São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

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Com a língua solta

O professor de Harvard Steven Pinker e o ganhador do Booker Prize Ian McEwan discutem seus novos livros, o ensaio "O Material do Pensamento" e o romance "Na Praia", debatem os discursos de George W. Bush e Bill Clinton e falam sobre relações de amor e amizade

Divulgação
Cena de "Desejo e Reparação" (Joe Wright), baseado no romance "Reparação", de McEwan


DA REDAÇÃO

Duas das mais destacadas figuras em suas áreas, o escritor inglês Ian McEwan e o psicólogo evolucionista Steven Pinker se encontraram em 2007 para debater aquilo de que mais entendem, embora de pontos de vista diferentes: a linguagem.
Aclamado por obras como "Amsterdam" (Booker Prize de 1998), o recente "Na Praia" e a obra -prima "Reparação" -inspiradora do filme "Desejo e Reparação", que concorreu ao Oscar deste ano-, McEwan é o mais importante escritor inglês em atividade.
Já Pinker, professor na Universidade Harvard (EUA), é um grande estudioso das origens e dos mecanismos da linguagem, além de divulgador do tema em livros como "O Instinto da Linguagem".
A conversa inusitada, de que o Mais! reproduz, a seguir, os principais trechos, ocorreu no Festival de Literatura de Cheltenham (Reino Unido) e foi publicada originalmente no último número da revista "Areté".  

IAN McEWAN - Steven Pinker é um desses cientistas extraordinários que sabem atrair a atenção dos leigos. Um dos grandes prazeres de ler seus livros é entrar nos processos de pensamento de um homem de extrema fluência.
Um pouco de história: nos dias muito sombrios em que a teoria literária dominava suprema os dutos do pensamento na academia e eu vivia em Oxford, um bom amigo apareceu certa noite.
Ele estava incrivelmente triste porque seus alunos achavam que não poderiam mais ler "Middlemarch" [romance de de George Eliot] ou qualquer coisa do cânon antes que aprendessem a ler -e para isso precisavam aprender teoria. Levantei rapidamente da cadeira e disse: "Ah! Conheço o livro: uma teoria da linguagem baseada em evidências". E coloquei nas mãos dele "O Instinto da Linguagem", de Steven Pinker, umas das melhores obras sobre o modo como usamos e adquirimos a linguagem.
Ela explica que aqueles que acreditam que a linguagem é adquirida por pura imitação estão abordando o problema de maneira errada.
Mais tarde, descobri -e realmente pretendia escrever para você [dirigindo-se a Pinker] sobre isso- que hoje todos os alunos de meus amigos devem ler no primeiro ano, e na verdade no primeiro semestre, capítulos selecionados de seu livro -como um antídoto à especulação de poltrona sobre fases do espelho e tudo o mais na teoria literária. Então, você teve um grande impacto na Universidade de Oxford.
Steve, antes de falarmos sobre seu novo livro, "O Material do Pensamento" -de várias maneiras, uma síntese do que aconteceu antes-, quero lhe perguntar, em primeiro lugar, sobre seu papel como escritor de ciência popular.
Por trás dessa figura existe um cientista muito ativo, que publica trabalhos que pessoas como nós nunca lêem. Essa ciência dura tem algo a ver com a maneira como as crianças aprendem a língua. Você, como cientista, poderia nos falar sobre isso?

