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MEMÓRIA OLIVEIRA LIMA
O Dom Quixote gordo
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Sorte minha descobrir Manoel de
Oliveira Lima (1867-1928) graças a
uma inesquecível conversa com
Gilberto Freyre, brindando a deliciosa batida de pitanga.
Fiquei curioso em conhecer detalhes da vida e obra desse singularíssimo diplomata que gostava de
teatro, além de crítico, jornalista,
ensaísta, colecionador de objetos
de arte. Homenzarrão imenso de
gordura morre longe do Brasil, em
Washington, 1928, dois anos antes
da revolução de 30, e oito anos depois da Semana de Arte Moderna.
"Que maravilha de autor, hein
xará? É o nosso Eça", dizia-me Gilberto Freyre, afável, simpático,
sorrindo da minha empolgação
por essa figura extraordinária que
se apaixonara pela monarquia já
homem maduro, depois de ter sido
republicano quando jovem.
Ele escreve "O Império Brasileiro" na capital norte-americana,
em 1921, oito anos após ter sido
convidado a se retirar do Itamaraty, em 1913, um ano antes de se
deflagrar a Primeira Guerra Mundial.
Se o venerando Barão do Rio
Branco (junto com Joaquim Nabuco) não o tivesse derrubado, provavelmente a diplomacia brasileira
teria evitado a guerra mundial.
O Barão do Rio Branco não perdoou a crítica endereçada ao abuso
da mordomia em nosso serviço diplomático. As "embaixadas de ouro". Segundo Oliveira Lima, o Brasil deveria ser um país rico, e não
um país de rico.
Os abolicionistas, dizia o Dom
Quixote gordo, pensando em Joaquim Nabuco, são uns retóricos da
indignação social. Eles passeiam
pela Europa e compram livros com
o dinheiro dos escravos vendidos
no câmbio negro.
Segundo Oliveira Lima, a República não soube, ou não quis, resgatar a aparência patriarcal que
acompanhou a instituição servil
no Brasil. Os escravos abandonaram as plantations e foram para a
cidade em busca do desfrute da liberdade concedida, assim como os
descendentes dos ex-escravos trocaram suas bagaceiras pelas danceterias funks. Resta outro argumento em defesa do Império que
não foi imperialista, a saber: o inconsciente do povo brasileiro é o
Império com rei. Imperador do divino. Folia de Reis.
Oliveira Lima tinha horror de ser
um homem gordo. "Os gordos",
escreve ele, "querem muito mais
emagrecer do que os magros, engordar". O diplomata pernambucano achava que gordura não era
sinônimo de fortuna. Nem queria
passar por sujeito comilão. Guloso. Afinal, ele se preocupou o tempo todo com a noção de equilíbrio
em nossa cultura. Esse equilíbrio
dentro de uma unidade que se perde com o fim do Império, à semelhança da ilusão americana de
Eduardo Prado, o amigo brasileiro
de Eça de Queiroz, com nostalgia
do equilíbrio perdido.
Apesar da existência da instituição servil, o Império estava perto
de um tal equilíbrio, impedindo o
esfacelamento do Brasil num mosaico colonial. Sem a monarquia,
não haveria a unidade do Brasil como país de dimensão continental.
Nesse aspecto convém salientar
que não é a monarquia "in abstrato" (como forma de governo, parlamentarismo etc.), e sim o acaso
da experiência feliz do Império no
Brasil naquele momento histórico.
Ele diz que Bolívar é o Dom Quixote da América Latina, enquanto
d. João 6º é Sancho Pança, o estadista da Realpolitik, o astuto monarca que transfere a corte da Europa para a colônia. De repente
num meio ambiente semi-selvagem, do ponto de vista institucional, o Brasil recebe 15 mil pessoas
de uma corte da Europa.
O Rio de Janeiro passa a ser a
mais importante cidade brasileira
porque foi palco da monarquia,
ou, como diz Oliveira Lima: cidade
árabe de ruas estreitas e chácaras
inglesas. Antes de d. João 6º, a
maioria absoluta da população carioca não sabia comer no prato.
Antes de sua chegada não existia
vida civilizada.
Oliveira Lima não tinha prurido
de escrever com cacófaton. Sabe
Deus o motivo, aos 60 anos resolve
fazer regime para emagrecer nas
mãos de um médico alemão. Perdeu a metade do peso, perdeu talvez a melhor parte; submete-se a
uma dieta maluca que lhe tira subitamente a vida. Por que diabos resolve emagrecer? Vaidade? Ou
quem sabe um caso amoroso com
uma secretária americana jovem?
Dieta não é tudo. Oliveira Lima
tinha uma quituteira portuguesa
que trabalhava como cozinheira
em sua casa de Washington, sabedor que os EUA jamais produziram um prato de comida.
Gordo por fora, magro por dentro, segundo Gilberto Freyre. A
pernambucana d. Flora, viúva trágica, foi enterrada ao lado do marido num cemitério de Washington.
Durante minhas conversas com
o Xará de Apipucos, imaginei o cineasta Júlio Bressane dirigindo um
belíssimo filme sobre o Dom Quixote gordo.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor
de ciências sociais na Universidade Federal de
Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda"" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.
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