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AUTORES
Peter Burke comenta estudo sobre as relações sociais na corte de Versalhes
A hierarquia da nobreza
PETER BURKE
especial para a Folha
Um dos maiores historiadores
em atividade na França hoje, Emmanuel Le Roy Ladurie publicou
recentemente um estudo gigante
sobre a corte de Luís 14 e a regência que sucedeu à morte deste rei:
"Saint-Simon ou le Système de la
Cour" (Saint-Simon ou o Sistema
da Corte, Paris, Fayard). De certa
forma, a obra é típica do autor que
a concebeu, mas, por outro lado,
marca um novo começo. Aluno do
grande historiador Fernand Braudel, apelidado uma vez de "Le
Dauphin" por ser considerado o
herdeiro do reino intelectual de
Braudel, Le Roy (como parece
apropriado chamá-lo) escreveu a
sua tese de doutorado sobre os
camponeses de Languedoc entre
os séculos 15 e 18.
Publicado em 1966, "Les Paysans de Languedoc" ("Camponeses do Languedoc", Companhia
das Letras) era de certa maneira
um exemplo típico das histórias
sociais e econômicas regionais em
voga naquele momento -desde a
sua longa introdução geográfica
até a utilização de um sem-número de estatísticas econômicas e demográficas. Menos usual para o
período eram as seções sobre política e cultura, passando por religião e revolta rural, além do prazer
que o autor claramente nutria pela
narrativa num momento em que o
que dominava eram as análises de
estruturas e tendências.
Nove anos mais tarde, outra monografia de Le Roy causava um
certo choque ao ser publicada:
"Montaillou, Village Occitan"
(1975) ("Montaillou - Povoado
Occitânico", Companhia das Letras). Era uma surpresa um especialista em história "moderna"
publicar um livro sobre a Idade
Média, e que um livro extenso fosse dedicado aos habitantes de uma
pequena aldeia (retrospectivamente, o livro foi reconhecido como uma das primeiras "microhistórias"). Desde essa época, Le Roy
publicou toda uma série de outros
livros: um deles sobre o carnaval
numa pequena cidade francesa,
Romans, durante as guerras religiosas de fins do século 16; outro
sobre uma família teuto-suíça de
físicos humanistas, os Platter; outro sobre os contos populares e
seus contadores no sul da França,
no século 18. Nunca se sabe qual
será o próximo passo de Le Roy.
Independentemente disso, para
aqueles que conhecem a sua obra
anterior, concentrada de maneira
tão intensa em pessoas comuns e
na cultura popular, pode representar um choque -outro choque- encontrar Le Roy dedicado
à corte de Luís 14 e à Regência que
sucedeu à morte deste em 1715. É
possível questionar se a política
tem alguma coisa a ver com essa
mudança de camponeses para
príncipes. Afinal, Le Roy, que começou a sua vida adulta na esquerda, rebelando-se contra o seu
pai, que era ministro da Agricultura francês durante o regime de
Vichy (1940-1944), desde então
vem se movendo gradualmente
para a direita. Pode-se também
questionar se é possível dizer algo
de novo sobre a corte de Luís 14,
que já foi objeto de tantos livros.
Com efeito, Le Roy tem algo de
novo a dizer graças a uma abordagem adotada em toda a sua obra
anterior. "Montaillou", por
exemplo, foi uma tentativa de escrever aquilo que os antropólogos
chamam de "estudo de comunidade" de uma aldeia do século 14
(tratando os interrogatórios por
que passaram os habitantes de
maneira similar a entrevistas), enquanto o livro novo nos fornece
uma visão antropológica tão pouco familiar da corte de Versalhes
quanto a descrição que Mark
Twain faz da corte do rei Artur por
meio do olhar de um ianque oitocentista.
Em todos os seus livros, Le Roy
utiliza-se da mesma abordagem.
Focaliza um único texto do período que estuda, tal como a autobiografia de Thomas Platter ou os registros inquisitoriais que contêm
os interrogatórios dos habitantes
de Montaillou. Ele compara o texto com outros e o situa em contexto, atendo-se, porém, tanto quanto possível, a um único texto, a fim
de oferecer ao leitor a ilusão de
perceber o passado por meio do
olhar da época. No caso do último
livro, a escolha do autor recaiu sobre o duque de Saint-Simon
(1675-1755), cujas memórias da
corte preenchem oito volumes da
edição Pléiade.
