São Paulo, domingo, 27 de maio de 2007

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+ Cultura

Lá vem o homem bomba

Criador do novo jornalismo, Tom Wolfe, que terá reeditada suas obras completas em 2008, fala dos novos projetos e discute a política dos EUA

TREVOR BUTTERWORTH

A perspicácia de Oscar Wilde [1854-1900] é mais esperta do que profunda, mas, quando declarou que "nosso primeiro dever na vida é assumir uma pose", pode ter identificado uma verdade: a roupa não apenas faz o homem; se for imutável em seu estilo, pode fazê-lo parecer eterno.
É essa, pelo menos, a impressão deixada por Tom Wolfe quando abre caminho em meio ao império culinário do café Boulud, no Upper East Side [em Nova York], espalhando verve e elã entre os clientes impassivelmente abastados e azedamente envelhecidos do local.
O escritor -que foi pioneiro da reportagem jornalística feita com a intensidade da literatura, que conferiu ao que resultou dela a aparência de um movimento (o "novo jornalismo"), que fez a crônica do espírito americano desassossegado em seu caminho em direção às estrelas ("Os Eleitos") e, depois, em sua volta, até a queda no esgoto ("A Fogueira das Vaidades")- se encontra, espantosamente, com 77 anos de idade.
Ele é afável, extremamente modesto e inquiridor, a ponto de transformar um entrevistador em entrevistado.
Sua voz é doce, com leve cantarolado sulista; seus comentários são irônicos; sua conduta é alegre; ri docemente e com freqüência e, mesmo nessa idade senatorial, é impossível imaginá-lo falando em tom intransigente em um púlpito ou resmungando em alguma espelunca.
Mas a jovialidade de Wolfe não significa que não se deva levá-lo a sério.
Muitos escritores que são pessoalmente encantadores podem tornar-se intransigentes ou mesmo cruéis na página escrita -como descobriu o compositor Leonard Bernstein quando Wolfe zombou selvagemente dele em "Radical Chic", um relato sobre um evento de levantamento de fundos para o Partido Panteras Negras que Bernstein e sua mulher promoveram em seu apartamento de cobertura de 13 cômodos na Park Avenue, em 1966.
No final do ano passado, em artigo publicado no "New York Times", Wolfe teceu críticas arrasadoras à Comissão de Preservação de Marcos Históricos da cidade por sua disposição em tolerar a difusão de "caixas de vidro gigantes" nos distritos históricos de Manhattan e, especificamente, aceitar uma proposta de construção de uma torre de vidro de 30 andares, projetada por Norman Foster.
O plano foi arquivado.
Chama a atenção o fato de que Wolfe se mostra muito mais à vontade e muito mais interessado em tratar da política de qualquer coisa, menos do establishment político: raça, gênero, arte e arquitetura, finanças e status -tudo serve de matéria-prima para seu intelecto onívoro e suas reportagens implacáveis, mas não os partidos ou os políticos que os lideram.
O fato chama ainda mais a atenção por se tratar de alguém que iniciou sua carreira jornalística na capital da nação.
Washington é um lugar sério e comportado, e deve ter sido ainda mais assim no final dos anos 1950, quando Wolfe entrou para o "Washington Post".
Depois de três anos escrevendo sobre temas exóticos, como torneios de pingue-pongue soviéticos, reuniões de comissões de zoneamento e pequena criminalidade, ele partiu para Nova York, em busca de coisas realmente excitantes, afirma.
O resto é história. Wolfe floresceu no "New York Herald Tribune", jornal conhecido por cultivar escritores, e atingiu a estratosfera literária com seu relato sobre a cultura dos carros customizados no sul da Califórnia, para a revista "Esquire".
O título do artigo deu nome à coletânea posterior de seus ensaios que foi seu primeiro livro, "The Kandy-Kolored Tangerine-Flake Streamline Baby" [O Carrão de Racha Floco de Tangerina Cor de Doce, em tradução livre].

Anedotas presidenciais
No entanto há um senso palpável de que a história -não o movimento glacial de forças impessoais, mas os eventos rápidos e significativos criados por pessoas- foi feita às margens do rio Potomac [divisa da capital federal dos EUA] durante o reinado de George W. Bush.
Isso parece constituir-se em material fascinante para um escritor que dissecou com tanta perspicácia a interação entre ideologia e personalidade na cultura em "A Palavra Pintada" e "Da Bauhaus ao Nosso Caos".
Mas Wolfe afirma não se interessar pela história. "Eu nunca quis cobrir política, exceto em países caribenhos", diz.
"Os EUA são tão estáveis que as vitórias políticas consistem em variações menores. Nosso governo é como um trem que segue em um trilho, e há pessoas à sua esquerda e à sua direita que gritam para o trem. Mas o trem não tem escolha: ele está seguindo no trilho. Ele continua para a frente. E é realmente maravilhoso até que ponto essa situação é estável. Não é possível que de repente o Parlamento decida que é preciso haver uma eleição."
"E, quando acontecem as coisas mais inacreditáveis, não há reação. Por exemplo, quando Richard Nixon foi forçado a deixar o governo [em 1974], ele realmente não teve escolha. Por acaso apareceu uma junta militar? Não. houve manifestações de rua de republicanos? Não. Não sei nem sequer de algum caso de alguém atirar um tijolo pela janela de um bar -nem mesmo algum republicano bêbado. Todo mundo, como eu, ficou sentado e assistiu aos fatos pela TV. Foi um evento que passou na televisão... Nada, na realidade."
Em certo sentido, a visão que Wolfe tem da democracia em ação é tranqüilizadora.
O Iraque, também, vai passar, embora um distanciamento tão grande possa parecer igualmente perturbador, já que os fatos naquele país estão demorando demais para passar para a história.
"Tudo o que vem sendo dito agora já foi dito sobre a Guerra do Vietnã", ele prossegue.
"Também foi dito na época que tínhamos um presidente muito estúpido. Você deveria ter estado aqui quando Eisenhower foi presidente [1953-61]; ele não era muito bom em coletivas de imprensa porque tinha o hábito de iniciar suas sentenças com uma cláusula relativa e, quando começava a acrescentar mais cláusulas relativas e aposições, nunca chegava ao sujeito ou ao predicado. Então diziam que ele era realmente estúpido. Como um sujeito como esse pode comandar o país? Mas tudo o que ele fez, afinal, foi vencer a Segunda Guerra Mundial! Devia haver alguma inteligência ali!"
"Muito poucas pessoas se recordam de que Reagan [1981-89] era retratado como idiota", acrescenta Wolfe, citando um comentário de Henry Kissinger segundo o qual, após 20 minutos na companhia de Reagan, a pessoa se descobria indagando "como é possível que o destino do mundo livre se encontre nas mãos desse homem?".
Apesar disso, diz Wolfe, Reagan não parava de tomar as decisões corretas.

