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+ cultura
Francis Fukuyama
Max contra Marx
Clássico de Max Weber que defende a religião como premissa para o surgimento
do capitalismo, "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", que
faz cem anos, se sustenta hoje como análise da relação entre cultura e modernidade
Neste ano se comemora o
centésimo aniversário do
mais famoso tratado sociológico já escrito, "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", de Max Weber [1864-1920]. Foi um livro que deixou Karl
Marx de ponta-cabeça.
A religião, segundo Weber, não
era uma ideologia produzida por interesses econômicos (o ópio das
massas, como havia colocado
Marx); era sobretudo o que havia
possibilitado o mundo capitalista
moderno.
Na década atual, quando as culturas parecem estar se chocando e a religião freqüentemente é responsabilizada pelos fracassos da modernização e da democracia no mundo muçulmano, o livro e as idéias de Weber
merecem um novo olhar.
O argumento de Weber se concentrou no protestantismo ascético. Ele
disse que a doutrina calvinista da
predestinação levava os crentes a
tentar demonstrar sua situação de
eleitos, o que faziam dedicando-se
ao comércio e ao acúmulo material.
Dessa maneira, o protestantismo
criou uma ética do trabalho -isto é,
a valorização do próprio trabalho,
mais que seus resultados- e demoliu a antiga doutrina aristotélico-católica de que uma pessoa só deveria
obter riqueza suficiente para viver
bem. Além disso, o protestantismo
advertiu seus fiéis para comportar-se moralmente fora dos limites da
família, o que foi vital para criar um
sistema de confiança social.
A tese de Max Weber causou polêmica desde o momento de sua publicação. Vários estudiosos afirmaram que estava empiricamente errada sobre o desempenho econômico
superior dos protestantes em relação ao dos católicos; que as sociedades católicas tinham começado a desenvolver o capitalismo moderno
muito antes da Reforma; e que foi a
Contra-Reforma, mais que o catolicismo, que provocou o retrocesso
econômico. O economista alemão
Werner Sombart afirmou ter descoberto o equivalente funcional da ética protestante no judaísmo; Robert
Bellah o descobriu no budismo tokugawa do Japão.
É seguro dizer que a maioria dos
economistas contemporâneos não
leva a sério a hipótese de Weber ou
qualquer outra teoria culturalista do
crescimento econômico. Muitos
afirmam que a cultura é uma categoria residual em que os cientistas sociais preguiçosos se refugiam quando não conseguem desenvolver uma
teoria mais rigorosa.
Realmente, há motivos para ser
cauteloso quanto a usar a cultura para explicar evoluções econômicas e
políticas. Os próprios textos de Weber sobre as outras grandes religiões
do mundo e seu impacto na modernização servem como advertência.
Seu livro "A Religião da China
-Confucionismo e Taoísmo" (1916)
dá uma visão muito pálida das perspectivas de desenvolvimento econômico na China confucionista, cuja
cultura, ele comenta, constitui um
obstáculo apenas ligeiramente menor do que a japonesa para o surgimento do capitalismo moderno.
O que manteve a China e o Japão
atrasados, hoje compreendemos,
não foi a cultura, mas as instituições
sufocantes, uma política ruim e diretrizes erradas. Quando isso foi solucionado, ambas as sociedades avançaram. A cultura é apenas um de
muitos fatores que determinam o
sucesso de uma sociedade.
Isso é algo que devemos lembrar
quando escutamos alegações de que
a religião do islã explica o terrorismo, a falta de democracia ou outros
fenômenos no Oriente Médio.
Gradação
Ao mesmo tempo, ninguém pode
negar a importância da religião e da
cultura para determinar por que as
instituições funcionam melhor em
alguns países do que em outros. As
áreas católicas da Europa demoraram mais para se modernizar economicamente do que as protestantes e levaram mais tempo para se reconciliar com a democracia. Portanto, uma grande parte do que Samuel
Huntington chamou de terceira onda de democratização ocorreu entre
as décadas de 1970 e 1990 em lugares
como Espanha, Portugal e muitos
países da América Latina.
Ainda hoje, entre as sociedades altamente seculares que formam a
União Européia, existe uma clara
gradação nas atitudes em relação à
corrupção política entre o norte protestante e o sul mediterrâneo. Foi a
entrada dos limpíssimos escandinavos na união que afinal forçou a renúncia de toda a sua liderança executiva em 1999, por causa de um escândalo menor de corrupção envolvendo um ex-primeiro-ministro
francês.
