São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2000


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Diversão vibrante e alto-astral


Seria deprimente anunciar que o livro mais vendido na história do mundo -posição que "O Cálice de Fogo" provavelmente só vai manter até a chegada de "Potter" cinco- é ruim; ele está longe disso: os livros de Rowling são bem-humorados, têm ótima trama e são bem escritos

Stephen King
especial para "The NYT Book Review"

Li o primeiro livro da série "Harry Potter", "Harry Potter e a Pedra Filosofal", em abril do ano passado, e o livro me impressionou apenas moderadamente. Mas em abril do ano passado eu estava bem. Dois meses mais tarde, eu iria me envolver num grave acidente na estrada, que exigiu um período longo e doloroso de recuperação. Durante o início desse período, li o segundo e o terceiro livros da série Harry Potter ("A Câmara Secreta" e "The Prisoner of Azkaban", O Prisioneiro de Azkaban) e me descobri muito mais do que apenas moderadamente impressionado. No verão tristemente quente de 99, os livros de Harry Potter (e os fantásticos romances policiais de Dennis Lehane) se tornaram uma espécie de salva-vidas para mim.
Durante os meses de julho e agosto, passei meus dias desagradáveis concentrando meu pensamento nas noites, quando eu arrastava minha perna onerada com equipamentos até a cozinha, comia frutas frescas e sorvete e lia sobre as aventuras de Harry Potter em Hogwarts, uma escola para jovens magos (lema da escola: "Nunca faça cócegas num dragão adormecido").
Por essa razão, aguardei o novo volume da mágica saga de J.K. Rowlands com quase o mesmo grau de interesse que qualquer criança enfeitiçada por Potter. Eu curtira os primeiros três livros, mas lera os dois últimos enquanto tomava analgésicos em quantidade suficiente para fazer um cavalo levitar, situação que não se repete no verão atual.

Diversão descomplicada
Estou aliviado em constatar que o Potter quatro -"Harry Potter and the Goblet of Fire" (Harry Potter e o Cálice de Fogo)- é tão bom quanto os Potters um a três. Mas é mais longo. Será que é mais denso do que os primeiros três? Provoca mais reflexão? Desculpem-me, mas não. Tais coisas são necessárias numa fantasia-aventura voltada primeiramente às crianças e publicada na metade verdejante das férias de verão? É claro que não. O que as crianças em férias de verão querem -e provavelmente merecem- é diversão simples e descomplicada. "Harry Potter e o Cálice de Fogo" garante diversão, e não em quantidades mesquinhas. Com 734 páginas de comprimento, "Cálice" garante caminhões carregados de diversão.
O mais notável desse livro é o fato de que o senso de humor de Rowling, marcado por trocadilhos e sinais discretos, se conserva até o final. Com um livro de mais de 700 páginas, seria de esperar que terminássemos por nos cansar de dragões suecos de focinhos curtos e artefatos como a Pena de Citações Rápidas (uma espécie de gravador mágico empregado pela repugnante repórter Rita Skeeter, do "Daily Prophet"), mas isso nunca chega a acontecer. Talvez isso seja porque Rowling não chega a perder muito tempo com invenções divertidas como a pena, que flutua no ar e irrompe com trechinhos de prosa bombástica em momentos inesperados. Ela proporciona ao leitor uma piscadela e uma risadinha rápidas e depois o impele para frente, contando sua história em alta velocidade. E nós aceitamos tudo isso de bom grado, divertidos e aguardando a próxima cotovelada, a próxima piscadela e a próxima sobrancelha erguida.
Trocadilhos e risadinhas à parte, a história é de fato boa. Talvez já estejamos um pouco cansados de encontrar Harry em sua casa, com seus tios horríveis (sem falar em seu ainda mais horrível primo Duda, cujo jogo favorito no PlayStation é MegaMutilação 3), mas, depois de Harry ter assistido à partida obrigatória de Quadribol e retornado a Hogwarts, a história ganha rapidez. Numa entrevista a Malcolm Jones, da "Newsweek", Rowling admitiu ter lido Tolkien um pouco tarde na vida, mas é difícil imaginar que não tenha lido sua devida cota de Agatha Christie e Dorothy L. Sayers. Embora ostentem as marcas da fantasia e embora a mistura do mundo real com o mundo dos magos e das vassouras voadoras seja um deleite para o leitor, os livros da série "Harry Potter" são, no fundo, histórias de mistério que satisfazem por conterem mistério suficiente.
Agora, retornando a Hogwarts depois de participar da Copa do Mundo de Quadribol, Harry e seus amigos ficam excitados em descobrir que o torneio Trimagos voltará a ser realizado, após um hiato de cerca de cem anos (parece que muitos dos jovens participantes passados tinham acabado mortos).
Candidatos a magos de outras duas escolas (Beauxbatons e a academia Durmstrang, de localização desconhecida) foram convidados a passar o ano em Hogwarts e competir no torneio, composto de três tarefas lindamente imaginadas. As tarefas só poderão ser realizadas a contento pelos participantes capazes de resolver as charadas relativas a elas. Tanto as crianças quanto os estudiosos da mitologia grega vão gostar desse aspecto da história criada por Rowling.
Como o chapéu seletor, um dos primeiros exemplos de inventividade da autora, o cálice de fogo é um artefato que escolhe. O que ele faz, supostamente, é expelir três pedaços de pergaminho em chamas, ostentando os nomes dos três participantes no torneio, um de cada escola. Numa cena vívida e maravilhosamente tensa, o cálice de fogo cospe quatro pedaços de pergaminho em lugar de três. Evidentemente, o quarto traz o nome de nosso herói. Embora Harry supostamente seja jovem demais para competir numa série tão perigosa de proezas, o cálice falou, e é claro que Harry não pode deixar de pisar na arena. Se você acha que os leitores jovens não vão adorar tudo isso, é porque nunca teve um deles em casa (nem foi um deles, você mesmo).

