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Com a língua solta
O professor de Harvard Steven Pinker e o ganhador do Booker Prize Ian McEwan discutem
seus novos livros, o ensaio "O Material do Pensamento" e o romance "Na Praia", debatem
os discursos de George W. Bush e Bill Clinton e falam sobre relações
de amor e amizade
Divulgação
| Cena de "Desejo e Reparação" (Joe Wright), baseado no romance "Reparação", de McEwan |
DA REDAÇÃO
Duas das mais destacadas figuras em
suas áreas, o escritor inglês Ian McEwan e o psicólogo
evolucionista Steven Pinker se
encontraram em 2007 para debater aquilo de que mais entendem, embora de pontos de vista diferentes: a linguagem.
Aclamado por obras como
"Amsterdam" (Booker Prize de
1998), o recente "Na Praia" e a
obra -prima "Reparação" -inspiradora do filme "Desejo e Reparação", que concorreu ao Oscar deste ano-, McEwan é o mais importante escritor inglês em atividade.
Já Pinker, professor na Universidade Harvard (EUA), é
um grande estudioso das origens e dos mecanismos da linguagem, além de divulgador do
tema em livros como "O Instinto da Linguagem".
A conversa inusitada, de que
o Mais! reproduz, a seguir, os
principais trechos, ocorreu no
Festival de Literatura de Cheltenham (Reino Unido) e foi publicada originalmente no último número da revista "Areté".
IAN McEWAN - Steven Pinker é
um desses cientistas extraordinários que sabem atrair a atenção dos leigos. Um dos grandes
prazeres de ler seus livros é entrar nos processos de pensamento de um homem de extrema fluência.
Um pouco de história: nos
dias muito sombrios em que a
teoria literária dominava suprema os dutos do pensamento
na academia e eu vivia em Oxford, um bom amigo apareceu
certa noite.
Ele estava incrivelmente
triste porque seus alunos achavam que não poderiam mais ler
"Middlemarch" [romance de
de George Eliot] ou qualquer
coisa do cânon antes que
aprendessem a ler -e para isso
precisavam aprender teoria.
Levantei rapidamente da cadeira e disse: "Ah! Conheço o livro: uma teoria da linguagem
baseada em evidências". E coloquei nas mãos dele "O Instinto da Linguagem", de Steven
Pinker, umas das melhores
obras sobre o modo como usamos e adquirimos a linguagem.
Ela explica que aqueles que
acreditam que a linguagem é
adquirida por pura imitação estão abordando o problema de
maneira errada.
Mais tarde, descobri -e realmente pretendia escrever para
você [dirigindo-se a Pinker] sobre isso- que hoje todos os alunos de meus amigos devem ler
no primeiro ano, e na verdade
no primeiro semestre, capítulos selecionados de seu livro
-como um antídoto à especulação de poltrona sobre fases do
espelho e tudo o mais na teoria
literária. Então, você teve um
grande impacto na Universidade de Oxford.
Steve, antes de falarmos sobre seu novo livro, "O Material
do Pensamento" -de várias
maneiras, uma síntese do que
aconteceu antes-, quero lhe
perguntar, em primeiro lugar,
sobre seu papel como escritor
de ciência popular.
Por trás dessa figura existe
um cientista muito ativo, que
publica trabalhos que pessoas
como nós nunca lêem. Essa
ciência dura tem algo a ver com
a maneira como as crianças
aprendem a língua. Você, como
cientista, poderia nos falar sobre isso?
STEVEN PINKER - Cheguei à linguagem partindo da psicologia.
Não sou um lingüista. Sempre
fui um psicólogo experimental.
Na verdade, minha pesquisa
de doutorado e grande parte de
minha pesquisa anterior foram
sobre imagens tridimensionais, sobre reconhecimento de
objetos e atenção visual.
Para mim, a linguagem é uma
das coisas incríveis que a mente
humana é capaz de fazer, e em
certo ponto de minha carreira
decidi me concentrar nela em
termos de pesquisa. Um dos
principais tópicos que me interessam na psicologia da linguagem é, como você disse, o modo
como as crianças aprendem.
As crianças têm de aprender
uma determinada língua, porque, se forem criadas no Japão,
acabarão falando japonês e, se
forem criadas na Inglaterra,
acabarão falando inglês.
Mas, claramente, aprender
uma língua não pode ser apenas uma questão de gravar frases individuais, porque as
crianças não são papagaios.
Elas não regurgitam simplesmente o que ouvem de seus
pais. A essência da linguagem é
a capacidade de juntar palavras
em novas combinações, e é o
que permite expressar um leque ilimitado de pensamentos.
