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Ponto de Fuga
A verdade das aparências
Os espiões dos velhos tempos podiam permanecer fiéis a seus bons princípios; com Rohmer e Verhoeven o mal se insere entre o rosto e a máscara
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Tempos de desengano são
angustiados. Como os de
hoje, em que desilusões
humanas desfazem as crenças
políticas e deprimem as belas
seguranças no futuro tecendo
incertezas.
Dois filmes complexos e admiráveis tratam disso. Diversos em muitos aspectos, mostram a mesma preocupação central. Trata-se de "Agente
Triplo", de Eric Rohmer, que
data de 2004, e "A Espiã", de
Paul Verhoeven, de 2006. O
primeiro não foi até agora lançado no Brasil, nem em cinema
nem em DVD (existe uma edição portuguesa). O segundo
continua sendo exibido em algumas salas do país desde o começo do ano.
Ambos expõem o descompasso entre aparências e crenças. Atacam a questão discretamente, pelas bordas. Não querem denunciar, pelo menos
não de maneira direta, o vazio
por trás das representações públicas que o poder oferece. Enfocam as convicções pessoais,
ilusórias, que pensam entender
e dar sentido claro aos acontecimentos da história e às ações
dos indivíduos.
Nos dois casos, os espiões
têm uma função nevrálgica;
sua arma principal é o engano,
é fazer crer que não são aquilo
que são. Mas aqui está o ponto
maior: o que, de fato, são eles?
Os espiões dos velhos tempos,
os espiões de Hitchcock, por
exemplo, podiam mostrar-se
maus falsamente e permanecer
fiéis a seus bons princípios.
Com Rohmer e com Verhoeven
os falsos semblantes são vertiginosos, e o mal se insere entre
o rosto e a máscara.
No man's land
Rohmer centra-se nos diálogos. Partindo daí, inventa imagens. O resultado são obras que
exploram um campo indefinível entre o que é dito e o que é
visto. Ou, melhor, que se encontra além das duas coisas. As
falas e as imagens surgem como
sintomas ou indícios de um
universo accessível não pelos
sentidos, apenas pela mente.
Não há violência visual e as vozes não se elevam.
Verhoeven cria cenas terríveis e investe por inteiro na
narração. Quer contar uma história. Mas, por trás de cada episódio, as significações se desencadeiam, multiplicam-se como
se refletidas em espelhos deformantes. Modificam-se até se
contradizerem e contradizerem a contradição.
Nos dois casos, os espiões encontram um território ideal em
que desvanecem e no qual brotam apenas as aparências que
induzem ao erro. Em Rohmer,
o engano está no testemunho,
na persuasão, na suspeita, que
caminham juntos. Verhoeven
concentra-se nos disfarces, nos
esconderijos, nas armadilhas,
que emaranham os personagens.
Os dois filmes transcorrem
em momentos críticos da história: em "Agente Triplo", a
ação se passa na França e no
momento do Pacto Germano-Soviético; a trama de "A Espiã"
situa-se na Holanda ocupada
pelos alemães, em fins da Segunda Guerra Mundial. Momentos de agudas desordens,
propícios aos equívocos e aos
blefes.
Tamancos
Uma carreira na Holanda,
cheia de impactos escandalosos. Partida para Hollywood:
"Se eu deixei meu país", diz
Verhoeven, "foi em grande parte porque o governo me julgava
indecente e decadente, o que é
provavelmente verdade, e não
queria mais me conceder subvenções para filmar".
Apego
Como grandes cineastas antes dele, como Fritz Lang ou
Hitchcock, Verhoeven dirigiu
grandes sucessos comerciais
nos EUA, sem abandonar suas
obsessões. Fez filmes admiráveis com Sharon Stone e
Schwarzenegger. "A Espiã" assinala seu retorno à pátria: o diretor queria um ambiente menos sujeito às pressões econômicas da indústria de filmes.
jorgecoli@uol.com.br
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