STEVEN PINKER - Cheguei à linguagem partindo da psicologia. Não sou um lingüista. Sempre fui um psicólogo experimental.
Na verdade, minha pesquisa de doutorado e grande parte de minha pesquisa anterior foram sobre imagens tridimensionais, sobre reconhecimento de objetos e atenção visual.
Para mim, a linguagem é uma das coisas incríveis que a mente humana é capaz de fazer, e em certo ponto de minha carreira decidi me concentrar nela em termos de pesquisa. Um dos principais tópicos que me interessam na psicologia da linguagem é, como você disse, o modo como as crianças aprendem.
As crianças têm de aprender uma determinada língua, porque, se forem criadas no Japão, acabarão falando japonês e, se forem criadas na Inglaterra, acabarão falando inglês.
Mas, claramente, aprender uma língua não pode ser apenas uma questão de gravar frases individuais, porque as crianças não são papagaios.
Elas não regurgitam simplesmente o que ouvem de seus pais. A essência da linguagem é a capacidade de juntar palavras em novas combinações, e é o que permite expressar um leque ilimitado de pensamentos.
Assim, o problema científico no desenvolvimento da linguagem é: como as crianças passam de um número finito de sentenças que ouvem de seus pais ou pares e extraem o algoritmo subjacente que combina palavras em frases e sentenças e palavras maiores?
Em certa fase de minha pesquisa, me concentrei em um fenômeno muito pequeno da linguagem. Escrevera uma espécie de teoria de tudo, um livro técnico, delineando uma teoria da aquisição da linguagem. Mas acabou sendo um problema grande demais para estudar empiricamente -simplesmente o desenvolvimento da linguagem em toda a sua glória-, por isso em diversas etapas eu escolhi dois problemas. Um deles levou a este novo livro, "O Material do Pensamento".
Mas o outro era sobre verbos irregulares, que parece um tema improvável para se dedicar uma década e meia de sua vida.
Eu digo que está na grande tradição acadêmica de saber cada vez mais sobre cada vez menos, até você saber tudo sobre nada.
O que talvez seja um bom antídoto para meus outros livros, que acho que podem ser criticados por saber cada vez menos sobre cada vez mais, até você saber nada sobre tudo. Mas, neste caso, interessam-me os verbos irregulares -verbos que têm uma forma de passado imprevisível.
Um verbo regular pode ser memorizado, mas não precisa ser. Quando um novo aparece na língua, você não precisa procurar no dicionário sua forma passada nem precisa consultar a memória, basta acrescentar a terminação regular. Isso resume o que considero os dois motores da linguagem: memorizar palavras e combinar pedaços de palavras de acordo com regras.
A outra área em que me concentrei -estreitando o interesse, em vez da linguagem como um todo- foram os verbos. Isto é, a sintaxe e a semântica dos verbos. O ímpeto imediato foi a pergunta: como as crianças adquirem essa parte tão importante da linguagem?
O que torna os verbos importantes é que cada verbo não é apenas uma palavra, mas um alicerce para o resto da sentença: o verbo define espaços para o sujeito, exige um objeto se for um verbo transitivo, às vezes complementos do objeto e assim por diante. O verbo realmente mantém a frase unida.
Entender como as crianças adquirem os verbos é, em grande parte, entender como elas aprendem a falar em geral.
Mas quanto mais você examina os verbos, mais difícil é entender, em primeiro lugar, como funcionam para você e para mim e, ainda mais, como as crianças entendem isso.
Apenas para propor um quebra-cabeça, simplesmente entender a sintaxe dos verbos não é simples. Você pode dizer "Eu despejei água no copo" ["I poured water into the glass"], mas é um pouco estranho dizer "Eu despejei o copo com água" ["I poured the glass with water"].
Já com o verbo "encher" ["fill"], funciona ao contrário: você pode encher um copo com água, mas não pode encher água em um copo. É um truque arbitrário? Acontece que a resposta é "não", pois era previsível por um aspecto muito sutil do significado dos verbos.
Embora você possa pensar que eles são quase sinônimos (duas maneiras de colocar uma substância em um recipiente), a sutil diferença é que interpretamos "despejar" ["pour"] como fazer alguma coisa com a água, enquanto interpretamos "encher" ["fill"] como fazer algo com o copo -qual seja, fazê-lo mudar de estado, de vazio para cheio.
E, se há uma regra simples que diz "a coisa que é afetada é o objeto direto", a regra, com algumas modificações, poderia ser universal. Poderia ser encontrada em todas as línguas.
Assim, fazer a interpretação certa, enxergar o evento da maneira adequada, permite prever que verbo e que estrutura sintática são adequados. Se você estiver fazendo algo com o copo, o copo é o objeto -portanto, "encha o copo"- e, se você estiver fazendo algo com a água, a água é o objeto -portanto, "despeje a água".
Isso abriu o mundo dos conceitos e da semântica que explorei no início de "O Material do Pensamento": quais são os elementos que compõem o significado dos verbos, elementos como causa, objetivo, ato, caminho, e como eles dão às pessoas maneiras alternativas de interpretar o mesmo evento.
Isso torna o resto da vida muito interessante. Se algo tão simples quanto colocar água em um copo pode ser pensado de duas maneiras quase incompatíveis, o que dizer sobre conceitos como guerra, aborto, pesquisa de células-tronco, impostos e assim por diante?

