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BRASIL 500 D.C.
Utilizado no início da colonização, o caravelão foi substituído pela sumaca, de origem holandesa
O domínio dos mares
EVALDO CABRAL DE MELLO
especial para a Folha
No primeiro século de colonização, as comunicações marítimas
entre pontos do litoral brasileiro
dependeram de uma improvisação, o emprego dum tipo de barco,
o caravelão, concebido não para a
cabotagem, mas para a ligação, em
alto-mar, entre os navios de uma
frota. O aumentativo não deve desorientar o leitor. O caravelão não
era uma caravela grande, mas sua
miniaturização. Graças a ele, esboçou-se na nossa costa uma incipiente diferenciação, que já se consegue discernir na obra de Gabriel
Soares de Souza, que distingue os
portos apenas acessíveis ao que designa por "navios da costa" ou "caravelões da costa", expressão que
utiliza sinonimicamente, e os portos abordáveis pelas embarcações
que faziam a navegação com o Reino, os "navios de honesto porte",
os barcos de "mais de 200 tonéis"
ou mesmo de "cem tonéis" ou entre "cem tonéis até 200".
No caso do caravelão, a especialização foi antes espacial do que funcional. Ainda insuficiente para gerar um tráfego importante, a cabotagem podia utilizar os serviços de
um tipo de embarcação criado para atender a outras necessidades.
As tarefas marítimas não eram
apenas as prosaicas ou rotineiras
de transporte de mercadorias,
mas, sobretudo, as militares, oficiais, de povoamento e conquista;
e a todas elas o caravelão se prestava imparcialmente.
Mas não foi apenas essa fatigante
versatilidade que tendia a desencorajar o aparecimento de um barco exclusivamente voltado para as
fainas da cabotagem. Ademais da
concorrência que a caravela lhe
podia eventualmente oferecer nos
percursos litorâneos mais longos,
como a navegação da costa leste-oeste, o caravelão sofria a concorrência dos seus congêneres que,
viajando do Reino de conserva
com as frotas, eram despachados
aos pequenos portos para recolher-lhes a carga, regressando para
a jornada a Portugal. Por conseguinte, o primeiro século de colonização foi de domínio dos caravelões. As "barcas" ("barcken") citadas nos relatórios holandeses eram
desse tipo, pois, como observou
Carlos Francisco Moura, eles não
dispuseram de palavra com que
distingui-las das caravelas. Ora, a
expressão desesperadoramente
vaga de "barcas" era também aplicada às suas próprias embarcações
de pequeno ou de médio porte.
A partir da ocupação holandesa,
caiu um silêncio definitivo sobre
os caravelões da costa; nas fontes
luso-brasileiras, só aqui e ali aparece algum retardatário. Os anos de
guerra naval haviam-lhes sido fatais. Tão exposta e vulnerável
quanto a navegação oceânica, a cabotagem foi decimada pelo corso
neerlandês. Ademais, nas condições da guerra, a própria caravela
atendia melhor à dispersão geográfica dos pequenos portos, de
onde os luso-brasileiros procuravam, a duras penas, manter suas
comunicações com o Reino, permitindo-lhes integrar os percursos
costeiro e oceânico, dispensando
as operações de baldeação da carga, sempre arriscadas diante da vigilância dos iates e chalupas inimigas.
Quando a navegação de cabotagem renasceu no governo de Nassau, o caravelão foi abandonado
em favor de uma embarcação de
origem holandesa, a "smak", logo
aportuguesada em "esmaca" e, depois, em "sumaca". Aporte da civilização material dos conquistadores do Nordeste, onde se instalará
durante 200 anos, a sumaca predominará no tráfego costeiro da região, para daí ganhar todo o litoral
brasileiro. De Pernambuco, ela ganhou a costa leste-oeste no trajeto
entre o Ceará e o Maranhão; e os
percursos da Bahia às capitanias
de baixo. Um documento setecentista afirma que o tráfego marítimo
entre o Rio e Santos já era feito "em
sumacas e outras embarcações semelhantes", linha, aliás, lucrativa,
pois transportava anualmente 10
mil pessoas e rendia 40 contos de
frete. Do Recife e da Bahia, graças
ao tráfico negreiro, a sumaca alcançou a costa ocidental da África,
se é que os holandeses já não a haviam levado originalmente para lá.
