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São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

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+ sociedade

Comentários do autor de "Casa-Grande & Senzala" sobre os EUA dos anos 20 do século passado mantêm até hoje a atualidade

Os EUA de George W.Bush segundo Gilberto Freyre

Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke
especial para a Folha , da Inglaterra

Todo mundo quer um brasileiro" foi o título de um recente artigo, de página inteira, num jornal londrino. O assunto era o novo interesse britânico pela cultura brasileira por razões muito diferentes das que tradicionalmente têm atraído a atenção dos estrangeiros para o Brasil, tais como Copas do Mundo, desastres ecológicos ou algum lamentável escândalo de qualquer natureza. Esse recente interesse, sugere o artigo, talvez seja fruto de uma nova percepção das possibilidades de um país grande, economicamente importante e excepcionalmente rico em diversidades raciais e culturais. Se se acrescer a esses fatores o seu novo líder -visto mais e mais como "o salvador da esquerda internacional"-, o Brasil pode ser considerado "o único país nas Américas que pode se opor aos EUA". Confirmando (e ampliando) essa expectativa sem precedentes, o sociólogo Anthony Giddens apresentou o presidente à platéia da London School of Economics no dia 14 de julho dizendo: "Lula diz que quer mudar o Brasil, mas eu seriamente acho que ele tem chances de mudar o mundo". Enfim, a grande novidade é que, de repente, o Brasil está aqui em alta.

Especulação
É difícil, nesse clima de "brasilofilia", não especular sobre o que diria Gilberto Freyre -tão vaidoso de si e de seu país- sobre esse papel de crítico dos Estados Unidos de Bush a que o Brasil está sendo chamado. Sem dúvida, se estivesse vivo, ele se sentiria no dever de opinar sobre um assunto de interesse mundial como esse. No entanto não temos que exercitar quase nada nossa imaginação para supor o que Freyre teria dito. Se observarmos os comentários que fez a aspectos da cultura americana que conheceu na juventude, fica muitas vezes difícil acreditar que eles não diziam respeito a 2003, mas sim às primeiras décadas do século 20. Perspicaz e arguto em suas observações, muitas das críticas que Freyre dirigiu aos EUA dos anos 20 foram afiadas, maduras e, guardada a distância, se revelam ainda hoje pertinentes. Para facilitar ainda mais esse exercício, lembremos que Freyre iniciou sua experiência americana numa região texana que é hoje conhecida como a "ala sudoeste da Casa Branca". A provinciana Waco, onde viveu mais de dois anos estudando no chamado "Vaticano Batista" (a Universidade de Baylor), fica a poucas milhas do "ranch" de Bush e, como parte do "Bible Belt", se acha hoje muito próxima do poder central do país. Como dizem os críticos, o puritanismo e fundamentalismo tradicionais de Waco e seus arredores floresce livremente em Washington e dita regras para o mundo.

Senhor dólar
Mas vejamos uma pequena amostra do que o jovem Freyre nos diz de relevante sobre os Estados Unidos em que viveu. Em primeiro lugar, irritava-o sobremaneira a mania americana de tudo avaliar pelo preço e se impressionava com o poderio do que chamava de "tentáculos do Senhor Dólar todo poderoso". Atento às discussões políticas, aos discursos presidenciais, às políticas governamentais e ao comportamento religioso e social do cidadão médio, Freyre notava uma forte tendência norte-americana para a mediocridade, puritanismo, comercialismo e imperialismo, que o incomodavam ao extremo. Em primeiro lugar, o sistema político tão glorificado deveria ser descrito como uma "democracia desvairada" que privilegia a mediocridade em detrimento dos "homens de gênio", dos verdadeiros estadistas superiores em "competência, virtude e capacidade de ação". A democracia americana só de quando em quando "puxa para a frente, pela gola do paletó, um grande homem". Fora esse o caso de Woodrow Wilson, o presidente que se tornou paladino da Liga das Nações. Em contrapartida, o vencedor da eleição de 1920 dera dos males dessa "xaroposa democracia" um eloquente testemunho. Numa época em que a questão central que dominava o cenário mundial era a reconstrução do pós-guerra, vencera o candidato que defendia os interesses do "americanismo estreito" em oposição ao "grande plano de arquitetura jurídica e social" da Liga das Nações. Homem do qual não "se conhecem idéias próprias de importância nem iniciativas memoráveis", o eleito, Warren Harding, pertencia, sem dúvida, à "família dos medíocres", afirmou Freyre. Seu cérebro vale US$ 25, em contraste com o US$ 1 milhão de seu antecessor, Wilson, estipula Freyre imitando jocosamente a mania americana de tudo avaliar por cifras. Já o puritanismo galopante que assolava o país, gerando, de um lado, a famigerada Lei Seca e, de outro, coibindo o desenvolvimento da arte com uma estrita censura, lhe parecia sisudo, tirânico e "estúpido".

Espírito de roncador
Muitos desses males se deviam ao espírito "de roncador", um traço cultural norte-americano que Freyre considerava bastante acentuado. Seja por ingenuidade, seja por arrogância, constatava o nosso visitante, os Estados Unidos -em geral e, "mais do que ninguém", na pessoa de seu presidente em exercício- se acham "liricamente" convencidos de que em tudo, em governo, arte, literatura, moralidade, esportes, "estão légua e meia adiante do resto do mundo" e que têm o direito de limitar a soberania de outros países quando se trata de salvaguardar e promover os interesses nacionais norte-americanos. "Liga das Nações", "Pan-Americanismo" ou qualquer ideal internacionalista que possa se opor ao "americanismo estreito" encontra ali grande oposição, Freyre comenta.

O desejo dos medíocres
O candidato democrata, cuja plataforma era "enfática" no apoio a uma política internacional não-isolacionista, fora derrotado porque "assim quiseram os medíocres". Para completar, os americanos são propensos a um patriotismo enganoso e tendem a dar apoio para "as chamadas "mentiras patrióticas'", como o discurso das "vitórias, glórias e virtudes" de um "povo-deus, imaculado, sempre a vencer os estrangeiros maus", observa nosso crítico com rara perspicácia.
Mas resta uma esperança, sugere Freyre. Quando a "capacidade inventiva" e o "amor à aventura" que construíram um grande país se deixam nortear pelos grandes homens e ideais de seu passado, os Estados Unidos encontram em si mesmos "corretivos" e "fortes contrapesos" à pequenez que os acomete de quando em quando. Esse, ao menos, era o consolo dos anos 20. E agora?


Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é professora aposentada da USP, pesquisadora associada do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge e autora de "As Muitas Faces da História" (ed. Unesp). Escreve atualmente um livro sobre Gilberto Freyre e sua anglofilia.


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