Encontro com uma garota
Os adultos tendem a se interessar mais em saber como o nome de Harry entrou no cálice, para começo de conversa. Esse é um mistério que Rowling narra com verve e despacho. E, diferentemente dos desenlaces dos quais me recordo nos mistérios de Nancy Drew e dos irmãos Hardy, de minha juventude, nos quais o culpado geralmente acaba sendo revelado como algum vagabundo asqueroso das classes baixas, a solução do mistério do cálice, assim como as respostas às charadas dos Trimagos, me pareceu bastante justa.
Ao longo do caminho, Rowling nos oferece o primeiro encontro de Harry com uma garota (infelizmente, porém, não é a sedutora beldade da quinta série, Cho Chang), pelo menos uma subtrama capaz de provocar nossa reflexão (envolvendo elfos caseiros que curtem seu status de escravos da cozinha) e uma dose muito grande de humor adolescente. Também há uma quantidade ligeiramente cansativa de discussões e briguinhas adolescentes. Os adultos podem passar rapidamente por cima desses trechos sem medo de perder nada de importante -são coisas de adolescentes.
Será que alguém ainda pode se indagar o porquê do enorme sucesso de vendas desses livros? A série "Harry Potter" é uma versão sobrenatural e atualizada de "Tom Brown's Schooldays" (A Época de Escola de Tom Brown), de Thomas Hughes (1822-1896). E Harry é o garoto que a maioria das crianças sente ser, perdido num mundo de adultos aos quais falta imaginação e que muitas vezes são desagradáveis, que não as compreendem nem estão interessados em compreendê-las.
Na verdade, Harry é um "cinderelo" que aguarda alguém que o convide para o baile. No primeiro "Potter", seu convite chega primeiramente via coruja (no mundo mágico de J.K. Rowling a correspondência é entregue por corujas) e depois pelo chapéu seletor; no volume atual, é feito pelo faiscante cálice de fogo. Como é gostoso ser convidado para o baile! Mesmo para um adulto sedentário e relativamente velho, como eu, ainda é gostoso ser convidado para o baile.
Seria deprimente anunciar que o livro mais vendido na história do mundo -posição que este livro provavelmente só vai manter até a chegada de "Potter" cinco- é ruim. "O Cálice de Fogo" está longe disso. Os livros de Rowling são bem-humorados, têm ótima trama e são bem escritos. Estão repletos do tipo de detalhe brincalhão do qual apenas os fantasistas britânicos parecem ser capazes: a árvore "Whomping Willow", um salgueiro que dá golpes de galhos em seu carro (e em você) se você chegar perto demais dele, lanches com nomes como bolinhos de caldeirão e o satisfatoriamente maligno lorde Voldemort (tão maligno, de fato, que a maioria dos personagens de Rowling se nega a chamá-lo pelo nome e se refere a ele apenas como "Você-Sabe-Quem"). O casal Dursley, os desagradáveis tio e tia de Harry, explicam as longas ausências do sobrinho a seus amigos dizendo a eles que Harry é interno no Centro de Segurança St. Brutus para Garotos Incuravelmente Criminosos. E o livro começa com o assassinato (fora das páginas) de uma bruxa chamada Bertha Jorkins.