Saint-Simon é bastante conhecido, tanto como testemunha da vida em Versalhes quanto como
clássico da literatura francesa, mas
Le Roy o utiliza de uma maneira
bastante pouco usual. Trata
Saint-Simon como se este mesmo
fosse um antropólogo, descrevendo-o como observador arguto,
munido de um olhar apurado para
o detalhe significativo e capaz de
se distanciar daquilo que observa.
Demonstra que o duque se interessava em comparar a Europa
com outras sociedades -dos iroqueses e huronianos aos "petits
rois africains" do Senegal. Sobretudo enfatiza o interesse de
Saint-Simon por classificar e teorizar, a sua visão da corte como
"sistema" no qual todo detalhe
pode e deve ser explicado com referência ao todo.
Em resumo, Saint-Simon é levado a sério como pensador, possivelmente pela primeira vez. A despeito de referências ocasionais às
"obsessões" do duque e às suas
"fobias", Le Roy trata as suas atitudes aristocráticas não apenas
como conjunto de preconceitos,
mas como expressões de uma visão do mundo que se torna cada
vez mais difícil de entender no interior daquilo que o autor chama
de "nosso mundo igualitário e desencantado". Em poucas palavras: ele nos oferece uma antropologia de Saint-Simon, remetendo-se às idéias do famoso indianista Louis Dumont a fim de explicar a preocupação do duque com
o sagrado e o profano, o puro e o
impuro. Os capítulos relativos a
esses tópicos são, a meu ver, os
melhores do livro, e eles trazem
uma contribuição importante
àquilo que Le Roy ainda chama de
história das "mentalidades", em
vez da expressão, mais em voga,
"imaginário social".
Se eles têm um precedente, este
se encontra no famoso ensaio do
sociólogo alemão Norbert Elias,
escrito no início da década de
1930, mas publicado apenas uma
geração mais tarde. "A Sociedade
de Corte" também tentava entender Versalhes como sistema social.
Que estranho, então, ou -para
ser mais cínico- infelizmente
previsível, que o autor a ser atacado por Le Roy seja Elias. É bastante razoável que o sociólogo alemão
seja criticado no texto por certos
erros, mesmo que tivesse sido
mais generoso reconhecer a sua
contribuição positiva ao tema.
Que um anexo seja devotado a refutar a abordagem de Elias também é compreensível, apesar de,
no geral, desnecessário.
Entretanto é possivelmente excessivo que até as notas de rodapé
ataquem Elias. O fato de a bibliografia também incluir outros ataques ou repetições do mesmo ataque sugere que Le Roy, não menos
do que Saint-Simon, sofre de "fobias" e "obsessões".
Depois da antropologia da hierarquia, o que mais me impressiona neste estudo é o talento e a
fluência com que é escrito. Houve
um tempo, não muito longínquo,
em que a maioria dos historiadores profissionais desconfiavam da
escrita elegante como se existisse
algo de imoral em tentar atrair os
leitores oferecendo-lhes mais do
que "os fatos", servidos sem nenhum ornamento, como a comida
inglesa. Felizmente na França e em
outros lugares, alguns dos melhores historiadores em atividade hoje destacam-se também como escritores -mesmo se não encaram
a história como forma de ficção.
Saint-Simon foi chamado de
Proust setecentista (Proust foi, de
fato, um grande admirador das
memórias de Saint-Simon). Le
Roy não se esforça em imitar "Em
Busca do Tempo Perdido". Escreve numa mistura de coloquialismos, anglicismos, latinismos,
neologismos e de circunlocuções
arcaicas. Refere-se a Saint-Simon
como "le petit duc" (o pequeno
duque) e ao pai deste como "l'auteur de ses jours" (o autor de sua
época). Se ele tem um modelo literário, trata-se provavelmente de
Céline. Como sempre, entretanto,
Le Roy escreve com estilo. Fluente
em todos os momentos, frequentemente sensível e por vezes divertido, "Saint-Simon ou le Système
de la Cour" atrai tanto quanto
qualquer bom romance.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "A
Arte da Conversação" (Unesp). Ele escreve bimestralmente na seção "Autores".
Tradução de Fraya Frehse.
Onde encomendar
Obras em francês podem ser adquiridas na Livraria Francesa (r. Barão de
Itapetininga, 275, tel. 011/231-4555,
SP) ou, pela Internet, na Librairie Gallimard
(http://www.gallimard-mtl.com/).
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