Assim, o problema científico
no desenvolvimento da linguagem é: como as crianças passam de um número finito de
sentenças que ouvem de seus
pais ou pares e extraem o algoritmo subjacente que combina
palavras em frases e sentenças
e palavras maiores?
Em certa fase de minha pesquisa, me concentrei em um fenômeno muito pequeno da linguagem. Escrevera uma espécie de teoria de tudo, um livro
técnico, delineando uma teoria
da aquisição da linguagem. Mas
acabou sendo um problema
grande demais para estudar
empiricamente -simplesmente o desenvolvimento da linguagem em toda a sua glória-,
por isso em diversas etapas eu
escolhi dois problemas. Um deles levou a este novo livro, "O
Material do Pensamento".
Mas o outro era sobre verbos
irregulares, que parece um tema improvável para se dedicar
uma década e meia de sua vida.
Eu digo que está na grande tradição acadêmica de saber cada
vez mais sobre cada vez menos,
até você saber tudo sobre nada.
O que talvez seja um bom antídoto para meus outros livros,
que acho que podem ser criticados por saber cada vez menos
sobre cada vez mais, até você
saber nada sobre tudo.
Mas, neste caso, interessam-me os verbos irregulares -verbos que têm uma forma de passado imprevisível.
Um verbo regular pode ser memorizado,
mas não precisa ser. Quando
um novo aparece na língua, você não precisa procurar no dicionário sua forma passada
nem precisa consultar a memória, basta acrescentar a terminação regular.
Isso resume o que considero
os dois motores da linguagem:
memorizar palavras e combinar pedaços de palavras de
acordo com regras.
A outra área em que me concentrei -estreitando o interesse, em vez da linguagem como
um todo- foram os verbos. Isto
é, a sintaxe e a semântica dos
verbos. O ímpeto imediato foi a
pergunta: como as crianças adquirem essa parte tão importante da linguagem?
O que torna os verbos importantes é que cada verbo não é
apenas uma palavra, mas um
alicerce para o resto da sentença: o verbo define espaços para
o sujeito, exige um objeto se for
um verbo transitivo, às vezes
complementos do objeto e assim por diante. O verbo realmente mantém a frase unida.
Entender como as crianças
adquirem os verbos é, em grande parte, entender como elas
aprendem a falar em geral.
Mas quanto mais você examina os verbos, mais difícil é
entender, em primeiro lugar,
como funcionam para você e
para mim e, ainda mais, como
as crianças entendem isso.
Apenas para propor um quebra-cabeça, simplesmente entender a sintaxe dos verbos não
é simples. Você pode dizer "Eu
despejei água no copo" ["I poured water into the glass"], mas é
um pouco estranho dizer "Eu
despejei o copo com água" ["I
poured the glass with water"].
Já com o verbo "encher"
["fill"], funciona ao contrário:
você pode encher um copo com
água, mas não pode encher
água em um copo. É um truque
arbitrário? Acontece que a resposta é "não", pois era previsível por um aspecto muito sutil
do significado dos verbos.
Embora você possa pensar
que eles são quase sinônimos
(duas maneiras de colocar uma
substância em um recipiente),
a sutil diferença é que interpretamos "despejar" ["pour"] como fazer alguma coisa com a
água, enquanto interpretamos
"encher" ["fill"] como fazer algo com o copo -qual seja, fazê-lo mudar de estado, de vazio para cheio.
E, se há uma regra simples
que diz "a coisa que é afetada é
o objeto direto", a regra, com
algumas modificações, poderia
ser universal. Poderia ser encontrada em todas as línguas.
Assim, fazer a interpretação
certa, enxergar o evento da maneira adequada, permite prever
que verbo e que estrutura sintática são adequados. Se você
estiver fazendo algo com o copo, o copo é o objeto -portanto, "encha o copo"- e, se você
estiver fazendo algo com a
água, a água é o objeto -portanto, "despeje a água".
Isso abriu o mundo dos conceitos e da semântica que explorei no início de "O Material
do Pensamento": quais são os
elementos que compõem o significado dos verbos, elementos
como causa, objetivo, ato, caminho, e como eles dão às pessoas maneiras alternativas de
interpretar o mesmo evento.
Isso torna o resto da vida
muito interessante. Se algo tão
simples quanto colocar água
em um copo pode ser pensado
de duas maneiras quase incompatíveis, o que dizer sobre conceitos como guerra, aborto,
pesquisa de células-tronco, impostos e assim por diante?
