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Pina Bausch
Aquela coisa toda
"Encontrei uma força viva que funcionava como se estivesse recebendo o "Sgt. Pepper's" e os contos de Clarice"
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por Caetano Veloso
Ensaio todos os meus shows sentado de frente para
os músicos. Os movimentos de corpo que vou adicionando, depois subtraindo, substituindo -mas que,
ao longo das temporadas, vão se multiplicando- , começam a se formar quando o show já está diante do público. Isso é o que me permite uma atitude desabusada
com respeito às quase-danças que acompanham minhas apresentações de canções no palco. Não sou dançarino. Já na estréia de "Livro Vivo", em São Paulo, eu
deliberadamente fazia, num determinado momento,
gestos repetitivos, maquinais-obsessivos, num estilo
que muitos associam ao trabalho de Pina Bausch: era
um aceno a essa artista que me apaixona.
Na canção "Jorge de Capadócia", quando na letra se
diz "cordas e correntes arrebentem/ sem o meu corpo
amarrar", eu repetia diversas vezes (e independentemente do ritmo em que estava cantando) o gesto de desatar amarras, passando um pulso pelo outro com rispidez e abrindo os braços até meio-caminho, onde o movimento se interrompia e recomeçava. Era uma referência, parente dos flashes de Carmem Miranda ou de
Mick Jagger que brilhavam por alguns segundos no
show de "Transa", em Londres, 1971. Fora essa citação,
não há nada da dança de Pina Bausch nas minhas dancinhas de "Livro Vivo". Embora hoje haja muito de Pina Bausch em mim.
Pina estava em Paris na platéia de "Livro Vivo", no
mês passado. Lá também estava Betty Milan, que escreveu um texto muito terno sobre o show. Nesse texto,
Betty conta ter percebido a presença constante da dança
de Pina na minha dança. Mas a verdade é que a grande
influência no desenvolvimento do meu gestual cênico
vem de outra dançarina: Maria Esther Stockler, sobre
quem escrevi palavras entusiásticas no livro "Verdade
Tropical" (e de cuja arte se podem ver exemplos no filme "O Cinema Falado"), mas cuja contribuição propriamente artística não encontrou, no referido livro, o
espaço de comentário que mereceria. Curiosamente, foi
Betty Milan quem me chamou a atenção para o fato de
ser esse meu tão extenso livro uma conversa entre homens, em que as mulheres não parecem ter presença de
criadoras ou pensadoras. De fato, por mais impactante que tenha me parecido o estilo pessoal (e literário) de
José Agrippino de Paula, Maria Esther Stockler não poderia estar no livro apenas como sua namorada, quando, no fim das contas, há mais influência direta da arte
dela sobre a minha do que poderia haver da dele. "Clube do Bolinha". (Tampouco aparece no livro referência
ao trabalho de Eveline Hoisel sobre "Panamérica", trabalho que li antes mesmo de ser publicado e que desmente minha afirmação de que a "epopéia" de Agrippino não teve acompanhamento crítico significativo.)
Maria Esther, com sua independência, sua feroz radicalidade, resguarda do lixo vulgar do mundo publicitário
em que atuamos os passos sagrados, os acenos a um
tempo viscerais e etéreos, os meneios cultos e orgânicos
que ela tem sabido desenvolver. É o que vejo nela que,
quase sem pensar, busco nos esforços de purificação
corporal libertadora com que, entre outras coisas, tento
salvar-me de mim mesmo. Maria Esther Stockler, uma
bailarina brasileira.
Conquista pela surpresa
Pina Bausch é outra
coisa para mim. Chegou muito depois e me conquistou
pela surpresa. O importantíssimo acontecimento que
foi a volta ao Brasil de Gerald Thomas como diretor de
teatro trouxe às conversas que ouvi -e aos artigos que
li- dois nomes: Bob Wilson e Pina Bausch. Ligavam
sempre ambos a uma estética de alta formalização e a
uma temática do desespero expresso em movimentos
obsessivos. Nunca vi nada de Wilson. Vi as encenações
de Thomas e, embora me impressionasse a adequação
da produção aos efeitos almejados -e ele me parecesse, ao menos quanto a isso, deixar o resto do teatro brasileiro na pré-história-, nada chegou a me encher as
medidas como o tinham feito o "Zumbi" de Boal e "O
Rei da Vela" de Zé Celso -e como veio a fazê-lo o recente "Ventriloquist" do próprio Gerald.