"A Ética Protestante" levanta
questões muito mais profundas sobre o papel da religião na vida moderna do que sugere a maioria das
discussões. Weber afirma que, no
mundo moderno, a ética do trabalho se desligou das paixões religiosas
que lhe deram origem e que hoje ela
faz parte do capitalismo racional,
baseado na ciência.
Os valores, para Weber, não surgem racionalmente, mas do tipo de
criatividade humana que inspirou
originalmente as grandes religiões
do mundo. Sua fonte definitiva, ele
acreditava, estava no que rotulou de
autoridade carismática, no sentido
grego original de "tocado por Deus".
O mundo moderno, disse ele, viu
esse tipo de autoridade dar lugar a
uma forma racional-burocrática que
amortece o espírito humano (produzindo o que ele chamou de "jaula
de ferro"), apesar de ter tornado o
mundo pacífico e próspero.
A modernidade ainda é assombrada pelo "fantasma das crenças religiosas mortas", mas foi amplamente
esvaziada da espiritualidade autêntica. Isso era especialmente verdadeiro, acreditava Weber, nos Estados
Unidos, onde a "busca da riqueza,
despida de seu significado ético e religioso, tende a se associar às paixões
puramente mundanas".
Vale a pena examinar melhor como a visão do mundo moderno de
Weber teve êxito nos cem anos desde a publicação de "A Ética Protestante". De muitas maneiras, é claro,
ela se mostrou fatalmente precisa: o
capitalismo racional, científico, se
disseminou pelo globo, levando progresso material a grandes partes do
mundo e unindo-o na jaula de ferro
que hoje chamamos de globalização.
Mas não é preciso dizer que a religião e a paixão religiosa não estão
mortas, e não somente por causa da
militância islâmica mas também por
causa do surto protestante-evangélico que, em termos de números, rivaliza com o islã fundamentalista como fonte de religiosidade autêntica.
O renascimento do hinduísmo entre os indianos de classe média, a
emergência do movimento Falun
Gong na China, o ressurgimento da
ortodoxia oriental na Rússia e outros territórios ex-comunistas ou a
contínua vibração religiosa nos EUA
sugerem que a secularização e o racionalismo dificilmente são os esteios inevitáveis da modernização.
Poder-se-ia até fazer uma análise
mais ampla do que constitui a religião e a autoridade carismática. O
último século foi marcado pelo que
o teórico alemão Carl Schmitt chamou de movimentos "político-teológicos", como o nazismo e o marxismo-leninismo, baseados no compromisso apaixonado com crenças
irracionais, em última instância.
O marxismo afirmava ser científico, mas seus adeptos no mundo real
seguiam líderes como Lênin, Stálin
ou Mao, com o tipo de compromisso cego com a autoridade que é psicologicamente indiferençiável da
paixão religiosa (durante a Revolução Cultural, uma pessoa precisava
tomar cuidado com o que fazia com
jornais velhos; se um jornal trouxesse uma foto de Mao e alguém se sentasse sobre a imagem sagrada ou
usasse o jornal para embrulhar peixe, corria o perigo de ser considerado contra-revolucionário).
Surpreendentemente, a visão weberiana de uma modernidade caracterizada por "especialistas sem espírito, sensualistas sem coração" se
aplica muito mais à Europa moderna do que aos EUA atuais.
Crenças mortas
A Europa hoje é um continente pacífico, próspero, administrado racionalmente pela União Européia e
totalmente secular. Os europeus podem continuar usando termos como
"direitos humanos" e "dignidade
humana", que estão enraizados nos
valores cristãos de sua civilização,
mas poucos deles conseguem explicar coerentemente por que continuam acreditando nessas coisas. O
fantasma das crenças religiosas
mortas assombra a Europa muito
mais que os EUA.
"A Ética Protestante" de Weber
foi, portanto, extremamente bem-sucedida como estímulo a um pensamento sério sobre a relação entre
valores culturais e modernidade.
Mas, como relato histórico da ascensão do capitalismo moderno ou como exercício de previsão social, revelou-se menos correto.
O século violento que se seguiu à
publicação do livro não careceu de
autoridade carismática, e o século
vindouro ameaça com mais violência. Devemos nos perguntar se não
foi a nostalgia de autenticidade espiritual de Weber -o que poderíamos chamar de seu nietzschianismo- que estava deslocada e, se viver na jaula de ferro do racionalismo
moderno, é uma coisa tão terrível,
afinal de contas.
Este texto foi publicado originalmente no
"New York Times".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
A obra
"A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", de Max Weber. Org. Antônio
Flávio Pierucci. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. 344 págs., R$ 38. Cia. das
Letras (tel. 0/xx/ 11/3707-3500).
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