Ocorreu que, ao cabo de dois séculos nas nossas águas, perdeu-se
a memória da sua origem holandesa. O almirante francês barão de
Roussin, que realizou sua expedição hidrográfica ao Brasil de 1819 a
1820, mencionou-a, sem aludir à
procedência, pela expressão inglesa "smack", a despeito de a língua
francesa já conhecer a voz "sémaque". Segundo Roussin, tratava-se
de embarcação muito encontradiça no litoral brasileiro. Um historiador da cabotagem nas ilhas britânicas, Robert Simper, observou
ser a sumaca a grande esquecida
dos tempos da navegação à vela.
Algo semelhante ocorreu entre
nós, com a agravante de que o seu
desaparecimento, em meados do
século 19, verificou-se antes que a
fotografia lhe houvesse captado o
perfil, como o fez na costa da Escócia, onde capitulou tardiamente
aos concorrentes, embora Debret
o fixasse precisamente na gravura
que dedicou a Olinda, onde, aliás,
não esteve, razão pela qual exagerou a altura das suas colinas.
A sumaca, que se espalhou por
quase todo o norte da Europa, do
Báltico ao Cantábrico, originara-se
no litoral dos Países Baixos, em razão de cujas características físicas
de pouca profundidade e extensa
rede hidrográfica fora construída
com vistas a integrar a navegação
marítima e a fluvial. A sumaca inscreveu-se na mesma tradição da
arquitetura naval holandesa que
produziu a "fluyt" ou o "koff", barcos de fundo chato e grande capacidade de carga, exigências comerciais a que sacrificavam a elegância
do casco, a rapidez e a maneabilidade. As sumacas operavam especialmente no tráfego entre os Países Baixos, de um lado, e Antuérpia e os portos flamengos, de outro, servindo também na carga e
descarga dos grandes navios. Um
dicionário de marinha de começos
do século 18 distinguia o "smakschip", em flamengo "wydtschip",
ou embarcação larga; e o "smalschip", ou embarcação estreita, diferença apenas de largura, a construção e a armação sendo idênticas. A distinção nascera de circunstância local, o "smalschip"
sendo suficientemente estreito para singrar através das comportas
de Gouda, ou Tergonde, na Holanda, ao passo que o "smakschip",
mais largo, não podia utilizá-las,
vendo-se na contingência de navegar por fora das muralhas urbanas,
através de outra comporta.
Da Holanda, a "smak" emigrou
para a costa oriental da Inglaterra e
da Escócia, cujas relações marítimas com os Países Baixos foram
sempre estreitas; e dali para a costa
ocidental, em torno do Firth of
Clyde, onde a população se adensava, como no litoral neerlandês,
ao longo de uma rica rede hidroviária de rios, camboas e braços de
mar. Sua grafia foi anglicizada em
"smack". Na Grã-Bretanha, ela
prestou-se a uma série de usos,
desde a pesca e o transporte de carvão até a condução de passageiros.
Foi, aliás, na região do Clyde que as
sumacas resistiram mais demoradamente à concorrência da navegação a vapor. Por volta de 1920
ainda existiam naquelas paragens,
embora já tivessem sido substituídas, no resto do litoral escocês, pelos "puffers", os pequenos barcos a
vapor. Nos portos do norte da Alemanha elas também sobreviveram
no decurso de oitocentos, como
indica uma bela gravura da coleção
do Musée de la Marine (Paris). Do
seu papel na cabotagem européia,
basta dizer que mereceu a honra de
reprodução na célebre "Encyclopédie".
Evaldo Cabral de Mello é historiador e diplomata aposentado. É autor, entre outros, de "Rubro Veio", "Olinda Restaurada" e "O Negócio do
Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste,
1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
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