São Paulo, domingo, 27 de março de 2005

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+ cultura

Francis Fukuyama

Max contra Marx

Clássico de Max Weber que defende a religião como premissa para o surgimento do capitalismo, "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", que faz cem anos, se sustenta hoje como análise da relação entre cultura e modernidade

Neste ano se comemora o centésimo aniversário do mais famoso tratado sociológico já escrito, "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", de Max Weber [1864-1920]. Foi um livro que deixou Karl Marx de ponta-cabeça.
A religião, segundo Weber, não era uma ideologia produzida por interesses econômicos (o ópio das massas, como havia colocado Marx); era sobretudo o que havia possibilitado o mundo capitalista moderno.
Na década atual, quando as culturas parecem estar se chocando e a religião freqüentemente é responsabilizada pelos fracassos da modernização e da democracia no mundo muçulmano, o livro e as idéias de Weber merecem um novo olhar.
O argumento de Weber se concentrou no protestantismo ascético. Ele disse que a doutrina calvinista da predestinação levava os crentes a tentar demonstrar sua situação de eleitos, o que faziam dedicando-se ao comércio e ao acúmulo material.
Dessa maneira, o protestantismo criou uma ética do trabalho -isto é, a valorização do próprio trabalho, mais que seus resultados- e demoliu a antiga doutrina aristotélico-católica de que uma pessoa só deveria obter riqueza suficiente para viver bem. Além disso, o protestantismo advertiu seus fiéis para comportar-se moralmente fora dos limites da família, o que foi vital para criar um sistema de confiança social.
A tese de Max Weber causou polêmica desde o momento de sua publicação. Vários estudiosos afirmaram que estava empiricamente errada sobre o desempenho econômico superior dos protestantes em relação ao dos católicos; que as sociedades católicas tinham começado a desenvolver o capitalismo moderno muito antes da Reforma; e que foi a Contra-Reforma, mais que o catolicismo, que provocou o retrocesso econômico. O economista alemão Werner Sombart afirmou ter descoberto o equivalente funcional da ética protestante no judaísmo; Robert Bellah o descobriu no budismo tokugawa do Japão.
É seguro dizer que a maioria dos economistas contemporâneos não leva a sério a hipótese de Weber ou qualquer outra teoria culturalista do crescimento econômico. Muitos afirmam que a cultura é uma categoria residual em que os cientistas sociais preguiçosos se refugiam quando não conseguem desenvolver uma teoria mais rigorosa.
Realmente, há motivos para ser cauteloso quanto a usar a cultura para explicar evoluções econômicas e políticas. Os próprios textos de Weber sobre as outras grandes religiões do mundo e seu impacto na modernização servem como advertência.
Seu livro "A Religião da China -Confucionismo e Taoísmo" (1916) dá uma visão muito pálida das perspectivas de desenvolvimento econômico na China confucionista, cuja cultura, ele comenta, constitui um obstáculo apenas ligeiramente menor do que a japonesa para o surgimento do capitalismo moderno.
O que manteve a China e o Japão atrasados, hoje compreendemos, não foi a cultura, mas as instituições sufocantes, uma política ruim e diretrizes erradas. Quando isso foi solucionado, ambas as sociedades avançaram. A cultura é apenas um de muitos fatores que determinam o sucesso de uma sociedade.
Isso é algo que devemos lembrar quando escutamos alegações de que a religião do islã explica o terrorismo, a falta de democracia ou outros fenômenos no Oriente Médio.

