São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Principal nome da dança-teatro no século 20, Pina Bausch defende a dissolução dos limites entre as artes
A arte total de Pina Bausch

O gesto essencial

Américo Mariano
A coreógrafa alemã Pina Bausch, em Paris, em julho


por Arthur Nestrovski
e Inês Bogéa

enviados especiais a Paris

Imagine uma arte total: dança, teatro, literatura, música, artes plásticas, cinema. Bailarinos que são atores que não são atores, porque não existe mais diferença entre personagem e personalidade. Nem o corpo define o limite do movimento nem os sentidos se abrigam só no que não tem palavras: o corpo é uma realidade por meio da qual se passa. Nada acontece; e tudo. A matéria ordinária da vida se deixa ver por fora e por dentro; sentido e sentimento viram traduções um do outro, numa linguagem essencial, que ninguém nunca aprendeu e que todo mundo entende. E essa arte existe. Existe há quase 30 anos, praticada por Pina Bausch e sua companhia, o Tanztheater Wuppertal.
Uma mulher de olhos fechados caminha pelo palco, com os braços estendidos para baixo, cortando uma linha em meio ao mar de cadeiras, que um homem se esforça para tirar do caminho. Uma fileira de bailarinos passa de um lado a outro, em roupa de festa, trançando os braços, brejeiros. Um homem de terno e gravata fica imóvel, com os punhos sobre o peito, no palco coberto de cravos. Uma mulher, sentada numa cadeira no meio da cena, chora, impassível, durante os 20 minutos do intervalo. Um casal se abraça com paixão, mas é separado mecanicamente por um terceiro; a cena se repete interminavelmente. Um homem caminha solitário, de chapéu e paletó, com água até a cintura.
São imagens e mais imagens da dança de Pina Bausch, que nos resume em termos de uma outra inteligência, outra sensibilidade ou seja que nome se dê para o entendimento humano das coisas.
A idéia de uma "dança-teatro" não é nova. Já era praticada na década de 20 por Kurt Jooss, pioneiro da dança expressionista alemã, com quem Pina Bausch estudou. Mas é com os espetáculos do Tanztheater Wuppertal, desde fins da década de 70, que ela ganha um prestígio inusitado. A dança-teatro de Pina Bausch, que nasceu junto com os trabalhos de toda uma geração (incluindo nomes como Reinhild Hoffman e Susanne Linke), parece hoje, em alguma medida, livre de heranças e concomitâncias. Como toda expressão que chega ao máximo de si, ela dá rosto ao tempo e é maior do que o tempo. É sua própria referência, a partir da qual vai se inventando de novo, por outros caminhos.
Isso se deve, em boa medida, ao método de trabalho da coreógrafa, que ela discute em entrevista exclusiva ao Mais! (leia na pág. 8). É uma invenção desenvolvida aos poucos, e intimamente ligada ao resultado que agora se vê. Não há roteiro prévio, nem ao menos uma idéia de partida. O espetáculo se faz a partir de laboratórios com os bailarinos. Eles respondem a perguntas, que podem ser tanto descritivas ("o que você viu no mercado?"), como pessoais ("do que você se orgulha?"), ou abstratas ("a esperança"). As respostas dançadas podem ou não virar material para outras improvisações, que podem ou não ser utilizadas depois. Pouco a pouco, Pina Bausch vai selecionando gestos, alterando a forma dos movimentos, construindo cenas e montando o grande quebra-cabeça.

Colagem e repetição
Dois princípios formais são especialmente relevantes: a colagem, que conjuga cenas diversas, sem transição; e a repetição, tanto das cenas como de movimentos dentro delas. O efeito pode ser semelhante ao de uma palavra repetida muitas vezes: vira algo de estranho, no limite do absurdo. Nesse contexto, todo e qualquer gesto pode virar material da dança.
O que não significa que possa ser feito de toda e qualquer maneira: a tensão interna dos espetáculos é rigorosa, o tempo não está entregue ao acaso e nada do que se vê no palco é improvisado, embora tenha partido da improvisação.
A música só vem depois das cenas prontas; é mais um elemento, como o cenário e a luz, que se soma ao trabalho dos bailarinos. E, assim como todo tipo de gesto, do sofisticado ao banal, pode se integrar ao idioma da dança, todo tipo de música cabe, de Schübert a Edith Piaf, de Haendel ao tango e a Duke Ellington. No limite, os espetáculos tendem para a incorporação total.
Nos intervalos entre sentido e forma, que a dança-teatro de Pina Bausch não cessa de explorar, a expressão vem à tona com uma potência única. Lá onde as palavras não dizem, a dança começa. Começa também a não dizer, mas de outro modo. É uma arte, por excelência, do nosso tempo: uma arte da catástrofe e do trauma, da reticência e da memória. Vai além das contingências (por exemplo, nas relações entre homens e mulheres, um tema recorrente), mas só porque ultrapassa, em cena, essas mesmas contingências.
"Para mim, é mais importante ver as pessoas na rua do que ir ao teatro ver um espetáculo de dança", disse Pina. Nesses últimos anos, ela tem se dedicado a ver pessoas nas ruas de várias cidades: Lisboa, Roma, Hong Kong, Austin, Budapeste. Para cada espetáculo, a companhia faz uma residência num lugar. As impressões dos bailarinos servem, então, de material para a dança. A próxima cidade é São Paulo, onde Pina Bausch e o Tanztheater Wuppertal farão uma residência de duas semanas, em dezembro (apresentarão também o espetáculo lisboeta "Mazurca Fogo", no Teatro Alfa).
A influência de Pina Bausch é imensa. Com 60 anos recém-feitos, ela está para a dança como um Pierre Boulez para a música, um Grotowski para o teatro, um Fellini para o cinema. A seleção de comparações não é casual: sua presença se expande para essas áreas, indireta ou até diretamente, como no caso de Fellini, que a escolheu para ser a princesa cega de "... E La Nave Va".
Ver um espetáculo de Pina Bausch é uma experiência única. Em mais de um sentido: porque não existe nada igual; porque essa dança, ao vivo, vive mesmo no palco, a cada vez como nenhuma vez; e também porque o espectador, sem sair do lugar, tem papel nesse teatro de formas e afetos, e cada um de nós faz dessa arte algo novo. Essa arte é uma das marcas do nosso tempo; nós, que não deixamos marcas, somos as testemunhas.
Criados por ela, cabe a nós o espanto e um encantamento renovado a cada encontro com a dança-teatro de Pina Bausch.


Arthur Nestrovski é professor titular de literatura na pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Seu novo livro, "Notas Musicais", está sendo lançado neste mês pela PubliFolha.
Inês Bogéa é bailarina do grupo Corpo.



Texto Anterior: + 3 questões Sobre heróis
Próximo Texto: Federico Fellini
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.