As primeiras peças dele a que assisti me sugeriam vitrines bem-arrumadas em que se expunha, não sem
uma certa ironia, a estetização de um pessimismo de
convenção. Quando vi o grupo de Pina pela primeira
vez, no Municipal do Rio, com um espetáculo em que se
dizia que os bailarinos dançavam sobre lama e uma
mulher chorava por 15 minutos, com grito e montanha
no título, fiquei estarrecido. Em vez da butique do desespero que seus supostos admiradores brasileiros
anunciavam, encontrei uma força viva, uma inspiração
genuína que funcionava em mim como se eu estivesse
recebendo pela primeira vez (e ao mesmo tempo) os
contos de Clarice Lispector e o "Sgt. Pepper's Lonely
Hearts Club Band".
As roupas ocidentais modernas nunca foram comentadas pela dança com tanta profundidade. A lama era
um desafio cenográfico que, por se lograr do modo como se lograva, perdia o caráter de notícia e, ainda assim,
não se gastava como efeito, sempre oferecendo grandes
oportunidades de experiências tenras, novas -isso ao
longo de horas. A mulher que chorava no intervalo trazia um tal sinal de frescor do ânimo do grupo, era um tal
testemunho da realidade do teatro e da teatralidade do
real, que a gente não tinha como reagir com uma resposta pronta: a gente tinha que se demorar, conviver,
pensar, parar de pensar, parar para pensar. Um uivo de
lobo com lua de papel colada no fundo do palco; uma
mulher que andava sobre um imaginário chão vertical
na linha da cortina lateral do palco, repetidamente carregada por um grupo de homens desde o chão até o
mais alto que desse; um torneio de natação (a lama sobre o palco). Em suma, eu me comovia e me esquecia de
mim e reencontrava lugares do espírito que aos poucos
reconhecia e era levado a outros lugares que desconhecia até então e que me faziam entender melhor os antigos lugares. Tinham me anunciado um show de idéias
cromadas e eu encontrava a vida. Me falavam de Gerald
e de Antunes e de Bia Lessa e de Bob Wilson e eu só me
lembrava de "Aquela Coisa Toda" do Asdrúbal Trouxe
o Trombone.
Instância precária
Isso aqui é uma confissão algo
acrítica de um espectador que se sente artista enquanto
assiste. "Aquela Coisa Toda" foi uma das minhas mais
intensas experiências como espectador de teatro. Não
poderia talvez criticamente comparar-se ao "Zumbi",
ao "Rei da Vela", ao "Macunaíma". Contemporâneo
deste último, o espetáculo do Asdrúbal era-me, então,
grandemente preferível. É que a instância crítica é uma
instância precária.
Os atores do Asdrúbal tinham necessariamente que
ser aquelas pessoas. O palco de repente ficava nu, enquanto eles surgiam em pontos dispersos da platéia para lançar perguntas aos integrantes do grupo. Essas perguntas eram cômicas, tocantes, embaraçosas: e o palco
vazio e silente deixava-nos com um espaço aberto na
mente, um pouco assustados, um pouco melancólicos,
como na experiência de certos poemas. Quando a situação de repente se invertia e os atores se amontoavam no
palco e respondiam perguntas que não se ouviam, o silêncio da platéia saía de cada espectador como se fosse
uma exposição de suas responsabilidades. De repente,
Dionisos em pessoa fazia uma aparição. Quando, ao final, depois de os atores quase-dançarem um périplo pelos Estados do Brasil, eles aderiam, com palavras justas
e passo marcado, às greves então arriscadas e pioneiras
dos operários paulistas, a dimensão política se nos revelava como uma questão moral íntima, como um movimento do afeto.
Isso tudo era considerado pela crítica profissional como "narcisismo", um "olhar para o próprio umbigo".
