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+ religião
Em seu "Tratado de Ateologia", o filósofo Michel Onfray tenta desmontar os monoteísmos e as teocracias
Deus, noves fora, zero
ROBERT MAGGIORI
Como é difícil ser ateu! O "sem
Deus" desaparece se negar a
Deus; pior ainda: quando se
afirma como tal, é preciso
existir aquilo cuja existência ele quer
negar!" Em seu "Traité d'Athéologie" [Tratado de Ateologia, ed. Grasset, 282 págs., 18,50 euros -R$ 65],
o filósofo Michel Onfray não subestima essa dificuldade.
Mas do obstáculo ele faz um "órgão", um instrumento de convicção
que lhe permite afirmar com ainda
mais força a necessidade de um
"ateísmo de amanhã", tranqüilo e
audacioso, capaz de tirar a humanidade da "celebração do nada", da
cultura dos fetiches, do ódio à vida
nos quais a religião a mantém.
Como é possível ainda vivermos "em um estado teológico ou religioso da civilização'?
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Digamos claramente: é preciso retroceder dois séculos -quando o
conhecimento só podia contar com
as luzes da razão e em que a história
seguia sua marcha na ladeira do progresso- para encontrar um ataque
tão terrível contra os dogmas, a
ideologia, as práticas, os rituais religiosos, nos quais Onfray espera
abrir pelo menos uma brecha.
"Desconstruir os monoteísmos,
desmistificar o cristianismo mas
também o islamismo, é claro, e depois desmontar a teocracia -eis
três canteiros de obras inaugurais
para a ateologia. Para, em seguida,
trabalhar em uma nova premissa
ética e produzir no Ocidente as condições de uma verdadeira moral
pós-cristã, em que o corpo deixa de
ser uma punição, a terra um vale de
lágrimas, a vida uma catástrofe, o
prazer um pecado, as mulheres uma
maldição, a inteligência uma presunção, a volúpia uma danação."
A filípica de Michel Onfray não visa os homens de fé -mas a fé quando se fecha ou substitui o saber-
nem os homens que se ajoelham ou
baixam a cabeça -mas "aqueles
que os convidam a essa posição humilhante"-, não o crente -mas o
pastor. Como é possível que ainda
vivamos "em um estado teológico
ou religioso da civilização"?
Como é possível que a janela do
mundo se abra todos os dias, a toda
hora, sobre massas de fiéis que
oram, seguem em peregrinação,
aclamam pontífices, teocratas que
pontificam, decretam, situam aqui o
bem e ali o mal, indicam o que se deve pensar, o que se deve comer ou
não comer, como vestir-se ou quem
se deve matar, em que "o Talmude e
a Torá, a Bíblia e o Novo Testamento, o Corão são mais citados do que a
Declaração Universal dos Direitos
Humanos? Não se havia anunciado
a morte de Deus?".
Muros baixos
É preciso crer que não. Também
devemos tirar disso algumas lições.
De um lado, que o ateísmo não ergueu muros suficientemente altos
para impedir a difusão daquilo que
combateu. De outro, que a religião
tem raízes inextirpáveis, na medida
em que se prendem à própria condição do homem, confrontado com o
absurdo de uma existência que o
conduz inexoravelmente à morte.
A partir daí os jogos estão feitos, e
os dados são viciados: a cruel realidade cede à doce ilusão, e a ilusão
engendra outras ilusões, por cuja
preservação estamos dispostos a pagar qualquer preço, a crer em todas
as tolices, nos mares que se abrem e
nas mães virgens que dão à luz, a fazer todos os sacrifícios, a sofrer, a
nos arrependermos para sofrermos
ainda mais, a nos colocarmos abaixo
de zero, a nos humilharmos...
Poderíamos declarar perdido o
combate: o que pode uma ateologia
enquanto a hipótese religiosa se infiltrou em tudo, enquanto a religião
habita a língua, os costumes e os
usos, está presente nos nomes, na estrutura das cidades, na seqüência do
calendário, na arte, no direito, na
própria maneira como concebemos
o corpo, com seus desejos baixos,
suas vísceras sombrias, sua coragem
no peito, seu nobre pensamento na
cabeça, seu espírito e sua alma imputrescíveis?
É possível construir uma sociedade sem Deus, que, dispensando os
"valores morais" promovidos há séculos pela religião, de obediência e
mortificação, possa estabelecer a
justiça, a liberdade e a felicidade para
o maior número possível de pessoas
-sem "cultura da morte", sem "elogio da submissão", sem "ódio à razão e à inteligência", sem "ódio a todos os livros em nome de um só",
sem "ódio à vida, ódio à sexualidade,
às mulheres e ao prazer; ódio ao feminino; ódio ao corpo, aos desejos,
às pulsões"?
"Quanto mais o homem confere
realidade a Deus, menos a conserva
em si mesmo", disse Marx. Assim, é
preciso esvaziar o real de Deus e examinar o modo como se constrói
uma mitologia que, segundo o "Tratado de Ateologia", é portadora da
pulsão da morte. Em outros tempos,
Onfray teria sido levado à fogueira.
Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados, em São Paulo, na Fnac (tel. 0/xx/11/
4501-3000).
Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
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