São Paulo, Domingo, 27 de Junho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PONTO DE FUGA

Cultura e cautela

JORGE COLI
especial para a Folha,

em Nova York
O Whitney Museum, em NY, esvaziou todas as suas salas para apresentar uma vasta retrospectiva da cultura norte-americana do século 20. Duas partes foram previstas: agora, a primeira metade do século; em setembro, a segunda. No catálogo, Maxwell L. Anderson exprime-se sobre os mecenas de há cem anos, que só investiam nos mestres franceses ou italianos, ignorando os artistas locais: "Eles, os milionários, relutavam em correr o risco de serem vencidos numa arena em que o dinheiro não traz socorro: a arena do gosto". Essa insegurança perdura ainda. Intelectuais, críticos e colecionadores nos EUA guardam posições tímidas e cautelosas, esperando um reconhecimento internacional -leia-se europeu- para admirar as próprias artes. Isso faz com que a elevada qualidade da pintura americana que precede a abstração dos anos de 1950 seja desdenhada dentro do país e, por conseguinte, ignorada fora dele.
Além de Hopper, de Georgia O'Keeffe e do "American Gothic", de Grant Wood, que, apesar de tudo, se impuseram, outros artistas e obras permanecem na sombra. Ora, as experiências da vanguarda americana, desde o início, dialogavam com as manifestações européias, de modo atual, muitas vezes inventando ou renovando. Além delas, um prodigioso realismo volta-se, nesse período, para a sociedade moderna, com originalidade técnica e pictural, conseguindo um poder de análise e de dinâmica plástica que nenhum outro país ofereceu.

REAÇÕES - A exposição do Whitney, intitulada "The American Century, Art & Culture", sofreu vários ataques por parte da crítica nova-iorquina. É verdade que a ambição em criar um cruzamento entre todas as formas artísticas florescentes nos EUA entre 1900 e 1950, incluindo música e cinema, é excessiva e não podia mesmo funcionar. A discussão sobre uma identidade cultural americana, que era um objetivo proposto, também não deslancha. Porém, os fios que se tecem ali entre fotografia, artes decorativas e artes plásticas formam uma trama expressiva. Seja como for, a imensa quantidade das obras termina fornecendo um panorama insubstituível. Os críticos, em geral, não discutem tanto a mostra em si mesma. Estão mais incomodados pelo fato de que uma produção artística, sentida como um pouco vergonhosa por ser considerada inferior, esteja sendo posta em evidência. Essas obras constituíram o núcleo original do Whitney, criado por uma ricaça que escapou dos comportamentos habituais, investindo em artistas do próprio país. Ela formou o mais importante de todos os museus consagrados à arte americana moderna.

SOTAQUE - Quando, em 1929, Gertrude Vanderbilt Whitney decidiu doar sua fabulosa coleção de pintura americana contemporânea para o Metropolitan Museum, viu sua oferta recusada. O MoMA, que acabara de ser fundado, interessava-se apenas por modernismo europeu. No mesmo clima, até hoje, a Orquestra Sinfônica de Boston nunca teve um diretor titular norte-americano, nem mesmo Bernstein, apesar do esforço que Koussevitzky fez para torná-lo seu sucessor. Um critério, sem dúvida, objetivo: não é pelo ouvido que se reconhece a qualidade, mas porque o maestro é estrangeiro.

PARAÍSOS - É inútil tentar medir altura entre altíssimos e definir os "maiores" do século. Mas não há exagero em tomar Vermeer como o horizonte de Hopper, pintor do silêncio e da solidão modernos, de paisagens urbanas onde a luz e a cor unem-se em modulações que não acabam nunca. Seu "Early Sunday Morning", feito de verdes, vermelhos-surdos, amarelos e azuis, é como que uma nova "Vista de Delft" dos nossos tempos.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


Texto Anterior: "Lazer" é o próximo tema
Próximo Texto: Risco no disco - Ledusha Spinardi: Águas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.