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O gigante decaído
Polêmica em torno
da confissão de Günter Grass,
de que fez parte das SS
nazistas, revolta e comove
ao mesmo tempo
GEORG KLEIN
Nada mais será como antes, nunca
mais. Na semana
retrasada, ao ver
Günter Grass na
televisão, retorcendo suas
mãos enfeitadas de anéis, ficou
claro: mesmo ele não poderia
fazer a roda do tempo voltar
atrás. De agora em diante, teremos que contar a nossos filhos
quais foram a importância e o
significado da figura de Günter
Grass para nós e para toda a
República Federal da Alemanha, pois eles não poderão
mais ser testemunhas delas.
É claro que o velho escritor
vai continuar a fazer aparições
públicas e, se assim quiser, a
contar com o grande público
com o qual está acostumado.
Mas quem era Günter Grass?
Três coisas ao mesmo tempo:
uma personalidade pública importante, um escritor que sabia
sentir o pulso de sua época e
um homem de masculinidade
impressionante.
Seria preciso uma violência
cirúrgica para separar esses
três aspectos de sua personalidade, a tal ponto essa liga parecia fluir de uma única fonte,
quando Grass estava no zênite
de sua carreira: o homem político voluntarioso, o romancista
e o homem repleto de energia
eram um só, alguém a quem se
admirava com entusiasmo ou a
quem se criticava impiedosamente. Uma trindade como essa é algo de singular na cultura
literária da Alemanha.
Como é possível que tenhamos perdido esse monumento
em questão de alguns dias?
Num primeiro momento houve uma troca, um arranjo com
as mídias de nosso país, como
tão bem sabe fazer Günter
Grass, a quem não falta experiência nesse assunto.
Ele concederia uma entrevista ao "Frankfurter Allgemeine Zeitung" para falar de seu livro "Descascando as Cebolas",
prestes a ser lançado.
Com certeza, Grass já tinha a
intenção de trazer o assunto à
tona -o assunto de seu passado nas Waffen-SS- e de limitar-se com firmeza a falar de
sua nova obra. Mas seus entrevistadores imediatamente perceberam a chance que lhes estava sendo oferecida de criar
um escândalo com isso.
A entrevista, na qual o período relativo a sua participação
na SS era abordado apenas com
muita cautela, saiu no jornal,
mas, na primeira página, e um
dos entrevistadores comentou
sem ambigüidade o longo silêncio de Grass.
A discussão estava aberta.
Cada dia que passa vem sendo
acompanhado de sua parcela
devida de posições e de análises. Já li muitas, e o que chamou minha atenção desde o
início foi o nível da discussão, o
"fair play" e a inteligência da
maioria das contribuições.
Inabilidade
São raros os artigos desastrados ou mal-intencionados. Os
menos hábeis, os que metem os
pés totalmente pelas mãos, são
sobretudo pessoas que acreditam que devem sair em defesa
de Grass. E isso porque a vil
campanha de destruição que
elas supostamente querem
combater existe apenas em sua
imaginação assustada.
Nenhuma voz séria na Alemanha se ergueu para criticar
Günter Grass por ter se alistado
nas Waffen-SS nos últimos meses da guerra, quando era adolescente. Em contrapartida,
critica-se o momento que escolheu para revelar o acontecido,
e, às vezes, também a maneira e
os termos empregados para levar a notícia a público.
Entretanto mesmo as críticas mais virulentas encerram
frases que expressam compreensão, compaixão, empatia.
Assim, nos vemos diante de
uma imagem paradoxal: o monumento Günter Grass caiu
por terra sem que ninguém lhe
tenha aplicado uma martelada.
O próprio patriarca é o único
responsável. Mas seria falso dizer que Grass detonou sua própria estátua num ato de violência heróica. Mais do que isso, o
que aconteceu foi um ato de
inabilidade bizarra. Um homem envelhecido, cujo olhar e
cuja mão perderam sua autoconfiança com o tempo, fez seu
próprio retrato cair ao chão.
Günter Grass certamente
soube por décadas que sua participação passada nas SS não
poderia ser conciliada com
aquilo que ele se tornou para a
opinião pública alemã a partir
do início dos anos 1960.
De fato, nesse período, a sigla
SS fazia parte dos símbolos mágicos do mal. Quem tivesse sucumbido a seu encanto seria estigmatizado como assassino,
sem que lhe fosse perguntado
como ele chegara a vestir o uniforme negro nem o que fizera
dentro dele.
Grass jamais poderia ter sido
esse juiz rigoroso que não media suas palavras para decretar
o que era justo ou falso se o contato estreito que teve com a essência do mal e seu símbolo tivesse sido conhecido. Mas não
é apenas seu papel de homem
público e de árbitro que passaria a ser visto sob outra luz:
também a recepção dada a sua
obra teria sido diferente.
Seus romances relatavam de
modo exemplar como as coisas
foram e conferia ao passado um
sentido que permitia que vivêssemos o presente. De hoje em
diante, está claro que esse passado sempre conteve um buraco negro, jamais escrito, incontrolável.
Günter Grass tentou o impossível, tarde demais. Sua primeira obra puramente autobiográfica deveria mostrar o
sentido desse pequeno segredo
sombrio e fazer o vínculo com
aquilo que ele foi para nós por
mais de 40 anos.
Acontece que o livro fala
muito pouco sobre isso. Seu autor, que no passado se mostrava
tão hábil em fazer a publicidade
e a exegese de suas obras, de repente deixou de encontrar palavras claras nas entrevistas ou
nos debates pela TV -e menos
ainda o tom decidido ao qual
estávamos acostumados.
Todos, admiradores de Grass
ou não, vêem de repente, estarrecidos, que o monumento tem
os ombros curvos e não tão largos assim. Há alguma coisa de
incômodo nisso. De comovente. Talvez nosso novo Grass -o
último- deva comemorar os
aniversários que lhe restam
sem fazer mais barulho.
GEORG KLEIN é escritor, ganhador do prêmio Ingeborg Bachmann e autor de "Libidissi".
Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.
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