McEWAN - É incrível como uma
pequena coisa pode abrir coisas
maiores. Vamos ficar nos verbos mais um pouco: você cita
um comentário feito pelo presidente [George W.] Bush que
pode ou não ter causado um
grande problema a ele.
Poderia falar a respeito? Há
dois verbos em questão: um
verbo de Clinton, "is" ["é",
"há"] -que exigiu certa definição e uma tática elaborada- e
um verbo de Bush, "learned"
["aprendeu", "foi informado",
"soube"], que tem uma conexão
britânica. Steven, você poderia
nos conduzir por esses verbos e
suas conseqüências?
PINKER - Na escalada da Guerra
do Iraque, muito se falou nas
infames 16 palavras do discurso
sobre o Estado da União feito
por Bush em janeiro de 2003,
poucos meses antes da invasão.
No discurso, uma das principais justificativas para a invasão foi que "a inteligência britânica "soube" que Saddam Hussein tentou obter quantidades
significativas de urânio na África". Estou citando de memória,
mas se aproxima bastante.
Como você deve se lembrar,
havia uma teoria segundo a
qual Saddam estaria construindo armas de destruição em
massa, e aquela seria uma das
principais provas.
Acontece que a inteligência
britânica acreditava nisso, e tinha alguns motivos para acreditar, mas sabia-se que não era
nada conclusivo. Certamente,
em Washington, os assessores
de Bush não acreditavam que
essa fosse uma prova, mas a levaram a sério.
Agora o uso comum da palavra "learn" [aprender] é o que
os lingüistas chamam de verbo
factivo -isto é, você não pode
"aprender" algo que seja falso, a
não ser no contexto específico
da escola. Na escola, você pode
dizer que aprendemos que havia quatro papilas gustativas, e
agora são cinco. Mas você não
pode aprender algo que não seja verdadeiro.
Assim, ao dizer "a inteligência britânica "has learned'", isso
implicou uma certeza por parte
de Bush que na verdade conflitava com a situação real da informação que se admitia em
seu próprio círculo.
Minha ilustração favorita do
que é um verbo factivo vem de
uma anedota do escritor Mark
Twain. Ele disse: "Quando eu
era jovem, lembrava de tudo, tivesse acontecido ou não; agora
que estou envelhecendo, minha memória falha, só consigo
me lembrar de coisas que não
aconteceram". [Risos]
Vocês todos riram, e por que
isso é engraçado? Não é engraçado que sua memória falhe
com a idade, mas, sim, o fato de
que você não pode lembrar de
algo que não aconteceu. "Lembrar" é um verbo factivo: implica que, quando você lembra, é
verdadeiro. Da mesma forma,
"learn" é um verbo factivo.
McEWAN - Então, podemos seguir para o verbo "is"?
PINKER - Depende de qual for o
significado de "is".
McEWAN - Sim, esse foi o famoso comentário do ex-presidente [Bill] Clinton...
PINKER - Foi uma das cinco
acusações no impeachment.
Ele foi acusado, mas não condenado, nesse processo em
duas etapas do sistema norte-americano. O advogado de
Clinton havia sido interpelado
sobre se havia relação sexual
entre Clinton e Monica Lewinsky. O advogado, falando
em nome de Clinton, disse
"não, não há" ["no, there isn't"].
A realidade, é claro, é que eles
haviam tido um caso, que já havia terminado na época do depoimento.
Quando esse depoimento foi
contestado mais tarde como
completamente falso, ele disse
que dependia do significado de
"há" ["is"]. Se significar "há" no
momento presente, a declaração foi precisa. Se "há" significar "há e sempre houve", então
não seria precisa -mas não é
assim que as pessoas entendem
comumente o tempo presente.
Se você examinar direito, a
explicação era semanticamente justificável.
Acho que há dois motivos para isso ter provocado gritos de
zombaria e indignação. Um deles é que, diferentemente de
um fato discreto -como deixar
um emprego e começar em outro, assinar um papel, receber
seu pagamento de uma fonte
diferente etc.-, o modo como
um caso de amor ou de sexo
termina é impreciso.
Quando você tem uma série
de encontros que se agrupam
em uma nuvem de eventos
temporários, o que você pode
contar no fim é discutível.
Quantos meses têm de passar
para que se possa dizer que não
há sexo? Isto é, poderia haver
amanhã, não poderia? Esse foi
um aspecto.
O outro, é claro, é a diferença
entre o que os lingüistas chamam de semântica versus pragmática. "Pragmática" é o que as
palavras significam e como você as usa em um contexto social. Grande parte do uso que
fazemos dos verbos e da linguagem depende de interpretá-los
e embalá-las em contextos.
