São Paulo, domingo, 27 de maio de 2007

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+ Sociedade

"Universidade não é "brinquedo caro"

Diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Gabriel Cohn é contra a invasão da reitoria, mas pró-autonomia

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

A pauta de reivindicações dos estudantes que ocuparam a reitoria da USP é extensa e mistura alhos com bugalhos.
Para quem vê de fora, é difícil entender como o número de refeições a ser oferecido pelo chamado "bandejão" pode se relacionar a uma suposta ameaça à autonomia universitária.
Mas o fato é que o movimento dos alunos, acompanhado da greve decretada pelos professores na última quarta, voltou a acender um debate sobre o papel da universidade pública no Brasil.
Se isso é bom ou mau, entretanto, parece tratar-se de uma outra história.
O cientista político Gabriel Cohn, diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP [FFLCH], é contra a invasão promovida pelos alunos e acha que ela danifica a imagem da universidade na sociedade. "Ela prejudica as relações internas e, do ponto de vista externo, tende a desmoralizar a instituição", diz na entrevista a seguir.
Para Cohn, o único decreto do governador José Serra (PSDB) que pode causar dano futuro e que merece ser discutido é o que estabelece a criação da Secretaria de Ensino Superior, a cargo de José Aristodemo Pinotti.
O decreto é parte de um conjunto que, segundo os manifestantes, coloca em jogo a autonomia da instituição.
Um dos mais polêmicos é o número 51.636, que obriga os órgãos públicos do Estado a fazer a execução orçamentária no Siafem (sistema eletrônico do governo). O governo do Estado nega que tais medidas possam ferir a autonomia das universidades estaduais.

 

FOLHA - A ocupação parece ter ganho uma dinâmica e força próprias desde que teve início. O sr. acredita que o movimento dos estudantes foi subestimado pela comunidade universitária e pela sociedade?
GABRIEL COHN -
Esse movimento condensa um grande número de linhas de força na sociedade, bastante díspares. Ele é muito complexo, mesmo quando parece agir de maneira simples, e assinala uma reconfiguração interna da universidade, que devemos tentar compreender antes que a instituição toda vá de roldão.

FOLHA - A imprensa parece ter percebido tarde a polarização do movimento e o aumento da temperatura do embate entre estudantes e reitoria. Acredita que isso seja mais um sinal do distanciamento entre universidade pública e os meios de comunicação?
COHN -
Imprensa e universidade deveriam ter tudo a ver, mas, de fato, parecem "desafinadas". Como elas se voltam de modos diferentes para a sociedade, nenhuma conseguiu definir bem o que a outra espera dela e, a sociedade, de ambas. É uma tarefa urgente.

FOLHA - O sr. acha que a ocupação marca um novo momento no movimento estudantil brasileiro? É possível traçar paralelos quanto à importância do posicionamento dos estudantes na sociedade hoje e nos anos do regime militar?
COHN -
De imediato, me parece que assinala um grave problema que a sociedade brasileira (e não só ela) enfrenta, que é o da crise da representação política, em todos os seus níveis e dimensões.

FOLHA - O governador disse que a ocupação da reitoria da USP era baseada em "mentiras". O sr. considera que os decretos de fato ferem a autonomia universitária?
COHN -
Há má informação generalizada. Por exemplo, as universidades públicas prestam, sim, contas ao erário.
Quanto aos decretos, o ponto não é tanto que causem dano direto à autonomia aqui e agora, mas que, especialmente no caso do primeiro deles [que estabelece a criação da Secretaria de Ensino Superior], há toda condição para isso no prazo mais longo, no que se refere à vital relação entre ensino e pesquisa.

FOLHA - Como o movimento danifica a imagem da universidade? Os críticos do atual sistema, por exemplo, apressam-se em usar episódios como esse como argumento para discutir a própria existência da universidade pública e os gastos que o Estado tem com ela.
COHN -
Nesse ponto entro em área de controvérsia. Creio que, independentemente dos objetivos procurados, um movimento como esse, centrado na ocupação do centro nervoso da universidade e voltado para um processo de negociação viciado desde o início, acaba causando mais mal do que bem.
Mas nada de demonização: a sociedade deve tomar conhecimento de que episódios desse tipo dizem tanto sobre a vitalidade da universidade quanto sobre a sua dificuldade para ajustar-se às novas exigências que ela próprio contribui para criar, ao se expandir como vem fazendo. Seja como for, a idéia de que a universidade pública é uma espécie de "brinquedo caro" é falsa e deve ser combatida sem descanso.

FOLHA - Há uma crítica corrente (ver em http://ocupacaousp.blog.terra.com.br) de que a FFLCH estaria mais presente no movimento devido à tradição "encrenqueira". O que o sr. pensa disso?
COHN -
Até pelo seu tamanho e pela diversidade interna (da aerofotometria ao sânscrito, com dezenas de escalas), alimentados ambos pela sua tradição de contestação e crítica, a FFLCH tem especial visibilidade. Mas seria erro grave imaginar que a turbulência se esgota nela. Fazer isso significaria perder de vista as múltiplas formas de experiência que a universidade comporta e o modo como elas se entrelaçam nos momentos de crise.

FOLHA - Independentemente do desfecho desse episódio, acredita que a autonomia universitária deveria ser rediscutida com o Estado?
COHN -
A autonomia universitária é um desafio constante naquilo que diz respeito ao seu exercício. Nesse nível, ela deve ser discutida com o Estado e a sociedade, sempre.
Para isso, todavia, é preciso que a universidade esteja segura da sua integridade institucional e dos recursos para mantê-la.


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