São Paulo, domingo, 27 de setembro de 2009

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Ponto de fuga

Quanto vale?


O mercado deixaria de existir, e com ele as artes, se tanta gente não se dispusesse a pagar tanto; para o mal ou para o bem, essas pessoas indicam o interesse crucial pela arte


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Ao ser interrogado sobre o futuro da arte, um crítico importante respondeu: "Não sei. Se soubesse, estaria comprando". Entre a provocação e o cinismo, a tirada assinala o quanto as artes estão ligadas ao mercado.
Artes, aqui, têm o sentido de artes plásticas, cujos produtos são investidos por um alto reconhecimento simbólico. Ele vem reforçado por julgamentos, comentários, debates, que provocam desejos de propriedade e determinam valores financeiros tão flutuantes quanto a intensidade dessas cobiças.
Nos fatos, nenhum artista, de nenhum tipo, seja ele poeta ou cineasta, inventor de instalações ou navegador no ciberespaço, consegue sobreviver de suas criações sem vendê-las.
A mistura, na qual as artes (com suas características de invenção iluminadora, carregada por intuições que acendem centelhas insuspeitadas no comum dos mortais) se fundem com os interesses vis do dinheiro, exala quase sempre um odor meio nauseante.
Procura-se ignorar a junção, busca-se separar as duas coisas para evitar o sentimento de repugnância. No entanto, a existência das artes em nosso tempo depende desses processos de compra e venda, no qual se infiltram os mais diversos tipos de oportunismos publicitários que transformam a obra em produto.
É possível uma visada otimista. O mercado pode ser tomado como sintoma: ele deixaria de existir, e com ele as artes, se tanta gente não se dispusesse a pagar tanto.
Tais pessoas, para o mal ou para o bem, indicam o interesse (na variada gama de sentidos que essa palavra possui) crucial consagrado à arte.
Há especulações e vaidades, que esvaziam a obra de seu sentido mais profundo. Mas os falsos semblantes dependem, mesmo se indiretamente, de algum cerne mais verdadeiro. Nele permanece, ainda que bruxuleante, uma chama, por pequena que seja.

Genuflexório
A arte não produz objetos, produz sujeitos. Sujeitos pensantes, sem palavras, contudo. Obras são significações silenciosas.
A arte, no Ocidente de hoje, fora casos raros, desligou-se de quaisquer funções religiosas. Sacralizou-se em si mesma, graças a seus poderes emotivos. Nossas comunhões, nossos transes, nossas elevações espirituais ocorrem nos cinemas, nas galerias, nos museus, nas páginas de um livro e, por vezes, frente à tela de um computador.

Viseira
É melhor evitar a distinção infeliz entre cultura elevada e "cultura de massa". Ela tapa os olhos com vendas que se querem teóricas e são apenas preconceituosas. Impede a percepção de intrincadas complexidades em obras condenadas por antecedência.
Alguém pode, por força, tentar fazer arte, sem conseguir: isso ocorre tanto. Outro, pensando apenas produzir um produto "de consumo", é levado a desvendar profundidades espantosas.
Ninguém pode dizer qual o bom adubo para a arte. Muitas vezes, os critérios convencionais, ou da moda, cobrem os terrenos, impedindo que floresçam invenções artísticas. Outras, as convenções, as modas, segundo configurações imprevisíveis, terminam por favorecer intuições criadoras. Artes são feitas de contaminações.

Torcida
Nossos receios acenam para um futuro apocalíptico, no qual a estabilidade se perde. Estabilidade mais sonhada que real.
Ganha-se, em troca, uma rede em que as comunicações são imediatas, em que as facilidades de deslocamento para todo o planeta são prodigiosas. Isso tudo deveria provocar fecundações extraordinárias nos processos de criação. Tomara.


jorgecoli@uol.com.br

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