercados significa conquistar adeptos para um padrão (por exemplo, Windows, Mac ou Linux). Não se trata de novas teorias econômicas. O estudo do consumo aproxima-se mais da prática do marketing, mas a emergência de novos "modos de consumo" deixa ainda uma fresta para a política e a domesticação dos espíritos animais do capitalismo. O processo de decisão dos clientes têm sido analisado de modo mais detalhado e empírico. As diferenças individuais e os processos psicológicos são atrelados à capacidade de conhecimento dos compradores e à sua subordinação a fatores ambientais e organizacionais.

Camisa-de-força
A ciência cognitiva, os modelos de funcionamento da memória e até estudos da movimentação do globo ocular diante de uma tela de computador são mobilizados para forjar uma suposta ciência das compras e vendas que, apesar de toda essa sofisticação, não consegue nem dar um passo sequer além do que se debate há séculos em teoria econômica ou filosofia do conhecimento. Quando muito, refinam-se as variantes de behaviorismo ou utilitarismo (2).
A esperança de uma nova humanidade continua inspirada numa espécie de neo-iluminismo. Só uma autêntica capacidade individual e coletiva de ampliar as oportunidades de criação de conhecimento permitiria escapar a essa camisa-de-força sem cair no fetiche da mercadoria (como nos marxistas), na escolha racional com base na comparação estática de preços e retornos (como nos marginalistas) ou na sujeição dos indivíduos e do sistema econômico às decisões do mercado financeiro (como nos keynesianos).
A escolha autêntica depende efetivamente do grau de informação, conhecimento e criatividade do cliente e de sua capacidade de viver sobre bases mais autônomas e com maior poder de negociação diante dos padrões tecnológicos em mutação permanente. Para o indivíduo do século 21, mais que renda, sedução ou especulação, o consumo dependerá do seu nível de educação e amadurecimento mental (intelectual ou espiritual).
Se vivesse agora, Janis Joplin cantaria: "Oh Lord, won"t you buy me, a good MBA... All my friends are PhDs..." (Senhor, não vais comprar-me um bom MBA... Todos meus amigos são doutores...).



Notas
1. Doyal, L., Gough, I., "A Theory of Human Need", Macmillan, 1991.
2. Um exemplo didático é o livro "Consumer Behaviour", de Engel, J.F., Blackwell, R. D. e Miniard, P. W., The Dryden Press, 1995.




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