McEWAN - É incrível como uma pequena coisa pode abrir coisas maiores. Vamos ficar nos verbos mais um pouco: você cita um comentário feito pelo presidente [George W.] Bush que pode ou não ter causado um grande problema a ele.
Poderia falar a respeito? Há dois verbos em questão: um verbo de Clinton, "is" ["é", "há"] -que exigiu certa definição e uma tática elaborada- e um verbo de Bush, "learned" ["aprendeu", "foi informado", "soube"], que tem uma conexão britânica. Steven, você poderia nos conduzir por esses verbos e suas conseqüências?

PINKER - Na escalada da Guerra do Iraque, muito se falou nas infames 16 palavras do discurso sobre o Estado da União feito por Bush em janeiro de 2003, poucos meses antes da invasão.
No discurso, uma das principais justificativas para a invasão foi que "a inteligência britânica "soube" que Saddam Hussein tentou obter quantidades significativas de urânio na África". Estou citando de memória, mas se aproxima bastante.
Como você deve se lembrar, havia uma teoria segundo a qual Saddam estaria construindo armas de destruição em massa, e aquela seria uma das principais provas.
Acontece que a inteligência britânica acreditava nisso, e tinha alguns motivos para acreditar, mas sabia-se que não era nada conclusivo. Certamente, em Washington, os assessores de Bush não acreditavam que essa fosse uma prova, mas a levaram a sério.
Agora o uso comum da palavra "learn" [aprender] é o que os lingüistas chamam de verbo factivo -isto é, você não pode "aprender" algo que seja falso, a não ser no contexto específico da escola. Na escola, você pode dizer que aprendemos que havia quatro papilas gustativas, e agora são cinco. Mas você não pode aprender algo que não seja verdadeiro.
Assim, ao dizer "a inteligência britânica "has learned'", isso implicou uma certeza por parte de Bush que na verdade conflitava com a situação real da informação que se admitia em seu próprio círculo.
Minha ilustração favorita do que é um verbo factivo vem de uma anedota do escritor Mark Twain. Ele disse: "Quando eu era jovem, lembrava de tudo, tivesse acontecido ou não; agora que estou envelhecendo, minha memória falha, só consigo me lembrar de coisas que não aconteceram". [Risos]
Vocês todos riram, e por que isso é engraçado? Não é engraçado que sua memória falhe com a idade, mas, sim, o fato de que você não pode lembrar de algo que não aconteceu. "Lembrar" é um verbo factivo: implica que, quando você lembra, é verdadeiro. Da mesma forma, "learn" é um verbo factivo.

McEWAN - Então, podemos seguir para o verbo "is"?

PINKER - Depende de qual for o significado de "is".

McEWAN - Sim, esse foi o famoso comentário do ex-presidente [Bill] Clinton...

PINKER - Foi uma das cinco acusações no impeachment. Ele foi acusado, mas não condenado, nesse processo em duas etapas do sistema norte-americano. O advogado de Clinton havia sido interpelado sobre se havia relação sexual entre Clinton e Monica Lewinsky. O advogado, falando em nome de Clinton, disse "não, não há" ["no, there isn't"].
A realidade, é claro, é que eles haviam tido um caso, que já havia terminado na época do depoimento.
Quando esse depoimento foi contestado mais tarde como completamente falso, ele disse que dependia do significado de "há" ["is"]. Se significar "há" no momento presente, a declaração foi precisa. Se "há" significar "há e sempre houve", então não seria precisa -mas não é assim que as pessoas entendem comumente o tempo presente.
Se você examinar direito, a explicação era semanticamente justificável.
Acho que há dois motivos para isso ter provocado gritos de zombaria e indignação. Um deles é que, diferentemente de um fato discreto -como deixar um emprego e começar em outro, assinar um papel, receber seu pagamento de uma fonte diferente etc.-, o modo como um caso de amor ou de sexo termina é impreciso.
Quando você tem uma série de encontros que se agrupam em uma nuvem de eventos temporários, o que você pode contar no fim é discutível.
Quantos meses têm de passar para que se possa dizer que não há sexo? Isto é, poderia haver amanhã, não poderia? Esse foi um aspecto.
O outro, é claro, é a diferença entre o que os lingüistas chamam de semântica versus pragmática. "Pragmática" é o que as palavras significam e como você as usa em um contexto social. Grande parte do uso que fazemos dos verbos e da linguagem depende de interpretá-los e embalá-las em contextos.
Por exemplo, um fumante que diz "parei de fumar", mas cujo último cigarro foi dez minutos atrás, está usando uma sentença semanticamente defensável. Mas, diante do contexto, damos risada [dessa declaração]. Comumente, na conversação, cooperamos com nossos interlocutores, damos indícios do que o ouvinte espera escutar.
Se não fizéssemos isso, a conversa empacaria na linguagem dos contratos jurídicos.
O fato é que, em um contexto jurídico, por definição, você não está em uma situação de cooperação, está em uma situação de oposição.
Quando você jura dizer a verdade, nada mais que a verdade, está em uma situação em que o conceito de "toda a verdade" está em discussão. Toda a verdade é o que eu acho que estava em questão ali. Obviamente, o promotor queria saber se houvera sexo alguma vez, e não se eles estavam atualmente tendo um caso.
Então o que Clinton disse, por meio de seu advogado, embora sendo tecnicamente preciso, foi contrário ao espírito da conversa.
Mas não é necessariamente desonesto, pois, no processo legal, a questão é aquilo que você é obrigado a dizer. Clinton disse -acho que com razoável precisão- em sua defesa, mais tarde, que estava tentando ser verdadeiro -mas não extremamente útil. Na conversa comum temos de ser as duas coisas, e acho que foi isso o que causou indignação.

