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A dimensão moral
Axel Honneth, herdeiro da Escola de Frankfurt, defende a existência
de uma "luta por reconhecimento" dos sujeitos e grupos em toda dinâmica social, mesmo nos conflitos que parecem
ser puramente "materiais'
Os conflitos por redistribuição representam formas implícitas de luta por reconhecimento
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RÚRION MELO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
MARCOS NOBRE
COLUNISTA DA FOLHA
Para o filósofo alemão
Axel Honneth, um
dos problemas para a
superação da crise
socioeconômica na
Europa é a ausência de ideias
novas na política: "Todos os caminhos parecem estar de algum modo obstruídos".
Diretor do Instituto de Pesquisa Social, onde se desenvolveu a chamada Escola de
Frankfurt, ele se refere à ineficiência econômica da social-democracia e à resistência dos
liberais em limitar o mercado.
Honneth, que faz palestra
sobre o pensamento alemão
contemporâneo amanhã (às
19h, no Instituto Goethe, em
São Paulo, com entrada franca), ressalta que os intelectuais
também precisam renovar o
repertório.
O pensador, representante
da teoria crítica e ex-assistente
de Jürgen Habermas, afirma à
Folha que a fundamentação
herdada dos frankfurtianos
-"fusão" de Hegel (1770-1831),
Marx (1818-83) e Freud (1856-1939)- envelheceu.
O autor de "Luta por Reconhecimento" (ed. 34) defende,
no entanto, que uma teoria crítica renovada deve ter um papel importante em repensar o
capitalismo visando à emancipação dos indivíduos. Na entrevista abaixo, ele também comenta sua expectativa em relação ao presidente dos EUA, Barack Obama, e defende seu conceito de "reconhecimento" como fundamental para a compreensão dos conflitos sociais
no mundo atual.
FOLHA - O sr. chega ao Brasil no
momento em que acontecem eleições gerais na Alemanha. Apesar da
profunda crise econômica, a atual
primeira-ministra, Angela Merkel, é
a favorita e os debates eleitorais estão em baixa temperatura. Como
entender isso? Estaria ligado a um
processo mais geral de perda de vitalidade das democracias?
AXEL HONNETH - Vocês têm razão quando afirmam que, apesar dos crescentes problemas
sociais, o interesse público nas
próximas eleições continua
muito pequeno, mesmo com
toda a tentativa de se chamar a
atenção com a encenação midiática.
Uma explicação que me parece apenas superficial dessa atitude diz respeito à "grande coalizão", nesse período de governo que está chegando ao fim,
entre democratas cristãos e social-democratas, a qual dificultava entrever alternativas programáticas entre ambos os partidos. Parece-me mais decisivo,
no entanto, o fato de, em amplos círculos da esfera pública
política, imperar uma certa
perplexidade sobre os instrumentos apropriados para a superação da crise social.
Todos os caminhos parecem
estar de algum modo obstruídos. O recurso às velhas receitas de sucesso da social-democracia se tornou impossível,
pois o aumento dos programas
sociais tem por consequência o
crescimento do desemprego.
Desconfia-se das promessas
dos partidos da "esquerda" porque pretendem realizar a justiça social desconsiderando o
processo de unificação europeu. Em suma, não temos mais
um conhecimento imediato do
problema e concordamos apenas que temos de impor fortes
limites ao mercado capitalista.
Porém, com exceção dos liberais, todos os partidos concordam em relação a isso, a despeito das poucas polarizações e da
falta de interesse.
FOLHA - Em tempos recentes, o termo "reconhecimento" adquiriu um
papel importante na esfera pública
e na vida cotidiana. Mas muitas vezes é empregado em sentidos bem
pouco críticos, como quando pessoas se dizem reconhecidas simplesmente por terem mais dinheiro,
mais poder ou mais prestígio do que
outras. Como a ideia crítica de reconhecimento que o sr. propõe se distingue desse tipo de situação? Há
casos de "falso" reconhecimento?
HONNETH - É claro que existem
essas formas de "falso" reconhecimento. E elas inclusive
aumentam nas sociedades capitalistas liberais do Ocidente
porque seguem o programa
neoliberal, que, ao apelar positivamente para sua flexibilidade e mobilidade, leva as pessoas
a aceitarem relações desregulamentadas de trabalho.
Também a história nos mostrou casos de uso "ideológico"
da retórica do reconhecimento.
Pensem nas imagens culturalmente difundidas da "boa dona
de casa" ou do "bravo guerreiro", todas gestos públicos de reconhecimento que preenchem
essencialmente a função de
motivar as pessoas a consentir
com posições de subordinação.
Contudo, é difícil determinar
o limite exato entre formas
"falsas" ou "corretas" de reconhecimento. Eu diria resumidamente que todas as formas
de reconhecimento que são
adequadas e promovem a
emancipação são aquelas que,
com base em princípios já aceitos de reconhecimento, possibilitam ampliar social e substancialmente sua aplicação.
