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Aventuras modernas
Coletânea
de ensaios sobre
o romance, organizada por
Franco Moretti,
é lançada
no Brasil
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
A obra de maior ambição do italiano
Franco Moretti,
professor de literatura na Universidade Stanford, nos EUA, ele próprio um dos mais ambiciosos e
ousados críticos literários em
atividade, começa a ser editada
no Brasil.
O primeiro dos cinco volumes de "O Romance" ("A Cultura do Romance", ed. Cosac
Naify, trad. Denise Bottmann,
1.120 páginas, R$ 130) chega às
livrarias. Moretti é o organizador dessa coletânea de ensaios
de especialistas de vários países -nomes como Fredric Jameson, Umberto Eco, Mario
Vargas Llosa, Beatriz Sarlo e
Roberto Schwarz, entre outros- que se debruçam sobre a
história, em todas as partes do
globo, do gênero literário que
dá nome à empreitada.
Na entrevista a seguir, ele fala sobre a versão ocidental do
romance, seu momento de ascensão e definição formal no
século 18 e a tarefa do gênero
de apresentar "soluções imaginárias para as contradições
reais" e irreconciliáveis da modernidade.
FOLHA - Em um artigo recente, o sr.
diz que algumas características do
gênero romance, no Ocidente, têm a
ver com o padrão de consumo específico que passou a marcar essas sociedades a partir do século 18. Poderia explicar?
FRANCO MORETTI - No século 18
houve certamente um aumento significativo do consumo de
"luxos cotidianos", como tecidos, relógios, móveis, café etc.
Também houve um aumento
no consumo de livros, e de romances. Geralmente os historiadores literários buscam uma
explicação para esse aumento
de vendas de livros na própria
estrutura dos romances -que
seriam mais bem escritos, mais
realistas, mais interessantes
para os leitores, e por aí vai.
Procurei uma explicação alternativa para o fato de, de repente, os romances venderem
mais. Defendi que a razão deve
ser semelhante àquela que levou, no mesmo período, a uma
produção e a um consumo
maior de relógios, por exemplo.
Um desenvolvimento geral
de bem-estar material e de riqueza, provocando um modo
diferente de se relacionar com
os romances, que passam a ser
objeto de um tipo de leitura
mais distraída.
FOLHA - O sr. compara o crescimento no número de pessoas capazes de ler, que teria dobrado, e o
crescimento na venda ou no aluguel
de romances, que teria aumentado
de forma muito maior...
MORETTI - Sim, isso indica que
as pessoas estavam lendo um
número maior de obras, e que
essa leitura era feita de uma outra maneira; elas as liam de forma mais desatenta.
FOLHA - E isso implica uma nova
forma estética para o romance?
MORETTI - Sim. Que relação
exata há entre uma coisa e outra, tenho dúvidas se saberia dizer. De todo modo, os romances passaram a ter que ser escritos de forma a capturar esse
novo tipo de atenção. Por outro
lado, isso não determina um tipo específico de estilo ou de
trama. O que se percebe é que
os romances não são tomados
como uma arte séria, como passaram a ser bem mais tarde, já
no século 20.
FOLHA - O sr. faz um contraste com
a China na mesma época.
MORETTI - Sim, na China os romances tinham uma estrutura
narrativa e estética muito mais
complexa, e isso impossibilitava o tipo de leitura "desatenta"
que se tornou tão importante
no Ocidente.
FOLHA - O sr. chama a atenção para o fato de muitos romances serem,
no fundo, uma história de aventura.
Alguém vai para algum lugar novo,
inexplorado, tentar algo que não
havia sido feito antes etc. E diz que
isso termina sendo, de certa forma,
uma característica "arcaica" do romance, já que o protótipo dessas
aventuras seria o cavaleiro medieval. Qual é a razão, a seu ver, da força desse arcaísmo?
MORETTI - A maioria dos gêneros mais populares dos últimos
200 anos é uma variação da história de aventura. Isso vale para
a ficção científica, para as histórias de detetive etc. Isso parece
ser um fato. Mas como se deu
isso? Havia, primeiro, um enorme reservatório de histórias
desse tipo, que foram escritas
ao longo de séculos e reutilizadas nos romances.
Mas a verdadeira questão é:
por que essas antigas histórias
permaneceram tão vivas, tão
importantes na modernidade?
Provavelmente a resposta é parecida com aquela que podemos dar a outras questões próprias à modernidade, como, por
exemplo: por que o poder patriarcal se manteve tão forte
sob o capitalismo, na sociedade
burguesa?
O capitalismo -e a modernidade- sempre fez uso, adaptou
ou cooptou formas preexistentes de poder simbólico ou real.
Isso vale com a monarquia,
com o patriarcalismo, com a escravidão. Penso que algo semelhante ocorreu no imaginário
ocidental com as histórias de
aventura e o romance. Antigas
alianças desaparecem muito
lentamente, se de fato chegam
a desaparecer.
FOLHA - O sr. diz que o próprio fato
de a trama aventuresca ser arcaica
serve a um propósito...
MORETTI - Ela recebe uma função a cumprir. Especialmente
na representação da guerra,
creio, que é um aspecto fundamental do imaginário de aventura e do capitalismo. O que
acontece quando a sociedade
capitalista moderna tem que ir
à guerra? Ela tem que ter uma
cultura da guerra, e o capitalismo moderno, enquanto tal, não
dispõe dessa cultura específica.
Ele a herdou de outras formações sociais. A aventura é uma
realização simbólica, idealizada da guerra.
Então, a razão pela qual temos aventura no romance moderno é a mesma por que temos
guerras no capitalismo. Sempre se disse que o comércio
substituiria a guerra, e que, em
vez de nos matarmos uns aos
outros, trocaríamos produtos.
Isso, claro, nunca aconteceu.
FOLHA - Por falar em guerra, em
um outro livro, o sr. diz que o romance cumpre a função de nos consolar
com compromissos, ajustes possíveis, em meio a uma época de conflitos incessantes e inevitáveis. Como
a ideia de aventura se reconcilia com
essa, de "consolo"?
MORETTI - Ainda penso na literatura como uma forma de
"compromisso", de ajuste simbólico possível, de "solução"
para os conflitos de uma época.
Creio que, de fato, os romances
permitem às pessoas se sentirem menos desconfortáveis em
meio a esses seus conflitos.
Há esta fórmula de Lévi-Strauss para os mitos: soluções
imaginárias para contradições
reais. Creio que isso explica o
que acontece com os romances
e o modo como, ao longo do
tempo, algumas obras são selecionadas pelos leitores em detrimento de outras. Há contradições (sociais, econômicas)
que são mais importantes e soluções (nas obras) que parecem
mais plausíveis.
O romance policial, por
exemplo, tem muito a ver com
o antigo mundo de aventura
-há o desconhecido, há ganância, mistérios-, mas a estrutura é reapresentada de forma
completamente racionalizada.
É um gênero de um mundo de
físicos, químicos, advogados,
do século 19, da época vitoriana. É claramente um compromisso, um ajuste entre a antiga
lógica das histórias de aventura
e a nova lógica de um mundo
racional e cientificista.
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