McEWAN - Não são anjos dançando em uma cabeça de alfinete. Caso reste alguma dúvida nesta sala sobre a extraordinária importância e as conseqüências da semântica, poderíamos tomar apenas mais um exemplo.
Trata-se daquele com que você inicia seu livro, referente à destruição das Torres Gêmeas em 11/9/2001: saber se foi um evento ou dois. Muito dinheiro dependia dessa decisão, e a semântica foi crucial para as vastas somas de dinheiro pagas por uma seguradora...

PINKER - Três bilhões e meio de dólares estavam em jogo. O locatário do World Trade Center tinha uma apólice de seguro que lhe dava direito a US$ 3,5 bilhões por evento destrutivo.
Durante muitos anos, numa série de julgamentos dispendiosos, os advogados discutiram se o que aconteceu no 11 de Setembro foi um evento -porque um único plano foi executado- ou dois eventos -porque dois edifícios diferentes foram atingidos.
Nesse caso, o modo como embalamos o fluxo de tempo nessas unidades que chamamos de "eventos" foi o pomo da discórdia. É outro exemplo de como tomamos os acontecimentos no tempo e de como aplicamos a mesma atitude mental que aplicamos aos objetos no espaço. Todos os conceitos que aplicamos aos objetos -por exemplo, a diferença entre conceitos genéricos como "cerveja" e quantidades distintas específicas como "mais uma cerveja"- se aplicam ao tempo.

McEWAN - Qual foi a decisão?

PINKER - Eles acabaram em um acordo de US$ 4,25 bilhões.

McEWAN - Quando eu estava na universidade, aprendi, para usar esse verbo factivo, que Wittgenstein estava certo ao dizer que os limites do meu mundo são os limites da minha língua. Mas Chomsky e depois você -refinando muito Chomsky-, ao considerar como o pensamento realmente evolui -e por experimentação empírica-, sugerem que os modos como pensamos independem da linguagem. Pode esclarecer essa questão antes de prosseguirmos?

PINKER - Bem, o aforismo de Wittgenstein, provavelmente não o único de seus aforismos, realmente não resiste ao escrutínio. Os limites da sua linguagem não podem ser os limites do seu mundo. E não pode ser verdade que pensamos em nossa língua nativa, em inglês, japonês e assim por diante.
Cheguei a essa conclusão ao refletir sobre o problema da aquisição da linguagem. Como as crianças adquirem uma linguagem, para começar? Se suas mentes estão totalmente vazias de pensamentos, como elas interpretam os ruídos que vêm da boca de seus pais para decifrar o código da linguagem?