Por exemplo, um fumante
que diz "parei de fumar", mas
cujo último cigarro foi dez minutos atrás, está usando uma
sentença semanticamente defensável. Mas, diante do contexto, damos risada [dessa declaração]. Comumente, na conversação, cooperamos com
nossos interlocutores, damos
indícios do que o ouvinte espera escutar.
Se não fizéssemos isso, a conversa empacaria na linguagem
dos contratos jurídicos.
O fato é que, em um contexto
jurídico, por definição, você
não está em uma situação de
cooperação, está em uma situação de oposição.
Quando você jura dizer a verdade, nada mais que a verdade,
está em uma situação em que o
conceito de "toda a verdade"
está em discussão. Toda a verdade é o que eu acho que estava
em questão ali. Obviamente, o
promotor queria saber se houvera sexo alguma vez, e não se
eles estavam atualmente tendo
um caso.
Então o que Clinton disse,
por meio de seu advogado, embora sendo tecnicamente preciso, foi contrário ao espírito da
conversa.
Mas não é necessariamente
desonesto, pois, no processo legal, a questão é aquilo que você
é obrigado a dizer. Clinton disse -acho que com razoável
precisão- em sua defesa, mais
tarde, que estava tentando ser
verdadeiro -mas não extremamente útil. Na conversa comum temos de ser as duas coisas, e acho que foi isso o que causou indignação.
McEWAN - Não são anjos dançando em uma cabeça de alfinete. Caso reste alguma dúvida
nesta sala sobre a extraordinária importância e as conseqüências da semântica, poderíamos tomar apenas mais um exemplo.
Trata-se daquele com que
você inicia seu livro, referente à
destruição das Torres Gêmeas
em 11/9/2001: saber se foi um
evento ou dois. Muito dinheiro
dependia dessa decisão, e a semântica foi crucial para as vastas somas de dinheiro pagas
por uma seguradora...
PINKER - Três bilhões e meio de
dólares estavam em jogo. O locatário do World Trade Center
tinha uma apólice de seguro
que lhe dava direito a US$ 3,5
bilhões por evento destrutivo.
Durante muitos anos, numa
série de julgamentos dispendiosos, os advogados discutiram se o que aconteceu no 11 de
Setembro foi um evento -porque um único plano foi executado- ou dois eventos -porque dois edifícios diferentes foram atingidos.
Nesse caso, o modo como
embalamos o fluxo de tempo
nessas unidades que chamamos de "eventos" foi o pomo da
discórdia. É outro exemplo de
como tomamos os acontecimentos no tempo e de como
aplicamos a mesma atitude
mental que aplicamos aos objetos no espaço. Todos os conceitos que aplicamos aos objetos
-por exemplo, a diferença entre conceitos genéricos como
"cerveja" e quantidades distintas específicas como "mais uma
cerveja"- se aplicam ao tempo.
McEWAN - Qual foi a decisão?
PINKER - Eles acabaram em um
acordo de US$ 4,25 bilhões.
McEWAN - Quando eu estava na
universidade, aprendi, para
usar esse verbo factivo, que
Wittgenstein estava certo ao
dizer que os limites do meu
mundo são os limites da minha
língua. Mas Chomsky e depois
você -refinando muito
Chomsky-, ao considerar como o pensamento realmente
evolui -e por experimentação
empírica-, sugerem que os
modos como pensamos independem da linguagem.
Pode esclarecer essa questão
antes de prosseguirmos?
PINKER - Bem, o aforismo de
Wittgenstein, provavelmente
não o único de seus aforismos,
realmente não resiste ao escrutínio. Os limites da sua linguagem não podem ser os limites
do seu mundo. E não pode ser
verdade que pensamos em nossa língua nativa, em inglês, japonês e assim por diante.
Cheguei a essa conclusão ao
refletir sobre o problema da
aquisição da linguagem. Como
as crianças adquirem uma linguagem, para começar? Se suas
mentes estão totalmente vazias
de pensamentos, como elas interpretam os ruídos que vêm da
boca de seus pais para decifrar
o código da linguagem?
"Um relacionamento sexual e um relacionamento platônico são incompatíveis" [Pinker]
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Aproveitando idéias desenvolvidas por outros na teoria da
aquisição da linguagem, abordei o problema em termos de
uma criança construindo uma
situação, adivinhando o que o
falante pretende e, então, conectando sua interpretação do
evento -à qual chegou não por
meio da linguagem, mas de
seus sentidos, de sua compreensão dos motivos das pessoas, de sua interpretação da situação- à verdadeira seqüência da esquerda para a direita
das palavras que escuta.