E, como o público convencional de teatro acompanhava a crítica no entusiasmo pelo "Macunaíma" de Antunes, e o público especial que o Asdrúbal tinha criado para si com "Trate-Me Leão" não reencontrava o costumismo dessa peça em "Aquela Coisa Toda", assisti a esta última muitas vezes quase sozinho no teatro. O que
me deixou na memória um segredo estético que não
compartilho bem nem com os responsáveis pelo espetáculo. De fato, foi essa qualidade de alma que reencontrei na primeira visão do teatro de Pina -mas Hamilton Vaz Pereira, o diretor de "Aquela Coisa Toda", na
platéia do Municipal naquela noite, me confessou não
ter percebido o encanto do Tanztheater de Wuppertal.
Eu, porém, entre Rio e Nova York -e depois em
Wuppertal, na celebração dos 25 anos da companhia-
, vi tudo o que pude de Pina: quase todo o repertório. E
sempre a renovação e o aprofundamento da esplendorosa impressão inicial. E sempre a surpresa.
Propus-me a saudar Pina Bausch quando aceitei escrever aqui sobre sua arte. E, no fim, me entreguei a digressões que são retalhos de autobiografia (e reparos à
quase-autobiografia que já publiquei em livro). E o que
sinto que falta dizer não é de outra natureza.
Devo aqui saldar uma dívida enviesada com o teatro-dança de Tom Zé. O momento em que ele tirava partido
do fato de estar sentado numa cadeira diante de um microfone, com minuciosa inventividade, foi um dos mais
entusiasmantes para mim do show que ele apresentou,
faz poucos anos, no teatro Vila Velha, na Bahia. Paula
Lavigne, que estava comigo, me disse depois do espetáculo: "Você é legal, tudo o que você faz pode ser interessante, mas isso aí é diferente: isso aí é um gênio". Foi no
"Circuladô" que eu fiz, pela primeira vez, um número
de cantar meio-dançando sentado na cadeira: era o tango "Mano a Mano" e eu contracenava com o violão. Depois, no show "Fina Estampa", criei variações para isso
em "Lamento Borincano".
O que vi de Tom Zé no Vila Velha era tão diferente do
que faço que eu nunca pensei em relacionar as duas coisas. Muito menos em considerar precedências. Mas é
certo que Tom Zé estava ali repetindo -ele o disse-
um número que ele tinha feito na TV anos antes. Ao me
ver recentemente no show "Livro Vivo", fazendo um
número assim, Tom Zé sentiu-se mal. E me disse isso.
Como muita gente viu "Livro Vivo", e muito pouca
gente viu Tom Zé fazendo aquele número, preciso dizer
de público que, em matéria de cantor cantar dançando-representando sentado na cadeira, o número de Tom
Zé não é apenas diferente do meu, mas muito melhor. E
talvez anterior. Além de não ser seguro que eu não tenha, inconscientemente, pegado algum detalhe exterior
daquilo que ele fazia. Muita dor atravessa esses anos todos em que fui famoso e Tom Zé não.
Antes disso, ele e eu aprendemos muito com Boal. O
"Arena Canta Bahia" era sobretudo teatro-dança. Chico
Buarque acha que, no meu livro, fui injusto com Boal.
Não fui. É injusto deixar parecer que, no livro, não traço, ao falar dele, o retrato de alguém grandioso artisticamente. Pediria a quem pensou como Chico que reconsiderasse o teor dos elogios ali contidos à personalidade
artística de Boal. Que houve, no momento do tropicalismo, um antagonismo explícito entre nós e ele, não quis
(nem deveria) negar. Narrei-o. Qualquer leitor pode decidir que Boal, e não os tropicalistas, é que tinha razão.
Deveria falar também da angústia de ter demorado
tantos anos para ver Denise Stoklos no palco. Se este
fosse um artigo crítico, eu não poderia deixar de medir a
importância que ela tem para mim. E os que fazem dança propriamente, no Brasil: o grupo Corpo, Débora Colker, tantos. Mas a dança, em estado puro, tinha que ficar
aqui representada por Maria Esther Stockler.
E Pina Bausch? Lá vai Caetano, dirão, olhando para o
próprio umbigo, escrevendo sobre si e sobre o que vai
escrevendo sobre si. Mas não é. É que entrar em contato
com uma artista grande como Pina é arriscar-se a passar por mudanças que requerem auto-reexame. Em outras palavras: a quem me dá a vida não posso oferecer
nada menos do que isto: a minha vida.
Caetano Veloso é compositor e cantor, autor do livro "Verdade Tropical" (Companhia das Letras).
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