"Um relacionamento sexual e um relacionamento platônico são incompatíveis"
[Pinker]

Aproveitando idéias desenvolvidas por outros na teoria da aquisição da linguagem, abordei o problema em termos de uma criança construindo uma situação, adivinhando o que o falante pretende e, então, conectando sua interpretação do evento -à qual chegou não por meio da linguagem, mas de seus sentidos, de sua compreensão dos motivos das pessoas, de sua interpretação da situação- à verdadeira seqüência da esquerda para a direita das palavras que escuta.
Se a criança não fosse capaz de interpretar o mundo em termos que se equiparassem aos da linguagem, como ela aprenderia a língua?
E, também, de onde vem a língua? Não é que ela tenha sido definida por um comitê e entregue a nós como um protocolo de uma linguagem de programa de computador.
A língua é principalmente um fenômeno popular. As pessoas estão constantemente inventando novos termos, novos idiomas, tomando emprestado de outras línguas, produzindo sons que esperam que lembrem aos ouvintes uma determinada idéia.
E muitas vezes temos momentos, como estou tendo agora, em que não conseguimos encontrar as palavras para dizer o que pretendemos, o que sugere que há algo que pretendemos, que precisamos das palavras para vestir -que o pensamento precede as palavras.

McEWAN - William James tem uma descrição maravilhosa de como é esquecer a palavra que você procura. Ele diz que "você sabe tudo o que não é".
Em outras palavras, você tem uma sensação muito clara da forma de uma coisa e sabe perfeitamente bem o que ela significa, mas ela está ali invisível, em uma rede de outras palavras que não servem.

PINKER - Realmente. Há todo um gênero recreativo de cunhagem de palavras para casos em que não apenas você não consegue encontrar uma palavra, como a palavra não existe.

McEWAN - [Em seu livro] Você diz que nada faz um lingüista revirar mais os olhos do que ouvir alguém dizer: "O alemão é a única língua para fazer ciência" ou "o francês é uma língua maravilhosamente lógica" e coisas desse tipo.

PINKER - Bem, um dos motivos é que a língua é um alvo em movimento. Talvez seja verdade que, em uma determinada fase de uma língua, não se possa fazer muita ciência com ela, mas isso deve ter sido verdade sobre o inglês em certo momento ou sobre qualquer outra língua. Você muda a língua e empresta termos, inventa termos.
Um exemplo drástico foi o projeto maluco de reviver o hebraico no assentamento judeu na Palestina no fim do século 19. Como parte da ideologia, eles queriam se livrar do iídiche, a língua do gueto. Daí o hebraico, uma língua que não havia sido falada em conversação por milhares de anos.
Mas tinham de começar a falar sobre tratores, fazendas coletivas etc. E o fizeram. A língua mudou e continua mudando, como todas as línguas, e você consegue fazer o que precisa.

McEWAN - Não foi Daniel Dennett quem estava chegando a isso por outro lado? Ele sugeriu que isso está muito bem, mas há coisas que não podemos pensar sem a língua, especialmente a solução de problemas. Quero dizer, o "mentalês" só pode levá-lo até certo ponto...

PINKER - Sim, acho que com certos conceitos, como os dias da semana, seria muito difícil.
Talvez não impossível, mas certamente seria difícil aprender o conceito de "semana" sem que lhe expliquem em uma língua. Mas acho que, mesmo aí, o que ocorre é pensamento. Não é que a língua seja implantada e lhe dê o conceito.
Acho que língua é o que você usa para explicar para outras pessoas um conceito que elas não poderiam captar de outra maneira -apesar disso, o que elas adquirem no fim desse processo não é apenas um trecho de linguagem.
Não é suficiente dizer "terça-feira" para entender o conceito de terça-feira. A palavra deve estar inserida em uma explicação que se baseia em uma compreensão muito maior do tempo, dos dias, de instituições sociais e assim por diante.

McEWAN - Você descreve certas tribos que não contam além do número dois, o que é muito difícil entendermos. E você se pergunta por que isso ocorre, já que a língua é uma reação ao mundo e o mundo é cheio de coisas que são contáveis. Como isso pôde acontecer?

PINKER - Bem, eles existem. Acho que é bastante comum, não são apenas uma ou duas tribos. Pode até ser a maneira padrão de expressar números, algo que podemos até compartilhar com outros primatas -individualizar um, dois, três ou quatro objetos como um conceito de número, mas além disso é apenas "muitos".
Nós também temos a sensação aproximada de que um bando de aves é duas vezes maior que outro, sem ter a capacidade de contá-los individualmente.
Perguntei a um antropólogo que trabalhou com um desses povos, e ele disse: "Bem, eles não têm grandes números de objetos indistinguíveis, eles apenas os conhecem individualmente". Então, um caçador conhece cada flecha que ele fez. Não precisará dizer "Eu tenho sete flechas".
É mais ou menos a mesma coisa quando não sabemos exatamente quantas pessoas há em nossa família toda se incluirmos todos os primos, pois conhecemos cada primo. Pensando bem, tenho a capacidade de contá-los, mas realmente não sei qual é o número, e é essa atitude mental que eles têm em relação a todas as suas posses.

