São Paulo, domingo, 27 de julho de 2008

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Ponto de fuga

As quatro faces de Emma: Renoir


Há, na "Madame Bovary" de Renoir, um sentido certeiro da economia: uma chave de sua narração é a elipse

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O recente lançamento de "Madame Bovary", filme dirigido por Jean Renoir, em DVD (Versátil), é um acontecimento. Filme raro, era difícil descobri-lo perdido em alguma cinemateca.
Todo cinéfilo lamenta que tivessem amputado 70 minutos quando chegou aos cinemas, em 1933. O que sobrou, no entanto, é ainda prodigioso. Foi mal amado, sobretudo por causa da escolha de Valentine Tessier para o papel de Emma. A atriz não parecia suficientemente bonita. De fato, como notou um crítico, ela se situava "entre o cisne e o ganso", ou seja, um pouco atraente mas razoavelmente comum, gênero da gostosa de cidade do interior.
Isso, porém, lhe retira o álibi da beleza que poderia justificar os arrebatamentos românticos que a habitavam.
Disseram ainda que Valentine Tessier representava de modo exagerado, com uma teatralidade artificial. Ora, esse é exatamente um dos pontos mais prodigiosos do filme.
Emma Bovary criou para si as expectativas de uma vida que a levasse para esferas superiores, intensas e apaixonadas. Ela se vê como a heroína ao mesmo tempo trágica e fictícia desse mundo imaginário.
"Ela é", formulou Célia Bertin, "a imagem que Emma Bovary tem de si mesma". Representa, para si própria, seu papel romântico carregado de frustrações. No teatro de Rouen, Flaubert a descreve identificando-se com o destino infeliz de um personagem de ópera, Lucia di Lamermoor. Renoir, nessa cena, mostra suas expressões excessivas, sua mímica afetada, insuportável, ao ouvir a música. Sente-se um personagem do palco naufragado na banalidade da vida.

Tesouras
Há, no filme de Renoir, um sentido certeiro da economia.
Não apenas porque o filme foi retalhado à sua revelia: uma chave de sua narração é a elipse. Não se interessa pela crônica de costumes, que é muito presente no livro. Porém seu filme está embebido pela vida do campo e da cidade pequena, rasteira e sem encantos.
Renoir escolheu locações na Normandia. Não havia nenhuma ruptura decisiva entre 1933, data do filme, e os tempos de Flaubert, no que se refere vida à vida cotidiana do campo e dos vilarejos franceses.
É esse arcaísmo sem glamour que o cineasta capta. Imersa nele, a teatralidade de Valentine Tessier emerge, ao mesmo tempo deslocada e coerente.
A música de "Madame Bovary" foi composta por Darius Milhaud.
É um comentário admirável, sem sentimentalismo, por vezes irônico, nunca maldoso.

Propensão
Instintivamente, Renoir repugna a aristocracia. A cena do baile no castelo de Vaubyessard é vista à distância; o cineasta dispõe obstáculos, paredes, entre a câmera e os pares que dançam para não integrar o espectador nesse meio. É o mesmo procedimento que ele emprega em "A Carruagem de Ouro" (1953), filme que fala também da mistura entre vida e teatro.
Não tem afeição por Emma Bovary, mas ela o fascina. "Você sabe, nesta terra há uma coisa assustadora, é que todo mundo tem suas razões", diz um personagem em "A Regra do Jogo", outro filme de Renoir. Seu cinema distingue e tenta compreender as diferenças de cada ser.
Isso não quer dizer que sinta simpatia por todos: alguns são abjetos e odiosos.

Dr. Jekyll
O fato de Renoir ter filmado no final de sua carreira uma versão de "O Médico e o Monstro", com o título de "O Testamento do Dr. Cordelier" (1959), é expressivo de seu humanismo, que expõe a mistura de bem e de mal existente em cada um.


jorgecoli@uol.com.br


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