São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

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Palavra de Deus

Pérola do pensamento conservador, discurso do papa na ONU, no último dia 18, submete o jogo político a um critério moral

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

É uma jóia do pensamento conservador o discurso que Bento 16 pronunciou na ONU no último dia 18.
Logo depois de saudar todos os presentes e os povos ali representados, lembrou um trecho da carta fundadora da Organização das Nações Unidas, cujo destino seria harmonizar atos das nações em vista do bem comum, da paz e do desenvolvimento.
Mas, para realizar essa tarefa, necessita, como já havia indicado uma mensagem de João Paulo 2º à ONU, vir a ser um centro moral onde todas as nações do mundo se sintam em casa, desenvolvendo a comum consciência de ser uma espécie de família das nações.
Numa penada, Bento 16 transformou uma instituição eminentemente política num bloco moral, cujas partes deveriam se integrar segundo os moldes de uma família, identificada em última instância com a família cristã. Simplesmente submete a política à moral sem levar em conta que a política sempre é jogo instável de interesses e que a moralidade contemporânea é antes de tudo a convivência de diferentes pontos de vista.
Quem assegura que o laço entre elas será pautado por relações familiais, por conseguinte na base do amor e do respeito pessoal?

Família cristã
Essa negação da política tem conseqüências radicais. Tudo se passa como se os conflitos internacionais se moldassem pelos conflitos familiais, que poderiam ser então resolvidos graças à clarividência de um pai protetor e à boa vontade das partes. Em contrapartida, Bento 16 passa ao largo de tudo o que a psicologia e a psicanálise ensinaram sobre a família, suas contradições internas, seus impulsos explosivos muitas vezes apenas abafados.
O modelo é a idéia da família cristã alinhavada pela graça e pelo amor em Cristo. E todos aqueles povos que não possuem esse ideal familial? Seriam convertidos ou domados?
A necessidade de voltar a esse padrão se evidencia, diz o papa, quando se atenta para o paradoxo de um consenso multilateral que continua em crise porque está subordinado à decisão de uma minoria, enquanto os problemas do mundo exigem ação coletiva e comunitária. Importa é estar pronto para trabalhar de boa-fé no respeito à lei e promover a solidariedade cuidando das regiões mais necessitadas do planeta.

Legião da boa vontade
Noutras palavras, a legião da boa vontade vai amestrar os conflitos dos grandes interesses que dilaceram o mundo dos negócios e dos negócios da guerra. Nem uma palavra é proferida no sentido de explicar por que a decisão de uma minoria pode levar para o inferno legiões de deserdados. Nem mesmo as ciências estão livres do controle dessa ética familiar.
Se elas trazem enormes benefícios para a humanidade, assim como males gigantescos, é porque alguns aspectos de suas aplicações desobedecem claramente à ordem da criação, tanto contradizendo o caráter sagrado da vida humana como violando a identidade natural da pessoa e da família.
Gostaria muito de saber o que vem a ser essa identidade natural quando os antropólogos estão se digladiando a respeito do sentido dessa identidade. Mas importa a Bento 16 que a busca deva ter no horizonte a autêntica imagem da criação.
E assim ele conclui: isso não exige nunca uma escolha entre ciência e ética, mas se trata de adotar um método científico que respeite verdadeiramente os imperativos da ética.
Inicia o parágrafo falando na perversidade das aplicações das ciências, mas termina advogando um método científico subordinado aos imperativos morais, em suma, uma razão moral. Que as ciências não são neutras, todos nós o sabemos, mas o que pode vir a ser um método científico sujeito à moral? Muitas vezes a razão é diabólica. Se assim não fosse, Mefistófeles não poderia tentar Fausto.
Foi diabólico para os pitagóricos pensar os números irracionais, foi diabólico para toda a razão convencional do século 19 pensar que a espécie humana tivesse uma origem comum àquela dos macacos, e, atualmente, é diabólico pensar que uma pessoa possa ser clonada.
Mas não é nessa diabolice, nesse enfrentamento das regras sacralizadas que o espírito humano se mostra mais espírito do que humano? Não é na espiritualidade dessas rupturas, no próprio processo de julgar, que o sagrado pode manifestar-se?
O segredo dessa intenção de subordinar o método científico aos imperativos da ética se desvenda na parte final do texto, quando Bento 16 escreve: "[...] as Nações Unidas podem contar com o diálogo entre as religiões para tirar "proveito" da disponibilidade dos crentes em pôr as próprias experiências a serviço do bem comum. O seu dever é o de propor uma visão da fé, não em termos de intolerância, de discriminação e conflitos, mas em termos de respeito total à verdade, à coexistência, aos direitos e à reconciliação".
Note-se a artimanha: a ONU pode contar com um diálogo tolerante entre as religiões porquanto os crentes se dispõem ao bem comum, promovendo a coexistência, a vigência dos direitos e a reconciliação na medida em que a fé reside na verdade. Além da verdade científica dialogal está a verdade mística da fé.
Mas, trabalhando com hipóteses que se alteram ao longo da própria pesquisa, as ciências não precisam se ancorar num terreno absolutamente seguro, a não ser para aqueles que desde logo acreditam na verdade da religião.

Tolerantes só com alguns
E os outros? Em nome de uma religião que não é de todos, a igreja passa a defender uma posição conservadora em relação ao sexo, à prevenção da Aids, contra a pesquisa com as células embrionárias e outros preconceitos ligados a uma concepção limitada do caráter sagrado da pessoa humana. Sejamos tolerantes, mas somente com aqueles que acreditam ser possível residir na verdade.
Fica evidente o pressuposto básico: o homem reside na verdade, o que confere àqueles que nisso acreditam a legitimidade de controlar ciências e políticas. O resultado é uma afirmação de princípio e desinteresse pelas conseqüências práticas.
As pessoas continuarão a fazer sexo independentemente das normas da família cristã; os mal informados continuarão a manter relações sexuais que os colocam em perigo; e os cientistas, a explorar todas as possibilidades da prática científica, pouco se lixando a respeito do caráter sagrado da pessoa humana.
Em nome de um princípio aceito por alguns se inviabilizam todas as políticas de informação e de controle que possam minimizar os efeitos de práticas aventurosas.
No entanto, diz o papa, se os países não são capazes de proteger a própria população de graves violações aos direitos humanos, assim como das crises humanitárias provocadas pela natureza ou pelos próprios homens, que a comunidade internacional intervenha com os meio jurídicos previstos na carta da ONU e com outros instrumentos internacionais.
Agora, ao invés do controle politicamente acordado, está legitimada a força daqueles que estão com a verdade.


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .


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