São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2006

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Ensaio de orquestra

Wilson Black e Matthew Burns - 18.jan.2006/ Associated Press
"O Maestro e a Diva", violino que sofreu intervenção artística por Kim Robertson


Um dos mais celebrados regentes em atividade, o italiano Riccardo Muti explica os mistérios de seu ofício

LEONETTA BENTIVOGLIO

Há os que dançam no pódio, os que se contorcem, os que exibem movimentos enérgicos e cabeleiras ao vento. E há o misticismo da imobilidade, o ícone do maestro parado e tenso: apenas gestos mínimos nos fazem perceber um impulso e um chamado. Mas, entre os dois opostos, há muitas possibilidades intermediárias, uma longa série de gradações de intensidade motora. Como se sabe, o regente se ergue como um emblema de domínio. Mas há mais coisa em jogo, algo bem mais profundo que uma esquemática relação de poder. Um fluxo de energia circular que percorre os instrumentos e o pódio. E o caráter imprescindível da função: qualquer orquestra, até a melhor do mundo, não sabe tocar sozinha, como Fellini nos mostrou em um de seus filmes mais lúcidos e pungentes ["Ensaio de Orquestra"]. Mas as dificuldades desse ofício são imensas. Não por acaso, são pouquíssimos os que conseguem alcançar os vértices de uma carreira tão almejada e preciosa. Hoje os melhores maestros, os da série A, se contam nos dedos de uma mão. Entre eles desponta Riccardo Muti [1941]. Todos conhecem o seu perfil sério, a atitude determinada, os movimentos nítidos, o controle férreo dos membros da orquestra. "O ponto de partida", nos diz Muti, "é a funcionalidade do gesto, que sempre deve ser um meio, e não um fim, como infelizmente tem acontecido hoje. Deve-se transmitir à orquestra uma mensagem que, na plasticidade e na expressividade gestual, comunique a idéia interpretativa, de som, fraseado e timbre, já explicada e pretendida pelo regente durante os ensaios. Os braços se tornam extensões da mente".

 

PERGUNTA - Diz-se que o braço direito pontua o ritmo, e o esquerdo, a expressão. Como aplica em sua prática pessoal esse esquema?
RICCARDO MUTI -
Em linhas gerais, essa é uma divisão aceitável. Mas não se pode assumi-la como norma absoluta. Há maestros dotados de extrema facilidade no uso de ambos os braços, como os ambidestros, para os quais a escansão rítmica pode ser confiada ora ao direito, ora ao esquerdo. Há alguns que, durante a execução, passam a batuta de uma mão para outra. Às vezes, para obter um acorde violento ou um som muito vigoroso, há quem junte as mãos apertando a batuta nos punhos e movendo-a como a uma espada.

PERGUNTA - Então não há nada prefixado?
MUTI -
Nada preestabelecido. Pode-se partir de certas regras e fazer o contrário. Pode-se reger apenas com a intensidade de um olhar. A direção de orquestra é e não é uma ciência; um trabalho que se baseia em indicações precisas e, simultaneamente, muito imprecisas. Todas as orquestras do mundo, de Copenhagen a Sydney, de Vancouver a Buenos Aires, de Nova York a Roma, sabem que o ritmo quaternário corresponde ao primeiro gesto para baixo, o segundo à esquerda, o terceiro à direita e o quarto para o alto, desenhando uma cruz imaginária, para retomar no compasso sucessivo.

PERGUNTA - Então há um ponto de partida comum: manter o ritmo.
MUTI -
Mas, enquanto um violinista ou um pianista se fecham numa sala e repetem passagens por dias, semanas, anos, até a superação das dificuldades técnicas, o regente sempre precisa ensaiar com cem pessoas. É essa a contradição implícita no meu trabalho: em teoria, deve-se dizer à orquestra o que ela deve fazer, mas, na prática, é com a orquestra que aprendemos como se faz.

PERGUNTA - Tomemos o modo como as indicações oferecidas pelo texto são observadas. Até que ponto a fidelidade ao sinal escrito pelo compositor é um critério generalizante e, portanto, objetivo?
MUTI -
O que significa fidelidade? Antes de tudo, é a observação do sinal escrito. Mas, por sua vez, as indicações do autor são e não são exatas. Sobre um pentagrama de cinco linhas estão assinaladas notas cuja duração é indicada. Às vezes há indicações feitas pelo autor com o metrônomo, ou seja, o aparelho usado para escandir a pulsação rítmica, a velocidade. Mas, como dizia Nino Rota [1911-79], o compositor que ativa o metrônomo de noite, na manhã seguinte o encontra quase sempre descompassado. Houve debates violentos a propósito dos metrônomos de Beethoven. Há quem tente respeitá-los ao pé da letra; há quem diga que, daquele modo, as sinfonias são inexeqüíveis; há quem defenda que Beethoven tinha um metrônomo defeituoso. Um ato de "Parsifal" [de Wagner] nas mãos de um regente pode durar 20 minutos a mais do que a execução da mesma obra por um outro intérprete.

PERGUNTA - A cada vez, o sr. faz uma leitura analítica da partitura, que antecede o ensaio e que visa a distinguir o essencial do supérfluo. De que maneira se percebem as estruturas fundamentais do discurso musical, aquelas que devem emergir na execução?
MUTI -
O trabalho do regente pressupõe um estudo aprofundado da composição. É importante, por exemplo, o conhecimento do peso sonoro dos instrumentos, e logo se percebe se uma partitura é bem escrita ou de modo impróprio. Houve grandes compositores, como Schumann e Brahms, que tinham alguns limites na orquestração, ao passo que as partituras de Tchaikovsky são perfeitas, assim como as de Haydn, Mozart e Schubert. Cabe ao regente equilibrar o que parece desequilibrado na arquitetura da passagem.

