São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

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Ponto de Fuga

A verdade das aparências


Os espiões dos velhos tempos podiam permanecer fiéis a seus bons princípios; com Rohmer e Verhoeven o mal se insere entre o rosto e a máscara

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Tempos de desengano são angustiados. Como os de hoje, em que desilusões humanas desfazem as crenças políticas e deprimem as belas seguranças no futuro tecendo incertezas.
Dois filmes complexos e admiráveis tratam disso. Diversos em muitos aspectos, mostram a mesma preocupação central. Trata-se de "Agente Triplo", de Eric Rohmer, que data de 2004, e "A Espiã", de Paul Verhoeven, de 2006. O primeiro não foi até agora lançado no Brasil, nem em cinema nem em DVD (existe uma edição portuguesa). O segundo continua sendo exibido em algumas salas do país desde o começo do ano.
Ambos expõem o descompasso entre aparências e crenças. Atacam a questão discretamente, pelas bordas. Não querem denunciar, pelo menos não de maneira direta, o vazio por trás das representações públicas que o poder oferece. Enfocam as convicções pessoais, ilusórias, que pensam entender e dar sentido claro aos acontecimentos da história e às ações dos indivíduos.
Nos dois casos, os espiões têm uma função nevrálgica; sua arma principal é o engano, é fazer crer que não são aquilo que são. Mas aqui está o ponto maior: o que, de fato, são eles?
Os espiões dos velhos tempos, os espiões de Hitchcock, por exemplo, podiam mostrar-se maus falsamente e permanecer fiéis a seus bons princípios.
Com Rohmer e com Verhoeven os falsos semblantes são vertiginosos, e o mal se insere entre o rosto e a máscara.

No man's land
Rohmer centra-se nos diálogos. Partindo daí, inventa imagens. O resultado são obras que exploram um campo indefinível entre o que é dito e o que é visto. Ou, melhor, que se encontra além das duas coisas. As falas e as imagens surgem como sintomas ou indícios de um universo accessível não pelos sentidos, apenas pela mente.
Não há violência visual e as vozes não se elevam. Verhoeven cria cenas terríveis e investe por inteiro na narração. Quer contar uma história. Mas, por trás de cada episódio, as significações se desencadeiam, multiplicam-se como se refletidas em espelhos deformantes. Modificam-se até se contradizerem e contradizerem a contradição.
Nos dois casos, os espiões encontram um território ideal em que desvanecem e no qual brotam apenas as aparências que induzem ao erro. Em Rohmer, o engano está no testemunho, na persuasão, na suspeita, que caminham juntos. Verhoeven concentra-se nos disfarces, nos esconderijos, nas armadilhas, que emaranham os personagens.
Os dois filmes transcorrem em momentos críticos da história: em "Agente Triplo", a ação se passa na França e no momento do Pacto Germano-Soviético; a trama de "A Espiã" situa-se na Holanda ocupada pelos alemães, em fins da Segunda Guerra Mundial. Momentos de agudas desordens, propícios aos equívocos e aos blefes.

Tamancos
Uma carreira na Holanda, cheia de impactos escandalosos. Partida para Hollywood: "Se eu deixei meu país", diz Verhoeven, "foi em grande parte porque o governo me julgava indecente e decadente, o que é provavelmente verdade, e não queria mais me conceder subvenções para filmar".

Apego
Como grandes cineastas antes dele, como Fritz Lang ou Hitchcock, Verhoeven dirigiu grandes sucessos comerciais nos EUA, sem abandonar suas obsessões. Fez filmes admiráveis com Sharon Stone e Schwarzenegger. "A Espiã" assinala seu retorno à pátria: o diretor queria um ambiente menos sujeito às pressões econômicas da indústria de filmes.


jorgecoli@uol.com.br


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