Se a criança não fosse capaz
de interpretar o mundo em termos que se equiparassem aos
da linguagem, como ela aprenderia a língua?
E, também, de onde vem a
língua? Não é que ela tenha sido definida por um comitê e
entregue a nós como um protocolo de uma linguagem de programa de computador.
A língua é principalmente
um fenômeno popular. As pessoas estão constantemente inventando novos termos, novos
idiomas, tomando emprestado
de outras línguas, produzindo
sons que esperam que lembrem aos ouvintes uma determinada idéia.
E muitas vezes temos momentos, como estou tendo agora, em que não conseguimos
encontrar as palavras para dizer o que pretendemos, o que
sugere que há algo que pretendemos, que precisamos das palavras para vestir -que o pensamento precede as palavras.
McEWAN - William James tem
uma descrição maravilhosa de
como é esquecer a palavra que
você procura. Ele diz que "você
sabe tudo o que não é".
Em outras palavras, você tem
uma sensação muito clara da
forma de uma coisa e sabe perfeitamente bem o que ela significa, mas ela está ali invisível,
em uma rede de outras palavras
que não servem.
PINKER - Realmente. Há todo
um gênero recreativo de cunhagem de palavras para casos
em que não apenas você não
consegue encontrar uma palavra, como a palavra não existe.
McEWAN - [Em seu livro] Você
diz que nada faz um lingüista
revirar mais os olhos do que ouvir alguém dizer: "O alemão é a
única língua para fazer ciência"
ou "o francês é uma língua maravilhosamente lógica" e coisas
desse tipo.
PINKER - Bem, um dos motivos
é que a língua é um alvo em movimento. Talvez seja verdade
que, em uma determinada fase
de uma língua, não se possa fazer muita ciência com ela, mas
isso deve ter sido verdade sobre
o inglês em certo momento ou
sobre qualquer outra língua.
Você muda a língua e empresta
termos, inventa termos.
Um exemplo drástico foi o
projeto maluco de reviver o hebraico no assentamento judeu
na Palestina no fim do século
19. Como parte da ideologia,
eles queriam se livrar do iídiche, a língua do gueto. Daí o hebraico, uma língua que não havia sido falada em conversação
por milhares de anos.
Mas tinham de começar a falar sobre tratores, fazendas coletivas etc. E o fizeram. A língua
mudou e continua mudando,
como todas as línguas, e você
consegue fazer o que precisa.
McEWAN - Não foi Daniel Dennett quem estava chegando a
isso por outro lado? Ele sugeriu
que isso está muito bem, mas
há coisas que não podemos
pensar sem a língua, especialmente a solução de problemas.
Quero dizer, o "mentalês" só
pode levá-lo até certo ponto...
PINKER - Sim, acho que com
certos conceitos, como os dias
da semana, seria muito difícil.
Talvez não impossível, mas
certamente seria difícil aprender o conceito de "semana"
sem que lhe expliquem em uma
língua. Mas acho que, mesmo
aí, o que ocorre é pensamento.
Não é que a língua seja implantada e lhe dê o conceito.
Acho que língua é o que você
usa para explicar para outras
pessoas um conceito que elas
não poderiam captar de outra
maneira -apesar disso, o que
elas adquirem no fim desse
processo não é apenas um trecho de linguagem.
Não é suficiente dizer "terça-feira" para entender o conceito
de terça-feira. A palavra deve
estar inserida em uma explicação que se baseia em uma compreensão muito maior do tempo, dos dias, de instituições sociais e assim por diante.
McEWAN - Você descreve certas
tribos que não contam além do
número dois, o que é muito difícil entendermos. E você se
pergunta por que isso ocorre, já
que a língua é uma reação ao
mundo e o mundo é cheio de
coisas que são contáveis. Como
isso pôde acontecer?
PINKER - Bem, eles existem.
Acho que é bastante comum,
não são apenas uma ou duas
tribos. Pode até ser a maneira
padrão de expressar números,
algo que podemos até compartilhar com outros primatas
-individualizar um, dois, três
ou quatro objetos como um
conceito de número, mas além
disso é apenas "muitos".
Nós também temos a sensação aproximada de que um
bando de aves é duas vezes
maior que outro, sem ter a capacidade de contá-los individualmente.
Perguntei a um antropólogo
que trabalhou com um desses
povos, e ele disse: "Bem, eles
não têm grandes números de
objetos indistinguíveis, eles
apenas os conhecem individualmente". Então, um caçador conhece cada flecha que ele
fez. Não precisará dizer "Eu tenho sete flechas".