Anticorporativismo
"Bush é retratado como imbecil. Eu já conversei com ele em duas ocasiões -não por muito tempo-, mas descobri que ele é mais bem-informado sobre literatura do que o editor do "New York Review of Books", Bob Silvers. Já conversei com os dois, e Bush faz Bob Silvers parecer uma lesma."
Wolfe ri, possivelmente diante da idéia do establishment literário de Nova York babando em seus capuccinos de raiva diante do golpe mais recente em um conflito prolongado, mas de baixa intensidade.
Nos anos 1960, Wolfe zombou do "Review", descrevendo-o como "o principal órgão teórico do Radical Chique", após o periódico publicar em sua capa uma ilustração que mostrava como fabricar um coquetel Molotov.
Três décadas depois, Silvers publicou resenha de Norman Mailer sobre "Um Homem por Inteiro", em que o veterano pugilista literário observava que ler o romance de 742 páginas de Wolfe sobre poder e política racial em Atlanta era como "fazer amor com uma mulher de 140 quilos. A partir do momento em que ela fica por cima, acabou. Ou você se apaixona ou é asfixiado".).
A vitalidade contínua da reportagem narrativa longa impeliu Wolfe de volta ao jornalismo. Isso e possivelmente as reações negativas a seu último romance, "Eu Sou Charlotte Simmons", uma história sobre o abuso da inocência num campus universitário americano moderno.
"Fiquei espantado com as muitas, muitas resenhas negativas", diz Wolfe, momentaneamente perturbado. A coisa se tornou tão desanimadora que ele pediu a seu editor que parasse de lhe enviar as resenhas.
Essa atitude pode ser interpretada como prova de que Wolfe estaria fora de sintonia com a cultura literária da maioria, mas "Charlotte Simmons", mesmo assim, teve vendas significativas para um romance -algo na casa de algumas centenas de milhares de cópias vendidas da edição em capa dura-, embora fossem modestas comparadas com "Um Homem por Inteiro", cuja edição de capa dura vendeu mais de 1,2 milhão de exemplares.
Em contraste, o muito elogiado romance "Indecisão" [Rocco], lançado em 2005 por Benjamin Kunkel, vendeu apenas 15 mil cópias em sua edição em capa dura.
Wolfe está concluindo um livro curto, um tratado sobre status, discurso e evolução baseado em palestra que deu no ano passado ao National Endowment for the Humanities [Apoio Nacional às Humanidades].
Ele está em fase de pesquisas para um livro sobre imigração, que ainda não tem uma hipótese de base -"quero saber como os novos imigrantes se pensam e se estratificam... Não sei o que vou encontrar", diz ele.
A editora Picador vai começar a relançar sua obra completa a partir de março do próximo ano.
E, como qualquer ícone literário legítimo, Wolfe é bastante solicitado.
A "Portfolio", nova revista de negócios, estreou com um longo ensaio de Wolfe sobre os novos "mestres do universo" -o manto adotado pelos vendedores de títulos em "A Fogueira das Vaidades", hoje dado aos administradores de fundos de hedge.
"Não bam bam bam bam bam bam", começou o texto, mas "mas bama bampa barama bam bammity bam barampa Fogo! Foi a primeira coisa que veio à cabeça dela, porque ninguém bate dessa maneira na porta de seu apartamento em um prédio...".
É por isso que as pessoas amam Wolfe. Ele torna o escrever excitante e o jornalismo, divertido.

Sem eufemismo
"Quando vim a Nova York pela primeira vez, para trabalhar em um jornal, vivia-se a grande era do "understatement" (expor os fatos de maneira suavizada, minimizando sua importância)", diz.
"O "understatement" era valorizado como algo quase aristocrático; você não se deixava levar por suas emoções e não tentava fazer malabarismos -fazia "understatement". E, de algum modo, o fato de expor as coisas de modo "understated" deveria tornar ainda maior o impacto da mensagem. Na realidade, porém, geralmente tornava o impacto menor -pois, em muitos casos, as pessoas nem sequer percebiam que você estava dizendo algo importante."
Mas, para alguém que curte tanto a linguagem, talvez seja uma surpresa descobrir que Wolfe acha trabalhoso escrever. "Nunca confio nas pessoas que dizem que escrever é divertido", ele pondera. "A única coisa que o torna divertido é a expectativa dos aplausos."

Este texto foi publicado no "Financial Times". Tradução de Clara Allain.


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