São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


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Globalização à chinesa


Aos poucos entendi que o móvel da conferência era justificar "a transição acelerada da economia planejada para a de mercado': afirmar, e não discutir, como a China há de se comportar diante da globalização

Luiz Costa Lima

Descobri o modo mais desastrado de aprender algo acerca de um objeto que desconhecia. O objeto era a China, e o modo desastrado, aceitar o convite para participar de simpósio que se realizaria em Pequim, de 28 de julho a 1º de agosto. Embora seu título já fosse intrigante -"The Future of Literary Theory - China and the World" (O Futuro da Teoria Literária - A China e o Mundo)-, a ironia com que o li fez com que me sentisse preconceituoso. Intrigado, me perguntava: que teria a ver a China com o futuro da literatura? E em que teria a literatura a contribuir com a integração da China com o mundo? E, talvez porque ninguém se dispunha a respondê-las, limitei-me a lembrar frase do diário do poeta Wallace Stevens (1879-1955): "Ambição e energia mantêm jovem o homem" (20 de outubro de 1903).
Tamanhas vantagens mereciam o risco. Além do mais, a energia pedida consistia tão-só em encontrar um tema que pudesse interessar alguns ouvintes. E a ambição, em que fosse ouvido tão longe. Agora, dias passados, a energia muda de aspecto: relendo as comunicações dos colegas chineses, encontrar o fio que explique o que escutava (em troca, já não há ambição). Deixo de lado as comunicações dos ocidentais, pois não contribuíam para minha perplexidade.

Justificar a transição
De imediato, percebo o que nem sequer suspeitava: a conferência tinha um ingrediente político fundamental. Tratava-se de fixar o papel que a literatura deverá assumir na China em ebulição. Para que o dado faça sentido, será preciso levar em conta a história recente chinesa, desde as chamadas "guerras do ópio" (1839-1842, 1856-1860), a partir das quais cidades chinesas, sobretudo Xangai, se tornaram o local para relações comerciais privilegiadas de vários impérios europeus, até o início e o fracasso da Revolução Cultural (1966-1976), que daria lugar à reforma econômica começada em 1978 e acelerada a partir de 1990.
A espoliação do país, por um lado, e a consequente repressão intelectual, por outro, explicam frase de um dos primeiros papers: "A politização acadêmica foi um dos fatores mais importantes que restringiram o crescimento ulterior dos estudos acadêmicos" (Du Shuying). Tratar-se-ia pois de tentar recuperar o tempo perdido, reunindo a clássica reflexão chinesa com a teoria literária ocidental. Uma das vozes ocidentais logo se erguia para advertir que, se a politização rígida é um desastre, ignorar o político é outro desastre. Mas a observação passou em silêncio: na verdade, não entendíamos os colegas chineses ao pensar que seu interesse principal estivesse na teoria da literatura. Por esse aspecto, ao contrário, suas comunicações eram muito pobres e mostravam uma estranha timidez ante a reflexão clássica oriental.
Só aos poucos compreendi que o móvel da conferência consistia em justificar "a transição acelerada da economia planejada para a economia de mercado" (Zhuc Liyuan). De maneira mais direta: o tema privilegiado estava em afirmar, e não discutir, como a China há de se comportar diante da globalização. Este era o termo mais frequente. Para mostrá-lo, fixo-me na comunicação mais sistemática. Em "The Ideology and Literature in a Transitional Society" (A Ideologia e a Literatura em uma Sociedade Transicional), de Xu Ming, o autor parte de consideração sobre o marxismo na era aberta pelo colapso do bloco socialista. Sua posição é em princípio cautelosa e, só depois, claramente autoritária. Considero uma de suas primeiras afirmações:
"A tarefa dos marxistas chineses é árdua porque não há realizações teóricas com que aprendamos". Por isso mesmo ele parte da análise do liberalismo: "Defrontamo-nos hoje com a entrada total ("overall driving-in') da corrente liberal de pensamento". Por um momento, o autor parece assumir uma postura crítica: "O aparecimento de tais agentes é historicamente precondicionado pelo revés do desdobramento radical do socialismo e do marxismo". Logo a seguir, porém, depois de recordar que o liberalismo tem se posto ao lado dos poderosos, e não da justiça social, acrescenta que "esses efeitos negativos são exatamente aqueles que não concordam com a intenção do liberalismo".