É mais ou menos a mesma
coisa quando não sabemos exatamente quantas pessoas há
em nossa família toda se incluirmos todos os primos, pois
conhecemos cada primo. Pensando bem, tenho a capacidade
de contá-los, mas realmente
não sei qual é o número, e é essa
atitude mental que eles têm em
relação a todas as suas posses.
McEWAN - Então contar é uma
invenção?
PINKER - Contar é uma invenção. Há basicamente duas coisas que são invenções. Uma delas é o sistema recursivo de números, que nos permite dar um
número preciso para grandes
quantidades. A conquista do
sistema numérico ocidental é
permitir que você aplique seu
conceito de números exatos a
grandes quantidades.
Essa é a vantagem, e o algoritmo para fazer isso é contar.
McEWAN - Você disse que a
maioria de nós tem a oportunidade de criar uma palavra, pelo
menos uma vez na vida, ao dar
nome a uma criança. E aqui topamos com um certo paradoxo,
porque, quando o fazemos, temos a ilusão de estarmos simplesmente escolhendo um nome que nos agrada.
Mas então descobrimos que
i9fazemos parte de uma comunidade de pessoas que fizeram escolhas semelhantes, pessoas
cujas escolhas, cedo ou tarde,
vão parecer curiosamente datadas. O que esse nomear nos
revela a respeito de nós mesmos? E essa aparente liberdade
e ausência de liberdade?
PINKER - Sim, esse desconcertante constrangimento de nossa sensação de livre-arbítrio.
Freqüentemente se vêem
pais que dizem "demos a nossa
filhinha o nome de Madeline
porque minha mulher tinha
uma tia-avó que amava, chamada Madeline, e achamos que seria um nome singular". Então,
vão à creche e descobrem que
há três outras madelines ali.
Boa parte das hipóteses traçadas por pessoas que explicam
por que nomes entram e saem
de moda pode ser desmentida
quando se analisam os dados
cronológicos sobre o aumento
e a queda na popularidade de
nomes.
É fácil fazê-lo nos EUA porque a administração da seguridade social publica um banco
de dados com todos os nomes
que constam de seus registros,
praticamente exaustivos desde
a década de 1890. É possível
passar muito tempo traçando o
gráfico da ascensão e queda de
seu nome favorito.
A hipótese é que os nomes refletem tendências sociais. A razão pela qual houve uma alta
nos nomes bíblicos nos anos
1970 e 1980 -Adam, Joshua,
Sarah, Rachel-, teria sido a
curva ascendente dos sentimentos religiosos. Mas não é
verdade: no momento em que
os nomes bíblicos estavam em
ascensão, a observância religiosa estava caindo.
Ou então as crianças recebem os nomes de celebridades
reais ou fictícias, personagens
de telenovelas, atrizes, cantores pop e assim por diante. Novamente, parece haver poucas
ocasiões em que isso acontece.
Em lugar de haver uma causa
externa que resulta nas escolhas de nomes, o que acontece
de fato é uma dinâmica interna,
na qual a escolha de um nome
em uma geração é causada pelas escolhas de nomes na geração anterior.
Os pais reagem aos nomes
que estão aí fora -nomes que
são demasiado geriátricos, porque todas as pessoas das quais
se lembram que os têm estão
em lares de idosos.
Ou nomes que são suficientemente velhos, talvez os nomes
de gerações anteriores, de modo que parecem estar prontos
para serem trazidos de volta.
McEWAN - Em suas explorações
da linguagem e da natureza humana, você fala sobre o que as
pessoas fazem quando conversam. Quero citar suas palavras.
Você diz: "Por que as pessoas
não dizem simplesmente o que
querem dizer?"
"A razão disso é que parceiros numa conversa não são modems que descarregam informações nos cérebros uns dos outros. As pessoas são muito,
muito sensíveis no que diz respeito a seus relacionamentos.
Sempre que você fala com alguém, está presumindo que vocês dois têm uma certa familiaridade, algo que suas palavras poderiam modificar."
"Por isso, cada oração precisa
fazer duas coisas ao mesmo
tempo: transmitir uma mensagem e continuar a negociar
aquele relacionamento." O que
precisamos fazer para negociar
em um momento muito fugaz
de troca?
PINKER - Um pedido cortês é o
exemplo mais simples de um
ato de discurso indireto, que
pode incluir ameaças veladas,
subornos velados, insinuações
sexuais. No caso do pedido cortês, por um lado você não quer
tratar seu interlocutor como alguma espécie de subordinado
ou ajudante a quem você possa
dar ordens à vontade.
