São Paulo, domingo, 27 de julho de 2008

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O grande formador

Maior crítico literário do país, Antonio Candido faz 90 anos, mas suas lições continuam mal compreendidas

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Pedem-me que diga em poucas linhas o que me parece mais significativo na obra de Antonio Candido.
Depois de separar seus livros e relê-los por mínimas horas, minha primeira resposta praticamente se opunha à tarefa que havia aceito: o leitor de fato interessado há de lê-lo por inteiro. Só quem assim fizer terá segurança em compreender como seu perfil intelectual foi se constituindo.
Deparo-me, contudo, com a reiteração de um fato curioso: ao ser lida ou ouvida, a palavra tem a propriedade de nos fazer nela entender o que antes não se sabia. Assim, mal escrevo o que se leu, me digo: por que eu mesmo não procuro formular como vejo que se formou o perfil de Antonio Candido?
Releio então com cuidado "Brigada Ligeira" (1945) e procuro selecionar passagem posterior, entre os quais possa estabelecer um curso.
Dos pequenos artigos de "Brigada Ligeira", concentro-me em passagens sobre os romances de Jorge Amado [1912-2001] e Oswald de Andrade [1890-1954].
O então jovem crítico elogiava no escritor baiano ter abandonado a visão "lírica e de certo modo pitoresca do homem do campo", então vigente, em favor das "perspectivas de conflito" decorrentes de nossa extrema desigualdade social.

Diferenciar
Dentro dessa mudança de óptica, destaca em Jorge Amado seu "apelo algo fácil para a sentimentalidade, o patético de segunda ordem". Sem que se restrinja a criticá-lo, acentua ainda sua falta de construção, sua capacidade "fraca e sumária" de análise.
Ou seja, em vez de reduzir o que e o como à mesma coisa, importa ao crítico diferenciar entre a natureza do argumento que o romancista escolhia e a maneira de constituí-lo em objeto literário.
A mesma distinção reaparecerá a propósito de Oswald.
Mas seu rendimento não é idêntico. Em contraste com a primeira fase, pós-parnasiana e recendendo a literatura, seus romances experimentais são vistos como um degrau acima, ainda que situados em um degrau inferior àquele em que estaria "A Revolução Melancólica", na abertura da série do "Marco Zero", isto é, do Oswald do romance social.
Neste, portanto, ultrapassadas as duas primeiras fases, Oswald se lançava numa "perspectiva sintética de crítica social construtiva". Ou seja, ao contrário do que sucedia na apreciação de Amado, a primeira variável -o destaque da matéria social- sufocava e deitava por terra a segunda -a exigência de o objeto atender à qualificação literária.

Destaques
Aprendiz de um ofício em um país em que o iniciante há de ser o mestre de si mesmo, Candido ficava aquém de sua própria exigência.
Contraste-se esse resultado com a abertura do "Prefácio a "O Discurso e a Cidade'" (1993): (Tento analisar) "o processo por cujo intermédio a realidade do mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional, componente de uma estrutura literária, permitindo que seja estudada em si mesma, como algo autônomo".
Seria dentro desse percurso que localizaria o que de mais significativo tem sido feito pelo homenageado.
Destaco, então, dois tipos de textos: aqueles em que ressalta a própria análise sociológica da literatura e aqueles em que o objeto privilegiado é um texto específico.
No primeiro caso, são exemplares "O Escritor e o Público", hoje em "Literatura e Sociedade", e "Literatura e Subdesenvolvimento", presente em "A Educação pela Noite". Não me furto a destacar duas pequenas passagens do primeiro.
Embora Candido esteja tratando da literatura brasileira do 19, os motivos centrais que aborda continuam entre nós presentes, conquanto as "palavras de ordem ou incentivo" esperadas hoje antes derivem das colunas televisivas do que propriamente dos escritores: "Esta literatura militante chegou ao grande público como sermão, artigo, panfleto, ode cívica; e o grande público aprendeu a esperar dos intelectuais palavras de ordem ou incentivo, com referência aos problemas da jovem nação que surgia".

Marcos interpretativos
O segundo trecho exigiria outra reflexão: "A grande maioria dos nossos escritores, em prosa e verso, fala de pena em punho e prefigura um leitor que ouve o som de sua voz brotar a cada passo por entre as linhas".
A permanência dessa "oralidade" se dá menos pelo tom enfático da palavra de escritores-cronistas do que pela ausência de reflexão que continuamos a cultivar.
Já o segundo tipo que saliento concerne a obras especificamente literárias. Aí ressaltaria os estudos primorosos sobre "Grande Sertão", de Guimarães Rosa -"O Homem dos Avessos" (originalmente publicado em 1957) e a "Dialética da Malandragem", sobre as "Memórias de um Sargento de Milícias", de Manuel Antônio de Almeida, de 1970 [incluído em "O Discurso e a Cidade"].
O leitor menos ligado à especialidade literária poderá supor que, dado o prestígio de Candido, os analistas vindos depois dele evitariam os deslizes que ele soubera apontar. Mas não é bem assim.
É verdade que a diferenciação entre os planos de abordagem historiográfico e literário não é algo corriqueiro. Mas não deixa de ser espantoso que, sobretudo em relação a "Grande Sertão: Veredas", a diferenciação que Candido tão bem soube estabelecer, mal o romance esteve lançado, é "esquecida" em favor de uma historicidade simplesmente de pasmar. O pequeno espaço de que disponho não me permite dizer mais.
Lamento não ter ainda umas poucas linhas para examinar o que diz acerca dos fragmentos sobre a literatura colonial que Sérgio Buarque de Holanda [1902-82] não terminou.

Outra história
O que Candido declara sobre a reflexão do amigo -que, a propósito de um Cláudio Manuel, fundindo os veios barroco e neoclássico, opunha uma "visão longitudinal" da história da literatura, à transversal, "quase obrigatória"- seria um argumento estimulante para o debate em torno da concepção de história da literatura que domina na obra mais discutida de Candido, "Formação da Literatura Brasileira" (1959).
Na impossibilidade de fazê-lo, apenas acentuo que o estímulo a uma visão longitudinal da história da literatura não só serviria para o debate fecundo da "Formação" como de obstáculo para a separação rígida da história em períodos, que a assemelha a uma linha que o tempo vai fazendo com que mude unanimemente de cor e feição.


LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.


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