Mercado socialista
Daí se indagar se o liberalismo, pela acumulação da riqueza, não é capaz de aliviar a miséria e, contrariando o controle ideológico, trazer a prosperidade da ciência, da tecnologia e do ensino. Ele assim seria apto para criar instrumentos favoráveis ao "socialismo sob a economia de mercado". Daí a articulação que efetua entre a defesa do liberalismo e a globalização. Embora Xu Ming reconheça que a economia de mercado tem provocado a "crise de valores e da moralidade", referindo-se talvez aos efeitos da migração brutal do campo para as cidades, com a formação de máfias e da indústria da prostituição, na China ela seria compensada pela prosperidade. "A ascensão fenomenal da sociedade civil na China contemporânea é um fato irrefutável". O que teria implicações políticas de peso: "A economia de mercado iniciou o renascimento da sociedade civil na China".
A crise referida seria compensada pelo fortalecimento da sociedade civil, que, de sua parte, serviria de obstáculo para o retorno (?) de um Estado autoritário. Com o que o autor se crê em condições de tratar do objeto literário. E então abandona toda máscara de liberalidade: "Temos todos a sensação de que os críticos literários e os especialistas são inúteis e sem sentido". "O nível da linguagem literária e o estudo das técnicas de expressão são importantes, mas nada disso pode ocultar a urgência da necessidade espiritual." Por isso advoga uma "crítica ideológica", sinônimo para humanismo e espiritualidade. No século passado, Belinski ou Plekhanov poderiam ter dito: "Se somos incapazes de levar a cabo a tarefa de defender a moralidade social e a justiça, como podemos produzir grandes obras para o futuro?".
Pois era pasmosa a contradição que sintetiza o texto: se, no "mercado socialista", o liberalismo tem a oportunidade de corrigir suas mazelas, ao mesmo tempo, porém, a literatura -e por que só ela?!- teria de manter seu papel de bom-moço, de defensora da moralidade e da justiça. A "crítica ideológica" defende a globalização e se propõe a manter a vigilância contra os dissidentes. Como diria o politicólogo Michael Dutton: "Começa-se a compreender que o socialismo com características chinesas é na verdade uma criatura muito estranha. É uma forma de socialismo onde a classe conta" (1). Lamentavelmente, porém, só vim a conhecer depois o livro organizado por Dutton.
Detive-me na comunicação do membro da Academia de Ciências Sociais porque era a que melhor me fazia compreender meu estupor. Na grande maioria dos outros papers, a defesa da globalização era reafirmada sem maiores trabalhos. E o que se dizia sobre a reflexão literária, mais espantoso. Para Yue Daiyun, que ensina na Universidade de Pequim, por exemplo, a "globalização apressou a desintegração do colonialismo e introduziu uma era pós-colonial globalizada".
Isso mesmo porque o "pós-modernismo provocou a desintegração de centros. (...) O desenvolvimento econômico causado pela globalização tornou também possível aos povos das áreas subdesenvolvidas a promoção de suas próprias culturas. Com o desenvolvimento econômico e tecnológico, os contatos humanos tornaram-se mais frequentes do que nunca" (como exemplo, assinalava-se o incremento do turismo). É certo que essas patentes (!) virtudes da globalização, tendo sido reprimidas por muito tempo, levam algumas nações a lutar pela preservação de seus patrimônios (seria o caso chinês?). Mas isso seria um mal pelo risco de "isolacionismo cultural". Não menos surpreendente é a defesa da globalização no texto assinado por outro professor, Xu Dai. Ele defendia a tese de que, para tornar-se significativo, o mundo da globalização precisa se liberar do que Christopher Lasch chamara de a "cultura do narcisismo". Só assim a poética se redefinirá como discurso humanista!
Guardo a última referência para a comunicação da professora Dan Shen, da Universidade de Pequim. Ela afirma que um passo adiante será dado quando as diversas formas de teorização reconhecerem que o que as separa é apenas uma questão de foco; que estas provocam três formas de exclusão: a ideológica e a filosófica e a ênfase neste ou naquele aspecto. Uma vez que o especialista se entrega a uma abordagem específica, entrega-se também à sua unilateralidade.

Vidros ray-ban
Contra a parcialidade resultante, a solução seria simples: glosando Mao, "deixemos que cem flores floresçam e cem escolas de pensamento se afirmem".
Confesso meu pasmo ante o que ouvia e tentava entender. Afinal, depois da dura experiência, não posso deixar de lembrar a voz de Walter Benjamin (1892-1940) ressoando nas palavras de Michael Dutton: "As barracas e as lojas de velho estilo, como as arcadas socialistas do passado, estão sendo demolidas para dar lugar aos shopping centers das novas e "mais avançadas" formas de consumismo". A Paris de Haussman hoje ressuscita na demolição dos becos e vielas de Pequim. Em seu lugar, multiplicam-se as amplas praças Tiananmen e os vidros ray-ban dos edifícios de alto luxo.

Nota
1. "Streetlife Subalterns", em "Streetlife China", Cambridge University Press, 1988.


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".


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