McEWAN - Então contar é uma invenção?

PINKER - Contar é uma invenção. Há basicamente duas coisas que são invenções. Uma delas é o sistema recursivo de números, que nos permite dar um número preciso para grandes quantidades. A conquista do sistema numérico ocidental é permitir que você aplique seu conceito de números exatos a grandes quantidades. Essa é a vantagem, e o algoritmo para fazer isso é contar.

McEWAN - Você disse que a maioria de nós tem a oportunidade de criar uma palavra, pelo menos uma vez na vida, ao dar nome a uma criança. E aqui topamos com um certo paradoxo, porque, quando o fazemos, temos a ilusão de estarmos simplesmente escolhendo um nome que nos agrada.
Mas então descobrimos que i9fazemos parte de uma comunidade de pessoas que fizeram escolhas semelhantes, pessoas cujas escolhas, cedo ou tarde, vão parecer curiosamente datadas. O que esse nomear nos revela a respeito de nós mesmos? E essa aparente liberdade e ausência de liberdade?

PINKER - Sim, esse desconcertante constrangimento de nossa sensação de livre-arbítrio. Freqüentemente se vêem pais que dizem "demos a nossa filhinha o nome de Madeline porque minha mulher tinha uma tia-avó que amava, chamada Madeline, e achamos que seria um nome singular". Então, vão à creche e descobrem que há três outras madelines ali.
Boa parte das hipóteses traçadas por pessoas que explicam por que nomes entram e saem de moda pode ser desmentida quando se analisam os dados cronológicos sobre o aumento e a queda na popularidade de nomes.
É fácil fazê-lo nos EUA porque a administração da seguridade social publica um banco de dados com todos os nomes que constam de seus registros, praticamente exaustivos desde a década de 1890. É possível passar muito tempo traçando o gráfico da ascensão e queda de seu nome favorito.
A hipótese é que os nomes refletem tendências sociais. A razão pela qual houve uma alta nos nomes bíblicos nos anos 1970 e 1980 -Adam, Joshua, Sarah, Rachel-, teria sido a curva ascendente dos sentimentos religiosos. Mas não é verdade: no momento em que os nomes bíblicos estavam em ascensão, a observância religiosa estava caindo.
Ou então as crianças recebem os nomes de celebridades reais ou fictícias, personagens de telenovelas, atrizes, cantores pop e assim por diante. Novamente, parece haver poucas ocasiões em que isso acontece.
Em lugar de haver uma causa externa que resulta nas escolhas de nomes, o que acontece de fato é uma dinâmica interna, na qual a escolha de um nome em uma geração é causada pelas escolhas de nomes na geração anterior.
Os pais reagem aos nomes que estão aí fora -nomes que são demasiado geriátricos, porque todas as pessoas das quais se lembram que os têm estão em lares de idosos.
Ou nomes que são suficientemente velhos, talvez os nomes de gerações anteriores, de modo que parecem estar prontos para serem trazidos de volta.

McEWAN - Em suas explorações da linguagem e da natureza humana, você fala sobre o que as pessoas fazem quando conversam. Quero citar suas palavras. Você diz: "Por que as pessoas não dizem simplesmente o que querem dizer?"
"A razão disso é que parceiros numa conversa não são modems que descarregam informações nos cérebros uns dos outros. As pessoas são muito, muito sensíveis no que diz respeito a seus relacionamentos. Sempre que você fala com alguém, está presumindo que vocês dois têm uma certa familiaridade, algo que suas palavras poderiam modificar."
"Por isso, cada oração precisa fazer duas coisas ao mesmo tempo: transmitir uma mensagem e continuar a negociar aquele relacionamento." O que precisamos fazer para negociar em um momento muito fugaz de troca?