PERGUNTA - É verdade que a escola de regência alemã, diferentemente da italiana, sugere um gesto que retarda o ataque da frase musical?
MUTI -
São lugares-comuns a serem desfeitos. Na realidade, cada maestro tem o seu gesto. Pensemos em Furtwangler [maestro alemão, 1886-1954]. Quando o vemos reger em filmes, se nota um gesto que se estende em profundidade, freqüentemente sem indicar o momento em que a orquestra deve começar, o que faz com que, às vezes, não se entre perfeitamente em conjunto. Mas essa profundidade e o conseqüente descompasso milesimal entre um instrumento e outro provocam uma espécie de deslizamento do som que resulta naquela sonoridade larga e profunda que se tornaria o protótipo da sonoridade germânica. Quando trabalho com a Filarmônica de Viena, se quero obter um som muito profundo, uso um gesto que não é um golpe seco, mas algo como se afundasse no terreno. E os músicos respondem com um som denso e escuro.

PERGUNTA - Diz-se que a escola italiana é mais nítida e brilhante que a alemã. Toscanini [1867-1957], da escola de que o sr. descende, era um modelo de limpidez.
MUTI -
Ele tinha um vigor rítmico controlado por um gesto imperioso e inexorável: mirava o essencial. Outro pilar da regência orquestral foi o austríaco Karajan [1908-89], que levou a um fraseado mais acurado e a um som mais polido. Mas sua gestualidade também era controlada e avessa a efeitos. Karajan foi a síntese entre a exigência rítmica de Toscanini e a profundidade de som de Furtwangler. Outros maestros, como Bruno Walter, Erich Kleiber e Klemperer, tinham gestos bem diferentes. Por isso me recuso a pensar em uma rígida compartição em escolas nacionais de regência. A gestualidade de Stokowski [1882-1977], por exemplo, se baseava na expressividade das mãos, longuíssimas, os dedos como dez tentáculos, e graças a isso ele criava um som perfumado e cheio de cores, que ainda hoje caracteriza a Orquestra da Filadélfia, que dirigiu por muitos anos. Stokowski não pode ser catalogado nem na escola italiana nem na alemã. Seguindo uma definição do grande maestro alemão Carlos Kleiber [1930-2004], eu diria que há três tipologias de regentes, e não escolas.

PERGUNTA - Quais?
MUTI -
O piloto, o mecânico e o piloto-mecânico. O piloto conduz magnificamente um carro, ou seja, uma orquestra, preparada por um outro. O mecânico conhece a máquina a fundo, do motor até as mínimas engrenagens, e explica tudo à orquestra, mas não dirige bem, e o resultado fica no plano teórico, sem uma realização concreta. O piloto-mecânico sabe ajustar o carro e também guiá-lo de modo impecável. Hoje os pilotos-mecânicos quase desapareceram, e os que triunfam são diretores-pilotos, com graves conseqüências para as orquestras. Um piloto-mecânico extraordinário era Karajan. De qualquer modo, o ideal do maestro (e vimos isso justamente com Karajan, sobretudo nos últimos anos) é reduzir sempre a gestualidade.

PERGUNTA - O corpo deve movimentar-se pouco? Não é o que parece quando vemos alguns maestros contemporâneos...
MUTI -
Há regentes que exibem um "passeio" no pódio. De resto, ainda é difusa a idéia do maestro-domador, que estala a chibata no ar, como se a orquestra fosse composta por uma massa de escravos. Mas, quando vemos as filmagens de Toscanini, percebemos que ele estava sempre parado, bem plantado sobre as pernas. Ormandy, mítico regente da Orquestra de Filadélfia depois de Stokowski, era um adorador de Toscanini, que ele sempre trazia em efígie no fraque; e, assim como Toscanini, ele não dava um passo.

PERGUNTA - No entanto um grande regente como Leonard Bernstein tinha um estilo tão movimentado que às vezes parecia dançar.
MUTI -
Era um caso singular, uma natureza extrovertida. Mas também ele, quando imergia profundamente na música, se tornava essencial. Em certos momentos, o gesto se transforma quase num estorvo para o regente, como uma membrana colocada entre ele e os músicos. Temos vontade de conduzi-los para a própria idéia por meio de uma troca não-visível, elétrica, incorpórea. Karajan dizia que o máximo para um regente seria preparar uma orquestra a ponto de, durante o concerto, parecer que era a orquestra que conduzia o maestro, e não o contrário. A simbiose alcançada deveria ser de tal ordem a tornar o gesto necessário apenas em momentos cruciais: uma mudança de tempo, uma ênfase a ser recordada.

PERGUNTA - O sr. é feliz no pódio. De vez em quando, uma intensa felicidade ilumina o rosto do maestro.
MUTI -
Às vezes se tem a impressão de agarrar alguma coisa. Mas eu nunca fico satisfeito. Porque é impossível realizar 100% daquilo que se deseja: há muitas variáveis. O êxito depende de você, da orquestra, do público, do ambiente.
Mas, durante uma execução, pode haver instantes em que se sente realmente vibrar em uníssono, numa fusão de quem toca com quem dirige e com a própria sala de concerto. Que, assim como todo momento de felicidade absoluta, dura pouco e se dissipa num sopro.


A íntegra deste texto saiu no "La Repubblica".
Tradução de Maurício Santana Dias.


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