São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2006

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O gigante decaído

Polêmica em torno da confissão de Günter Grass, de que fez parte das SS nazistas, revolta e comove ao mesmo tempo

GEORG KLEIN

Nada mais será como antes, nunca mais. Na semana retrasada, ao ver Günter Grass na televisão, retorcendo suas mãos enfeitadas de anéis, ficou claro: mesmo ele não poderia fazer a roda do tempo voltar atrás. De agora em diante, teremos que contar a nossos filhos quais foram a importância e o significado da figura de Günter Grass para nós e para toda a República Federal da Alemanha, pois eles não poderão mais ser testemunhas delas. É claro que o velho escritor vai continuar a fazer aparições públicas e, se assim quiser, a contar com o grande público com o qual está acostumado. Mas quem era Günter Grass? Três coisas ao mesmo tempo: uma personalidade pública importante, um escritor que sabia sentir o pulso de sua época e um homem de masculinidade impressionante. Seria preciso uma violência cirúrgica para separar esses três aspectos de sua personalidade, a tal ponto essa liga parecia fluir de uma única fonte, quando Grass estava no zênite de sua carreira: o homem político voluntarioso, o romancista e o homem repleto de energia eram um só, alguém a quem se admirava com entusiasmo ou a quem se criticava impiedosamente. Uma trindade como essa é algo de singular na cultura literária da Alemanha. Como é possível que tenhamos perdido esse monumento em questão de alguns dias? Num primeiro momento houve uma troca, um arranjo com as mídias de nosso país, como tão bem sabe fazer Günter Grass, a quem não falta experiência nesse assunto. Ele concederia uma entrevista ao "Frankfurter Allgemeine Zeitung" para falar de seu livro "Descascando as Cebolas", prestes a ser lançado. Com certeza, Grass já tinha a intenção de trazer o assunto à tona -o assunto de seu passado nas Waffen-SS- e de limitar-se com firmeza a falar de sua nova obra. Mas seus entrevistadores imediatamente perceberam a chance que lhes estava sendo oferecida de criar um escândalo com isso. A entrevista, na qual o período relativo a sua participação na SS era abordado apenas com muita cautela, saiu no jornal, mas, na primeira página, e um dos entrevistadores comentou sem ambigüidade o longo silêncio de Grass. A discussão estava aberta. Cada dia que passa vem sendo acompanhado de sua parcela devida de posições e de análises. Já li muitas, e o que chamou minha atenção desde o início foi o nível da discussão, o "fair play" e a inteligência da maioria das contribuições.

Inabilidade
São raros os artigos desastrados ou mal-intencionados. Os menos hábeis, os que metem os pés totalmente pelas mãos, são sobretudo pessoas que acreditam que devem sair em defesa de Grass. E isso porque a vil campanha de destruição que elas supostamente querem combater existe apenas em sua imaginação assustada. Nenhuma voz séria na Alemanha se ergueu para criticar Günter Grass por ter se alistado nas Waffen-SS nos últimos meses da guerra, quando era adolescente. Em contrapartida, critica-se o momento que escolheu para revelar o acontecido, e, às vezes, também a maneira e os termos empregados para levar a notícia a público. Entretanto mesmo as críticas mais virulentas encerram frases que expressam compreensão, compaixão, empatia. Assim, nos vemos diante de uma imagem paradoxal: o monumento Günter Grass caiu por terra sem que ninguém lhe tenha aplicado uma martelada. O próprio patriarca é o único responsável. Mas seria falso dizer que Grass detonou sua própria estátua num ato de violência heróica. Mais do que isso, o que aconteceu foi um ato de inabilidade bizarra. Um homem envelhecido, cujo olhar e cuja mão perderam sua autoconfiança com o tempo, fez seu próprio retrato cair ao chão. Günter Grass certamente soube por décadas que sua participação passada nas SS não poderia ser conciliada com aquilo que ele se tornou para a opinião pública alemã a partir do início dos anos 1960. De fato, nesse período, a sigla SS fazia parte dos símbolos mágicos do mal. Quem tivesse sucumbido a seu encanto seria estigmatizado como assassino, sem que lhe fosse perguntado como ele chegara a vestir o uniforme negro nem o que fizera dentro dele. Grass jamais poderia ter sido esse juiz rigoroso que não media suas palavras para decretar o que era justo ou falso se o contato estreito que teve com a essência do mal e seu símbolo tivesse sido conhecido. Mas não é apenas seu papel de homem público e de árbitro que passaria a ser visto sob outra luz: também a recepção dada a sua obra teria sido diferente. Seus romances relatavam de modo exemplar como as coisas foram e conferia ao passado um sentido que permitia que vivêssemos o presente. De hoje em diante, está claro que esse passado sempre conteve um buraco negro, jamais escrito, incontrolável. Günter Grass tentou o impossível, tarde demais. Sua primeira obra puramente autobiográfica deveria mostrar o sentido desse pequeno segredo sombrio e fazer o vínculo com aquilo que ele foi para nós por mais de 40 anos. Acontece que o livro fala muito pouco sobre isso. Seu autor, que no passado se mostrava tão hábil em fazer a publicidade e a exegese de suas obras, de repente deixou de encontrar palavras claras nas entrevistas ou nos debates pela TV -e menos ainda o tom decidido ao qual estávamos acostumados. Todos, admiradores de Grass ou não, vêem de repente, estarrecidos, que o monumento tem os ombros curvos e não tão largos assim. Há alguma coisa de incômodo nisso. De comovente. Talvez nosso novo Grass -o último- deva comemorar os aniversários que lhe restam sem fazer mais barulho.


GEORG KLEIN é escritor, ganhador do prêmio Ingeborg Bachmann e autor de "Libidissi".
Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.


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