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Palavra de Deus
Pérola do pensamento conservador, discurso do papa na ONU, no último dia 18, submete o jogo político a um critério moral
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
É uma jóia do pensamento conservador o
discurso que Bento 16
pronunciou na ONU
no último dia 18.
Logo depois de saudar todos
os presentes e os povos ali representados, lembrou um trecho da carta fundadora da Organização das Nações Unidas, cujo destino seria harmonizar
atos das nações em vista do
bem comum, da paz e do desenvolvimento.
Mas, para realizar essa tarefa, necessita, como já havia indicado uma mensagem de João
Paulo 2º à ONU, vir a ser um
centro moral onde todas as nações do mundo se sintam em
casa, desenvolvendo a comum
consciência de ser uma espécie
de família das nações.
Numa penada, Bento 16
transformou uma instituição
eminentemente política num
bloco moral, cujas partes deveriam se integrar segundo os
moldes de uma família, identificada em última instância com
a família cristã. Simplesmente
submete a política à moral sem
levar em conta que a política
sempre é jogo instável de interesses e que a moralidade contemporânea é antes de tudo a
convivência de diferentes pontos de vista.
Quem assegura que o laço
entre elas será pautado por relações familiais, por conseguinte na base do amor e do respeito pessoal?
Família cristã
Essa negação da política tem
conseqüências radicais. Tudo
se passa como se os conflitos
internacionais se moldassem
pelos conflitos familiais, que
poderiam ser então resolvidos
graças à clarividência de um pai
protetor e à boa vontade das
partes. Em contrapartida, Bento 16 passa ao largo de tudo o
que a psicologia e a psicanálise
ensinaram sobre a família, suas
contradições internas, seus impulsos explosivos muitas vezes
apenas abafados.
O modelo é a idéia da família
cristã alinhavada pela graça e
pelo amor em Cristo. E todos
aqueles povos que não possuem esse ideal familial? Seriam convertidos ou domados?
A necessidade de voltar a esse padrão se evidencia, diz o papa, quando se atenta para o paradoxo de um consenso multilateral que continua em crise
porque está subordinado à decisão de uma minoria, enquanto os problemas do mundo exigem ação coletiva e comunitária. Importa é estar pronto para
trabalhar de boa-fé no respeito
à lei e promover a solidariedade
cuidando das regiões mais necessitadas do planeta.
Legião da boa vontade
Noutras palavras, a legião da
boa vontade vai amestrar os
conflitos dos grandes interesses que dilaceram o mundo dos
negócios e dos negócios da
guerra. Nem uma palavra é proferida no sentido de explicar
por que a decisão de uma minoria pode levar para o inferno legiões de deserdados.
Nem mesmo as ciências estão livres do controle dessa ética familiar.
Se elas trazem enormes benefícios para a humanidade, assim como males gigantescos, é
porque alguns aspectos de suas
aplicações desobedecem claramente à ordem da criação, tanto contradizendo o caráter sagrado da vida humana como
violando a identidade natural
da pessoa e da família.
Gostaria muito de saber o
que vem a ser essa identidade
natural quando os antropólogos estão se digladiando a respeito do sentido dessa identidade. Mas importa a Bento 16 que a busca deva ter no horizonte a autêntica imagem da
criação.
E assim ele conclui: isso não
exige nunca uma escolha entre
ciência e ética, mas se trata de
adotar um método científico
que respeite verdadeiramente
os imperativos da ética.
Inicia o parágrafo falando na
perversidade das aplicações
das ciências, mas termina advogando um método científico
subordinado aos imperativos
morais, em suma, uma razão
moral. Que as ciências não são
neutras, todos nós o sabemos,
mas o que pode vir a ser um método científico sujeito à moral?
Muitas vezes a razão é diabólica. Se assim não fosse, Mefistófeles não poderia tentar
Fausto.
Foi diabólico para os pitagóricos pensar os números irracionais, foi diabólico para toda
a razão convencional do século
19 pensar que a espécie humana tivesse uma origem comum
àquela dos macacos, e, atualmente, é diabólico pensar que
uma pessoa possa ser clonada.
Mas não é nessa diabolice, nesse enfrentamento das regras
sacralizadas que o espírito humano se mostra mais espírito
do que humano? Não é na espiritualidade dessas rupturas, no
próprio processo de julgar, que
o sagrado pode manifestar-se?
O segredo dessa intenção de
subordinar o método científico
aos imperativos da ética se desvenda na parte final do texto,
quando Bento 16 escreve: "[...]
as Nações Unidas podem contar com o diálogo entre as religiões para tirar "proveito" da
disponibilidade dos crentes em
pôr as próprias experiências a
serviço do bem comum. O seu
dever é o de propor uma visão
da fé, não em termos de intolerância, de discriminação e conflitos, mas em termos de respeito total à verdade, à coexistência, aos direitos e à reconciliação".
Note-se a artimanha: a ONU
pode contar com um diálogo
tolerante entre as religiões porquanto os crentes se dispõem
ao bem comum, promovendo a
coexistência, a vigência dos direitos e a reconciliação na medida em que a fé reside na verdade. Além da verdade científica dialogal está a verdade mística da fé.
Mas, trabalhando com hipóteses que se alteram ao longo da
própria pesquisa, as ciências
não precisam se ancorar num
terreno absolutamente seguro,
a não ser para aqueles que desde logo acreditam na verdade
da religião.
Tolerantes só com alguns
E os outros? Em nome de
uma religião que não é de todos,
a igreja passa a defender uma
posição conservadora em relação ao sexo, à prevenção da
Aids, contra a pesquisa com as
células embrionárias e outros
preconceitos ligados a uma
concepção limitada do caráter
sagrado da pessoa humana. Sejamos tolerantes, mas somente
com aqueles que acreditam ser
possível residir na verdade.
Fica evidente o pressuposto
básico: o homem reside na verdade, o que confere àqueles que
nisso acreditam a legitimidade
de controlar ciências e políticas. O resultado é uma afirmação de princípio e desinteresse
pelas conseqüências práticas.
As pessoas continuarão a fazer sexo independentemente
das normas da família cristã; os
mal informados continuarão a
manter relações sexuais que os
colocam em perigo; e os cientistas, a explorar todas as possibilidades da prática científica,
pouco se lixando a respeito do
caráter sagrado da pessoa humana.
Em nome de um princípio
aceito por alguns se inviabilizam todas as políticas de informação e de controle que possam minimizar os efeitos de práticas aventurosas.
No entanto, diz o papa, se os
países não são capazes de proteger a própria população de
graves violações aos direitos
humanos, assim como das crises humanitárias provocadas
pela natureza ou pelos próprios
homens, que a comunidade internacional intervenha com os
meio jurídicos previstos na carta da ONU e com outros instrumentos internacionais.
Agora, ao invés do controle
politicamente acordado, está
legitimada a força daqueles que
estão com a verdade.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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