Para falar mais concretamente: lá onde até então as
qualidades desrespeitadas de
uma pessoa ou grupo depararam socialmente pela primeira
vez com reações afirmativas, lá
onde grupos até agora excluídos foram providos de direitos
que uma maioria já dispunha,
em todos esses casos se trata de
uma expansão de relações de
reconhecimento que promovem a emancipação.
FOLHA - O sr. sempre formulou sua
teoria do reconhecimento tendo como referência a teoria crítica, de nomes como Horkheimer, Adorno,
Marcuse e Habermas. Em um texto
de 1982, o sr. escreveu: "Embora frequentemente declarada morta, a
teoria crítica demonstra uma espantosa capacidade de sobrevivência".
Em 2007, o sr. inicia seu inventário
da teoria crítica com palavras que
parecem ir na direção contrária: "Na
mudança para o novo século, a teoria crítica parece ter se tornado uma
figura de pensamento do passado".
O que aconteceu nos últimos 25
anos para que sua avaliação tenha
mudado tão drasticamente?
HONNETH - Tenho a impressão
de que não existe em absoluto
uma oposição entre essas duas
passagens citadas por vocês. Na
última citação eu pretendi
mostrar, sobretudo, que as figuras de pensamento da primeira geração da teoria crítica,
com a fusão de Hegel, Marx e
Freud, hoje certamente envelheceram do ponto de vista teórico. Não podemos agir como se
esse instrumental conceitual
ainda pudesse ser utilizado
atualmente sem qualquer modificação.
Por outro lado, porém, procurei mostrar na primeira citação que o interesse pela teoria
crítica nunca foi abandonado,
pois com tal postura crítica ainda vinculamos a esperança de
uma análise dos males sociais a
uma perspectiva emancipatória. Considerando juntamente
as duas citações, podemos chegar à ideia de manter as fortes
pretensões da velha teoria com
meios teóricos modificados.
FOLHA - Recentemente, o sr. criticou a escassez de investigações críticas em torno de "um conceito
emancipatório, humano de trabalho". E enfatizou que "uma parte
crescente da população luta tão somente para ter acesso a alguma
chance de uma ocupação capaz de
assegurar a subsistência; outra parte executa atividades em condições
precariamente protegidas e altamente desregulamentadas; uma
terceira parte, por fim, experimenta
no momento a rápida desprofissionalização e a terceirização de seus
postos de trabalho, que anteriormente ainda tinham um status assegurado". O sr. vê contratendências a esses movimentos destrutivos? Ou um "trabalho dotado qualitativamente de sentido", como o sr.
defende, é hoje apenas um ideal?
HONNETH -
Essa é uma pergunta muito complexa, que pode
ser respondida empiricamente
ou a partir de uma teoria social.
Se nos detemos nas investigações empíricas, então se nota
que o desejo de uma melhora
nas condições de trabalho nunca foi abandonado pelos próprios empregados. Esse interesse, embora seja negativamente perceptível na forma de
recusas de trabalho e de manifestações de insatisfação, estende-se não apenas à garantia
de um salário capaz de assegurar a subsistência, mas a uma
melhora qualitativa da situação
de trabalho, ou seja, à criação
de atividades suficientemente
complexas e que não causam
danos psíquicos ou físicos.
Sob o ponto de vista da teoria
social, creio poder mostrar que
a aprovação de tais formas de
trabalho "dotadas de sentido"
está estruturada nos próprios
princípios normativos do mercado capitalista: este promete
aos empregados desde o início
não apenas um salário adequado à manutenção da própria vida, mas também uma participação na reprodução social que
seja abrangente e condizente
com a divisão do trabalho.
FOLHA - A queda do muro de Berlim significou há 20 anos a bancarrota do socialismo de Estado. A atual
crise econômica parece marcar o fim
do neoliberalismo. Que balanço o sr.
tiraria desse período? Na sua opinião, o presidente norte-americano
Barack Obama representa o símbolo
de um novo período?
HONNETH - Sim, eu estou otimista o suficiente para ver de
fato em Obama algo como a forma histórica do impulso político por mudança -não apenas
no que diz respeito à relação
malograda e infeliz com o mundo islâmico, mas também com
referência à necessidade de
uma correção política da economia neoliberal.
FOLHA - Desde a publicação no Brasil de seu livro "Luta por Reconhecimento", em 2003, a recepção de seu
trabalho tem passado em grande
medida pela polêmica que o sr. travou com a teórica crítica norte-americana Nancy Fraser, que criticou sua
posição dizendo que uma centralidade do conceito de reconhecimento acabaria por relegar a segundo
plano as lutas por redistribuições
materiais da riqueza. Que balanço o
sr. faz dessa polêmica hoje?
HONNETH - Eu receio que as objeções de Nancy Fraser nunca
modificaram realmente o meu
modo de pensar. Além disso,
estou convencido de que os
conflitos por redistribuição representem formas implícitas
de luta por reconhecimento
porque, na demanda por uma
maior participação no total da
riqueza social, visam ao reconhecimento de um benefício
que até então não foi adequadamente honrado nem tornado
digno -quem insiste em aprofundar o vão entre os dois tipos
de conflito social perde de vista
a dimensão moral de todas as
lutas por distribuição.
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