PINKER - Um pedido cortês é o exemplo mais simples de um ato de discurso indireto, que pode incluir ameaças veladas, subornos velados, insinuações sexuais. No caso do pedido cortês, por um lado você não quer tratar seu interlocutor como alguma espécie de subordinado ou ajudante a quem você possa dar ordens à vontade. Lançar um imperativo pressupõe que você pode esperar a aquiescência do interlocutor.
E, com alguém com quem não tem muita intimidade ou a quem não é muito superior, a relação é delicada. Você não quer fazer com que pareça que vocês têm uma relação de dominante e subordinado, então, se disser "se você pudesse me passar o sal, isso seria brilhante", e, se seu interlocutor não supuser que você endoidou, ele conseguirá apreender o pedido subjacente às palavras.
O imperativo é transmitido, mas o relacionamento de não-dominância é preservado.

McEWAN - Ok. Então, passando para o diálogo sexual, você evoca para nós uma charge que mostra um homem ao pé da escada, no final da noite, dizendo à mulher com quem saiu: "Espere aqui, vou buscar as gravuras e as trarei para baixo". O que acontece quando um homem diz a uma mulher: "Suba comigo para ver minhas gravuras"?

PINKER - A coisa funciona em vários níveis. Um deles é que o homem não sabe se a mulher quer ou não ter um relacionamento sexual com ele. Vocês vão simplesmente sair para jantar ou ir ao cinema.
Mas, embora o companheirismo seja o objetivo ostensivo da noite, o que faz dela um encontro é a possibilidade de um relacionamento sexual. No entanto um relacionamento sexual e um relacionamento platônico são incompatíveis, de


Parece que sedução e suborno têm alguma espécie de relação semântica
[McEwan]

muitas maneiras. Tem que ser ou peixe ou frango. O homem não sabe quais são as intenções da mulher. Se ele dissesse diretamente, por exemplo, "quer subir e transar comigo?" e ela aceitasse, seria ótimo.
Se, por outro lado, ela disser que não, isso provocaria uma situação na qual já teria ficado claro que o interesse dele era de natureza sexual, e o dela, não.
Então teríamos uma emoção especial, à qual damos o nome de constrangimento, e que entra em cena em situações nas quais há um desencontro entre o relacionamento presumido por uma pessoa e o relacionamento presumido pela outra.
Uma maneira de evitar o constrangimento é formular a pergunta de maneira tal que um parceiro ou uma parceira interessados possam reconhecer a intenção -e assim consumar o "negócio"- ou uma parte não interessada possa interpretar a proposta segundo seu enunciado declarado, com isso preservando o relacionamento que garante mais conforto a ambos.
Assim, há uma negabilidade plausível. Sartre apresenta uma versão desse cenário, uma parábola filosófica, em "O Ser e o Nada" (capítulo 2, "Má-Fé", seção 2, "Padrões de Má-Fé").
Essa também é a fonte por trás de tentativas veladas de suborno, do tipo "bem, sr. policial, será que existe algum jeito de resolvermos essa multa sem muitos problemas?".

McEWAN - Explique melhor o suborno, porque parece que sedução e suborno têm alguma espécie de relação semântica. Temos o policial de trânsito que já colocou o papel da multa no seu carro, e você não sabe se ele é corrupto ou não. Então como faz para lhe oferecer uma propina?

PINKER - Bem, isso realmente tem certa importância prática. O problema de dizer "se eu lhe der dez libras, o sr. me deixa ir embora?" é que você não sabe quais são as intenções do policial. Você pode estar correndo o risco de ser preso por tentativa de suborno, cujo custo seria muito maior do que o da multa.
Há uma cena de "Fargo" [dos irmãos Coen] da qual alguns de vocês talvez se recordem: se o policial lhe pede para mostrar sua carteira de habilitação e você abre sua carteira, com o documento exposto e uma cédula de US$ 50 ligeiramente para fora, e então diz "será que existe algum jeito de resolvermos isso agora mesmo?", o policial corrupto pode aceitar o suborno, enquanto o honesto não terá como provar a tentativa de suborno num tribunal.
Na "Gourmet Magazine" foi publicado um artigo interessante em que um editor desafiou um crítico de restaurantes a ver se conseguiria, pagando propina, um lugar nos restaurantes mais exclusivos de Manhattan sem reserva anterior.
O interessante foi que, em primeiro lugar, o crítico de restaurantes espontaneamente recorreu a um eufemismo -"me pergunto se não teria ocorrido algum cancelamento no restaurante"- enquanto segurava uma cédula de US$ 20 discretamente, com a mão virada para baixo. Ou então ele dizia "esta é uma noite realmente importante para mim".
A outra coisa interessante é que esse método funcionou todas as vezes -todos os maîtres são subornáveis.