Sombras apagadas
Será que há algo além de diversão rolando no livro? Não muito. Em boa parte da ficção fantástica britânica, as invenções divertidas são contrabalançadas por temas cada vez mais sombrios -na trilogia do "O Senhor dos Anéis", de Tolkien, por exemplo, na qual o fascismo de Mordor começa como distante cheiro ruim trazido pelo vento e se intensifica até constituir um clima onipresente de terror, ou nos livros de C.S. Lewis (1898-1963), passados na terra imaginária de Narnia, nos quais as preocupações religiosas do autor investem o que começa como aventuras inofensivas de faz-de-conta com um significado que, no final, se torna quase insuportável (e, para este leitor, um tanto quanto enfadonho). Levado ao extremo, o id da fantasia britânica gera um Richard Adams, no qual os infelizes cães falantes Snitter e Rowf sofrem provações indizíveis e o deus-urso Shardik acaba por representar todas as promessas já feitas e não cumpridas pela religião, em que cada campo ensolarado de coelhinhos brincalhões esconde um arame mortal.
Na obra de Rowling é possível perceber sombras como essas, mas são sombras finas, facilmente apagadas. As aventuras de Harry permanecem, de modo geral, alegres e de alto-astral -mais ao estilo de Lewis Carroll do que "à la" George Orwell. A fantasia britânica da qual mais se aproximam talvez seja, na realidade, "Peter Pan", de J.M. Barrie. Como qualquer escola, onde a clientela é eternamente jovem e mesmo os professores começam a assumir as características psicologicamente imaturas de seus alunos, Hogwarts é uma espécie de Terra do Nunca. Apesar disso, Harry e seus amigos mostram alguns sinais tranquilizadores de que vão acabar por virar adultos. No volume atual há algumas instâncias discretas de agarração entre meninos e meninas e pelo menos algumas tristezas e decepções a enfrentar.
O trabalho do escritor de fantasia é conduzir o leitor do mundano à magia. É uma proeza da qual apenas uma imaginação de alta categoria é capaz, e Rowling possui o equipamento necessário. Ela já disse repetidas vezes que os livros sobre Potter não visam conscientemente a nenhuma platéia ou faixa etária específica. O leitor pode questionar essa afirmação depois de ler o primeiro livro da série, mas quando ele chega a "Harry Potter e o Cálice de Fogo" já está cada vez mais claro que a autora falou sério. E não pode restar dúvida de que sua recusa declarada em abrandar a linguagem dos livros conferiu às histórias um poder de atrair adultos que a maioria dos livros infanto-juvenis não possui.
Nem todas as notícias são boas. Dentro em breve Harry Potter vai estar num cinema perto de sua casa. O projeto inicial está sendo dirigido por Chris Columbus, cineasta não dotado de grande criatividade demonstrável -podemos questionar se o diretor de "Os Goonies", um dos filmes para crianças mais espalhafatosos, burros e irritantes já produzidos, esteja em condições de levar às telas o humor amalucado e a imaginação vibrante de Rowling (mas espero, em nome dos milhões de crianças que adoram Harry, Hermione e Ron Weasley, que Chris Columbus desminta minha previsão). A fantasia, mesmo quando tão descomplicada e robusta quanto esta, é difícil de transpor ao cinema, em que as maravilhas tendem a se encolher e virar banais. Talvez o lugar de Harry Potter seja na imaginação de seus leitores. E, se esses milhões de leitores despertarem para as maravilhas e recompensas da fantasia aos 11 ou 12 anos de idade, então, quando chegarem aos 16, mais ou menos, há um sujeito chamado King.


Stephen King é escritor norte-americano, autor de "O Iluminado" (Ed. Objetiva), entre outros. No momento, está escrevendo "The Plant", na Internet, no endereço www.stephenking.com
Tradução de Clara Allain.



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