Gradação
Ao mesmo tempo, ninguém pode negar a importância da religião e da cultura para determinar por que as instituições funcionam melhor em alguns países do que em outros. As áreas católicas da Europa demoraram mais para se modernizar economicamente do que as protestantes e levaram mais tempo para se reconciliar com a democracia. Portanto, uma grande parte do que Samuel Huntington chamou de terceira onda de democratização ocorreu entre as décadas de 1970 e 1990 em lugares como Espanha, Portugal e muitos países da América Latina.
Ainda hoje, entre as sociedades altamente seculares que formam a União Européia, existe uma clara gradação nas atitudes em relação à corrupção política entre o norte protestante e o sul mediterrâneo. Foi a entrada dos limpíssimos escandinavos na união que afinal forçou a renúncia de toda a sua liderança executiva em 1999, por causa de um escândalo menor de corrupção envolvendo um ex-primeiro-ministro francês.
"A Ética Protestante" levanta questões muito mais profundas sobre o papel da religião na vida moderna do que sugere a maioria das discussões. Weber afirma que, no mundo moderno, a ética do trabalho se desligou das paixões religiosas que lhe deram origem e que hoje ela faz parte do capitalismo racional, baseado na ciência.
Os valores, para Weber, não surgem racionalmente, mas do tipo de criatividade humana que inspirou originalmente as grandes religiões do mundo. Sua fonte definitiva, ele acreditava, estava no que rotulou de autoridade carismática, no sentido grego original de "tocado por Deus".
O mundo moderno, disse ele, viu esse tipo de autoridade dar lugar a uma forma racional-burocrática que amortece o espírito humano (produzindo o que ele chamou de "jaula de ferro"), apesar de ter tornado o mundo pacífico e próspero.
A modernidade ainda é assombrada pelo "fantasma das crenças religiosas mortas", mas foi amplamente esvaziada da espiritualidade autêntica. Isso era especialmente verdadeiro, acreditava Weber, nos Estados Unidos, onde a "busca da riqueza, despida de seu significado ético e religioso, tende a se associar às paixões puramente mundanas".
Vale a pena examinar melhor como a visão do mundo moderno de Weber teve êxito nos cem anos desde a publicação de "A Ética Protestante". De muitas maneiras, é claro, ela se mostrou fatalmente precisa: o capitalismo racional, científico, se disseminou pelo globo, levando progresso material a grandes partes do mundo e unindo-o na jaula de ferro que hoje chamamos de globalização.
Mas não é preciso dizer que a religião e a paixão religiosa não estão mortas, e não somente por causa da militância islâmica mas também por causa do surto protestante-evangélico que, em termos de números, rivaliza com o islã fundamentalista como fonte de religiosidade autêntica.
O renascimento do hinduísmo entre os indianos de classe média, a emergência do movimento Falun Gong na China, o ressurgimento da ortodoxia oriental na Rússia e outros territórios ex-comunistas ou a contínua vibração religiosa nos EUA sugerem que a secularização e o racionalismo dificilmente são os esteios inevitáveis da modernização.
Poder-se-ia até fazer uma análise mais ampla do que constitui a religião e a autoridade carismática. O último século foi marcado pelo que o teórico alemão Carl Schmitt chamou de movimentos "político-teológicos", como o nazismo e o marxismo-leninismo, baseados no compromisso apaixonado com crenças irracionais, em última instância.
O marxismo afirmava ser científico, mas seus adeptos no mundo real seguiam líderes como Lênin, Stálin ou Mao, com o tipo de compromisso cego com a autoridade que é psicologicamente indiferençiável da paixão religiosa (durante a Revolução Cultural, uma pessoa precisava tomar cuidado com o que fazia com jornais velhos; se um jornal trouxesse uma foto de Mao e alguém se sentasse sobre a imagem sagrada ou usasse o jornal para embrulhar peixe, corria o perigo de ser considerado contra-revolucionário).
Surpreendentemente, a visão weberiana de uma modernidade caracterizada por "especialistas sem espírito, sensualistas sem coração" se aplica muito mais à Europa moderna do que aos EUA atuais.

Crenças mortas
A Europa hoje é um continente pacífico, próspero, administrado racionalmente pela União Européia e totalmente secular. Os europeus podem continuar usando termos como "direitos humanos" e "dignidade humana", que estão enraizados nos valores cristãos de sua civilização, mas poucos deles conseguem explicar coerentemente por que continuam acreditando nessas coisas. O fantasma das crenças religiosas mortas assombra a Europa muito mais que os EUA.
"A Ética Protestante" de Weber foi, portanto, extremamente bem-sucedida como estímulo a um pensamento sério sobre a relação entre valores culturais e modernidade. Mas, como relato histórico da ascensão do capitalismo moderno ou como exercício de previsão social, revelou-se menos correto.
O século violento que se seguiu à publicação do livro não careceu de autoridade carismática, e o século vindouro ameaça com mais violência. Devemos nos perguntar se não foi a nostalgia de autenticidade espiritual de Weber -o que poderíamos chamar de seu nietzschianismo- que estava deslocada e, se viver na jaula de ferro do racionalismo moderno, é uma coisa tão terrível, afinal de contas.


Este texto foi publicado originalmente no "New York Times".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


A obra
"A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", de Max Weber. Org. Antônio Flávio Pierucci. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. 344 págs., R$ 38. Cia. das Letras (tel. 0/xx/ 11/3707-3500).


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