Lançar um imperativo pressupõe que você pode esperar a
aquiescência do interlocutor.
E, com alguém com quem
não tem muita intimidade ou a
quem não é muito superior, a
relação é delicada. Você não
quer fazer com que pareça que
vocês têm uma relação de dominante e subordinado, então,
se disser "se você pudesse me
passar o sal, isso seria brilhante", e, se seu interlocutor não
supuser que você endoidou, ele
conseguirá apreender o pedido
subjacente às palavras.
O imperativo é transmitido,
mas o relacionamento de não-dominância é preservado.
McEWAN - Ok. Então, passando
para o diálogo sexual, você evoca para nós uma charge que
mostra um homem ao pé da escada, no final da noite, dizendo
à mulher com quem saiu: "Espere aqui, vou buscar as gravuras e as trarei para baixo".
O que acontece quando um
homem diz a uma mulher: "Suba comigo para ver minhas gravuras"?
PINKER - A coisa funciona em
vários níveis. Um deles é que o
homem não sabe se a mulher
quer ou não ter um relacionamento sexual com ele. Vocês
vão simplesmente sair para
jantar ou ir ao cinema.
Mas, embora o companheirismo seja o objetivo ostensivo
da noite, o que faz dela um encontro é a possibilidade de um
relacionamento sexual. No entanto um relacionamento sexual e um relacionamento platônico são incompatíveis, de
Parece que sedução e suborno têm alguma espécie de relação semântica [McEwan]
|
muitas maneiras. Tem que ser
ou peixe ou frango. O homem
não sabe quais são as intenções
da mulher. Se ele dissesse diretamente, por exemplo, "quer
subir e transar comigo?" e ela
aceitasse, seria ótimo.
Se, por outro lado, ela disser
que não, isso provocaria uma
situação na qual já teria ficado
claro que o interesse dele era de
natureza sexual, e o dela, não.
Então teríamos uma emoção
especial, à qual damos o nome
de constrangimento, e que entra em cena em situações nas
quais há um desencontro entre
o relacionamento presumido
por uma pessoa e o relacionamento presumido pela outra.
Uma maneira de evitar o
constrangimento é formular a
pergunta de maneira tal que
um parceiro ou uma parceira
interessados possam reconhecer a intenção -e assim consumar o "negócio"- ou uma parte
não interessada possa interpretar a proposta segundo seu
enunciado declarado, com isso
preservando o relacionamento
que garante mais conforto a
ambos.
Assim, há uma negabilidade
plausível. Sartre apresenta
uma versão desse cenário, uma
parábola filosófica, em "O Ser e
o Nada" (capítulo 2, "Má-Fé",
seção 2, "Padrões de Má-Fé").
Essa também é a fonte por
trás de tentativas veladas de suborno, do tipo "bem, sr. policial, será que existe algum jeito
de resolvermos essa multa sem
muitos problemas?".
McEWAN - Explique melhor o
suborno, porque parece que sedução e suborno têm alguma
espécie de relação semântica.
Temos o policial de trânsito
que já colocou o papel da multa
no seu carro, e você não sabe se
ele é corrupto ou não. Então como faz para lhe oferecer uma
propina?
PINKER - Bem, isso realmente
tem certa importância prática.
O problema de dizer "se eu
lhe der dez libras, o sr. me deixa
ir embora?" é que você não sabe
quais são as intenções do policial. Você pode estar correndo
o risco de ser preso por tentativa de suborno, cujo custo seria
muito maior do que o da multa.
Há uma cena de "Fargo" [dos
irmãos Coen] da qual alguns de
vocês talvez se recordem: se o
policial lhe pede para mostrar
sua carteira de habilitação e você abre sua carteira, com o documento exposto e uma cédula
de US$ 50 ligeiramente para fora, e então diz "será que existe
algum jeito de resolvermos isso
agora mesmo?", o policial corrupto pode aceitar o suborno,
enquanto o honesto não terá
como provar a tentativa de suborno num tribunal.
Na "Gourmet Magazine" foi
publicado um artigo interessante em que um editor desafiou um crítico de restaurantes
a ver se conseguiria, pagando
propina, um lugar nos restaurantes mais exclusivos de Manhattan sem reserva anterior.
O interessante foi que, em
primeiro lugar, o crítico de restaurantes espontaneamente
recorreu a um eufemismo
-"me pergunto se não teria
ocorrido algum cancelamento
no restaurante"- enquanto segurava uma cédula de US$ 20
discretamente, com a mão virada para baixo. Ou então ele dizia "esta é uma noite realmente
importante para mim".
A outra coisa interessante é
que esse método funcionou todas as vezes -todos os maîtres
são subornáveis.
