São Paulo, domingo, 27 de maio de 2007

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Ponto de Fuga

A alma brasileira

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

As efemérides são apenas simbólicas. Servem para reflexão, porém. Em 2007, comemoram-se os 120 anos de Villa-Lobos. Sua obra continua como alegoria mítica de brasilidade.
Na medida em que avançava na vida, Villa-Lobos alterava sua própria história. Construía fábulas, inventava-se um passado. Incluía em seu catálogo composições que nunca tinha escrito, atribuía datas falsas e precoces a certas obras para conferir-lhes um caráter precursor: muitas, ainda hoje aceitas, esperam por um controle rigoroso.
Decidiu tornar-se um compositor "tropical" em Paris, ao perceber a voga de um exotismo bárbaro que então florescia ali nos anos de 1920: Florent Schmitt [músico, 1870-1958] o chamou de "néo-sauvage" [neo-selvagem]. Passou a incorporar à sua biografia viagens extensas e boêmias, ampliando muito uma realidade mais prosaica.
Lisa Peppercorn, grande especialista em Villa-Lobos, observa a respeito dessas viagens juvenis: "Traçar o trajeto de tais périplos no mapa (...) basta para mostrar o quanto é altamente improvável que Villa-Lobos e seus amigos tenham visitado essas partes do país". Em suas declarações, o compositor sempre procurou dissimular a evidente formação européia dos seus primórdios, quando foi marcado, para sempre, por Saint-Saëns, Vincent d"Indy, Puccini ou Debussy.
Não é difícil derrubar a crença numa brasilidade "autêntica", surgida da personalidade de Villa-Lobos, que seria impregnada por um ser "nacional" desde sua gênese infanto-juvenil. Ao invés do mito prodigioso, teríamos o "construto", a posteriori, muito mais plausível.
Pois é preciso lembrar que, de todos os modos, apenas com os "Choros", nos anos de 1920, o caráter francamente brasileiro de Villa-Lobos se afirmou. Isto é, no momento de suas longas e freqüentes estadas em Paris.

Bateau-mouche
"Ao visitar Paris e o restante da Europa na década de 20", escreve o musicólogo finlandês Eero Tarasti, "Villa-Lobos compreendeu qual a posição social do compositor na Europa naquele momento: ele interessava ao mundo musical europeu acima de tudo como um intérprete de brasilidade, com os ritmos de força primitiva de suas composições, harmonias próprias, melodias folclóricas que refletem a variedade das cores do trópico".


Villa-Lobos decidiu tornar-se um compositor "tropical" em Paris, ao perceber a voga de um exotismo bárbaro que florescia ali nos anos de 1920


Parece bem claro que Villa-Lobos fazia "render" o exotismo. Sabia que os europeus desejavam "os sabores e os acentos de sensual exotismo", imagem que Alfred Cortot [pianista, 1877-1962] criou para caracterizá-lo e a Darius Milhaud [compositor, 1892-1974]. Villa-Lobos escrevia então música brasileira na Europa, assegurando assim seu lugar de compositor "tropical".

Mitos
A música de Villa-Lobos assumiu, graças ao próprio compositor, o papel de uma "alma brasileira". A romântica noção de "alma" sugere uma quintessência bem ambiciosa; quanto ao "brasileira", para entendê-la de fato, é preciso situá-la no seu lugar de construção ideológica. Um sentimento pessoal vago e poderoso ("sentir-se brasileiro") torna-se, com Villa-Lobos, convincente e impositivo.

Valor
É mais sadio pensarmos que a obra de Villa-Lobos tem um papel crucial dentro da cultura que ocorreu e ocorre no Brasil, mas que ela não é nem sua síntese nem sua essência. Entre outras coisas, porque a primeira dessas duas noções, à parte engodo, não é possível; e a segunda não existe.
Isso, bem ao contrário de diminuir o compositor, o engrandece. Villa-Lobos não é grande porque é brasileiro. É grande porque é grande, e basta.

jorgecoli@uol.com.br


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