McEWAN - Mas em todos os casos, o jornalista o fez de tal maneira que pudesse plausivelmente negar que estivesse oferecendo propina.

PINKER - As chaves principais deste quebra-cabeça são a lógica-teórica-de-jogo da negabilidade plausível e o fato de que os desencontros de relacionamentos na vida social podem provocar constrangimento.
A possibilidade de alguém recusar um convite para um encontro sexual ou de um maître de restaurante responder, indignado, "em que espécie de estabelecimento o senhor acha que se encontra?" nos apavora tanto que é comparável à possibilidade de sermos presos.
Mas existe outra parte também. Apesar de todas as glórias da linguagem, parece que fomos constituídos de maneira a sentir que existem áreas nas quais a linguagem é inapropriada. Ela é inapropriada, especialmente, num relacionamento comunal, um dos três tipos de relacionamento humano identificados pelo antropólogo Alan Fiske.
Cimentamos nossos relacionamentos íntimos, românticos e sexuais com outras formas de comunicação -pelo contato corporal, abraços, apertos de mão, carinhos, sexo, tapinhas nas costas. Isso vai depender do relacionamento.
Refeições comunais são um ritual importantíssimo de união em todo o mundo e, é claro, constituem parte essencial de um encontro romântico.
Assim, para cimentar um relacionamento íntimo dependemos de uma noção quase folclórico-biológica de fusão de essências.
E a linguagem não apenas não está à altura dessa tarefa como pode até mesmo subverter o relacionamento. Qualquer pessoa que formulasse precisamente em palavras os termos de seu relacionamento romântico não estaria compreendendo a essência de um relacionamento romântico.
Espero não constrangê-lo se falar sobre seu livro mais recente, "Na Praia", um romance perturbador. É, sob muitos aspectos, um romance sobre a linguagem, por meio de sua ausência. Um casal recém-casado está paralisado, incapaz de transmitir em palavras seus sentimentos atuais sobre a consumação do casamento.
A trama, em grande medida, gira em torno da incapacidade de usar a linguagem. Senti-me encorajado pelo fato de as primeiras palavras do livro serem "eles eram jovens, instruídos, e ambos eram virgens naquela, sua noite de núpcias, e viviam numa época em que conversar sobre dificuldades sexuais era pura e simplesmente impossível. Mas nunca é fácil".
Então, o livro é ambientado numa época em que falar de sexo abertamente era tabu. Mas fiquei contente quando você acrescentou que isso nunca é fácil. O fato de nunca ser fácil reflete a idéia de que a maioria dos relacionamentos íntimos serem relacionamentos que não negociamos com palavras. Isso pode levar a grandes tragédias. Nós nos forçamos a empregar palavras para expressá-los, mas isso não é fácil.
A razão disso, em última análise, é que os relacionamentos comunais -as alianças, famílias, casamentos- são coisas em que, para você se comprometer, existe a vantagem de elas serem involuntárias, emocionais, viscerais.
Você se comprometeria por alguém, tornando-se passível de ser abandonado ou traído?
Como você convence alguém a se comprometer, em vista do risco que a pessoa incorre?
Se você calcula isso enquanto está no relacionamento, poderia calcular também por que não vale mais a pena estar nesse relacionamento. Acho que é por isso que temos uma fobia de articular isso em palavras.
Quando palavras são trocadas nesses relacionamentos comunais, freqüentemente são fórmulas, não são discursos articulados compostos especificamente para a ocasião.
São coisas como orações, que são iguais a cada vez, quase como comportamentos em lugar de serem conversas, como juramentos de fidelidade. "Juro fidelidade à bandeira, blablablá", "eu te amo", "te amo também" -esse tipo de troca, que não é uma conversa, é na realidade um tipo de comportamento.
É o único tipo de linguagem que toleramos.

McEWAN - E não se diz por quanto tempo, não é mesmo? Mas se quer dizer "agora e para sempre".

PINKER - E é o ato de dizê-lo e de ouvir a recíproca que consolida a emoção -não o teor exato do que se diz, como proposição.


Esta é uma transcrição editada de evento promovido no Festival de Literatura de Cheltenham 2007, patrocinado pela Fundação Wellcome. Este texto foi publicado na revista inglesa "Areté". Tradução de Clara Allain e Luiz Roberto Mendes Gonçalves .

NA INTERNET - Leia a íntegra deste debate em www.folha.com.br/081148

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