McEWAN - Mas em todos os casos, o jornalista o fez de tal maneira que pudesse plausivelmente negar que estivesse oferecendo propina.
PINKER - As chaves principais
deste quebra-cabeça são a lógica-teórica-de-jogo da negabilidade plausível e o fato de que os
desencontros de relacionamentos na vida social podem
provocar constrangimento.
A possibilidade de alguém recusar um convite para um encontro sexual ou de um maître
de restaurante responder, indignado, "em que espécie de estabelecimento o senhor acha
que se encontra?" nos apavora
tanto que é comparável à possibilidade de sermos presos.
Mas existe outra parte também. Apesar de todas as glórias
da linguagem, parece que fomos constituídos de maneira a
sentir que existem áreas nas
quais a linguagem é inapropriada. Ela é inapropriada, especialmente, num relacionamento comunal, um dos três tipos de relacionamento humano
identificados pelo antropólogo
Alan Fiske.
Cimentamos nossos relacionamentos íntimos, românticos
e sexuais com outras formas de
comunicação -pelo contato
corporal, abraços, apertos de
mão, carinhos, sexo, tapinhas
nas costas. Isso vai depender do
relacionamento.
Refeições comunais são um
ritual importantíssimo de
união em todo o mundo e, é claro, constituem parte essencial
de um encontro romântico.
Assim, para cimentar um relacionamento íntimo dependemos de uma noção quase folclórico-biológica de fusão de essências.
E a linguagem não apenas
não está à altura dessa tarefa
como pode até mesmo subverter o relacionamento. Qualquer
pessoa que formulasse precisamente em palavras os termos
de seu relacionamento romântico não estaria compreendendo a essência de um relacionamento romântico.
Espero não constrangê-lo se
falar sobre seu livro mais recente, "Na Praia", um romance
perturbador. É, sob muitos aspectos, um romance sobre a
linguagem, por meio de sua ausência. Um casal recém-casado
está paralisado, incapaz de
transmitir em palavras seus
sentimentos atuais sobre a
consumação do casamento.
A trama, em grande medida,
gira em torno da incapacidade
de usar a linguagem. Senti-me
encorajado pelo fato de as primeiras palavras do livro serem
"eles eram jovens, instruídos, e
ambos eram virgens naquela,
sua noite de núpcias, e viviam
numa época em que conversar
sobre dificuldades sexuais era
pura e simplesmente impossível. Mas nunca é fácil".
Então, o livro é ambientado
numa época em que falar de sexo abertamente era tabu.
Mas fiquei contente quando
você acrescentou que isso nunca é fácil. O fato de nunca ser fácil reflete a idéia de que a maioria dos relacionamentos íntimos serem relacionamentos
que não negociamos com palavras. Isso pode levar a grandes
tragédias. Nós nos forçamos a
empregar palavras para expressá-los, mas isso não é fácil.
A razão disso, em última análise, é que os relacionamentos
comunais -as alianças, famílias, casamentos- são coisas
em que, para você se comprometer, existe a vantagem de
elas serem involuntárias, emocionais, viscerais.
Você se comprometeria por
alguém, tornando-se passível
de ser abandonado ou traído?
Como você convence alguém a
se comprometer, em vista do
risco que a pessoa incorre?
Se você calcula isso enquanto
está no relacionamento, poderia calcular também por que
não vale mais a pena estar nesse relacionamento. Acho que é
por isso que temos uma fobia
de articular isso em palavras.
Quando palavras são trocadas nesses relacionamentos comunais, freqüentemente são
fórmulas, não são discursos articulados compostos especificamente para a ocasião.
São coisas como orações, que
são iguais a cada vez, quase como comportamentos em lugar
de serem conversas, como juramentos de fidelidade. "Juro fidelidade à bandeira, blablablá",
"eu te amo", "te amo também"
-esse tipo de troca, que não é
uma conversa, é na realidade
um tipo de comportamento.
É o único tipo de linguagem
que toleramos.
McEWAN - E não se diz por
quanto tempo, não é mesmo?
Mas se quer dizer "agora e para
sempre".
PINKER - E é o ato de dizê-lo e de
ouvir a recíproca que consolida
a emoção -não o teor exato do
que se diz, como proposição.
Esta é uma transcrição editada de evento promovido no Festival de Literatura de Cheltenham
2007, patrocinado pela Fundação Wellcome. Este texto foi publicado na revista inglesa "Areté".
Tradução de Clara Allain e Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
NA INTERNET - Leia a íntegra deste
debate em www.folha.com.br/081148
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