São Paulo, Domingo, 27 de Junho de 1999
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MEMÓRIA OLIVEIRA LIMA

O Dom Quixote gordo

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Sorte minha descobrir Manoel de Oliveira Lima (1867-1928) graças a uma inesquecível conversa com Gilberto Freyre, brindando a deliciosa batida de pitanga.
Fiquei curioso em conhecer detalhes da vida e obra desse singularíssimo diplomata que gostava de teatro, além de crítico, jornalista, ensaísta, colecionador de objetos de arte. Homenzarrão imenso de gordura morre longe do Brasil, em Washington, 1928, dois anos antes da revolução de 30, e oito anos depois da Semana de Arte Moderna.
"Que maravilha de autor, hein xará? É o nosso Eça", dizia-me Gilberto Freyre, afável, simpático, sorrindo da minha empolgação por essa figura extraordinária que se apaixonara pela monarquia já homem maduro, depois de ter sido republicano quando jovem.
Ele escreve "O Império Brasileiro" na capital norte-americana, em 1921, oito anos após ter sido convidado a se retirar do Itamaraty, em 1913, um ano antes de se deflagrar a Primeira Guerra Mundial.
Se o venerando Barão do Rio Branco (junto com Joaquim Nabuco) não o tivesse derrubado, provavelmente a diplomacia brasileira teria evitado a guerra mundial.
O Barão do Rio Branco não perdoou a crítica endereçada ao abuso da mordomia em nosso serviço diplomático. As "embaixadas de ouro". Segundo Oliveira Lima, o Brasil deveria ser um país rico, e não um país de rico.
Os abolicionistas, dizia o Dom Quixote gordo, pensando em Joaquim Nabuco, são uns retóricos da indignação social. Eles passeiam pela Europa e compram livros com o dinheiro dos escravos vendidos no câmbio negro.
Segundo Oliveira Lima, a República não soube, ou não quis, resgatar a aparência patriarcal que acompanhou a instituição servil no Brasil. Os escravos abandonaram as plantations e foram para a cidade em busca do desfrute da liberdade concedida, assim como os descendentes dos ex-escravos trocaram suas bagaceiras pelas danceterias funks. Resta outro argumento em defesa do Império que não foi imperialista, a saber: o inconsciente do povo brasileiro é o Império com rei. Imperador do divino. Folia de Reis.
Oliveira Lima tinha horror de ser um homem gordo. "Os gordos", escreve ele, "querem muito mais emagrecer do que os magros, engordar". O diplomata pernambucano achava que gordura não era sinônimo de fortuna. Nem queria passar por sujeito comilão. Guloso. Afinal, ele se preocupou o tempo todo com a noção de equilíbrio em nossa cultura. Esse equilíbrio dentro de uma unidade que se perde com o fim do Império, à semelhança da ilusão americana de Eduardo Prado, o amigo brasileiro de Eça de Queiroz, com nostalgia do equilíbrio perdido.
Apesar da existência da instituição servil, o Império estava perto de um tal equilíbrio, impedindo o esfacelamento do Brasil num mosaico colonial. Sem a monarquia, não haveria a unidade do Brasil como país de dimensão continental. Nesse aspecto convém salientar que não é a monarquia "in abstrato" (como forma de governo, parlamentarismo etc.), e sim o acaso da experiência feliz do Império no Brasil naquele momento histórico.
Ele diz que Bolívar é o Dom Quixote da América Latina, enquanto d. João 6º é Sancho Pança, o estadista da Realpolitik, o astuto monarca que transfere a corte da Europa para a colônia. De repente num meio ambiente semi-selvagem, do ponto de vista institucional, o Brasil recebe 15 mil pessoas de uma corte da Europa.
O Rio de Janeiro passa a ser a mais importante cidade brasileira porque foi palco da monarquia, ou, como diz Oliveira Lima: cidade árabe de ruas estreitas e chácaras inglesas. Antes de d. João 6º, a maioria absoluta da população carioca não sabia comer no prato. Antes de sua chegada não existia vida civilizada.
Oliveira Lima não tinha prurido de escrever com cacófaton. Sabe Deus o motivo, aos 60 anos resolve fazer regime para emagrecer nas mãos de um médico alemão. Perdeu a metade do peso, perdeu talvez a melhor parte; submete-se a uma dieta maluca que lhe tira subitamente a vida. Por que diabos resolve emagrecer? Vaidade? Ou quem sabe um caso amoroso com uma secretária americana jovem?
Dieta não é tudo. Oliveira Lima tinha uma quituteira portuguesa que trabalhava como cozinheira em sua casa de Washington, sabedor que os EUA jamais produziram um prato de comida.
Gordo por fora, magro por dentro, segundo Gilberto Freyre. A pernambucana d. Flora, viúva trágica, foi enterrada ao lado do marido num cemitério de Washington.
Durante minhas conversas com o Xará de Apipucos, imaginei o cineasta Júlio Bressane dirigindo um belíssimo filme sobre o Dom Quixote gordo.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda"" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.

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