São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1998

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AUTORES
Peter Burke comenta estudo sobre as relações sociais na corte de Versalhes
A hierarquia da nobreza

PETER BURKE
especial para a Folha

Um dos maiores historiadores em atividade na França hoje, Emmanuel Le Roy Ladurie publicou recentemente um estudo gigante sobre a corte de Luís 14 e a regência que sucedeu à morte deste rei: "Saint-Simon ou le Système de la Cour" (Saint-Simon ou o Sistema da Corte, Paris, Fayard). De certa forma, a obra é típica do autor que a concebeu, mas, por outro lado, marca um novo começo. Aluno do grande historiador Fernand Braudel, apelidado uma vez de "Le Dauphin" por ser considerado o herdeiro do reino intelectual de Braudel, Le Roy (como parece apropriado chamá-lo) escreveu a sua tese de doutorado sobre os camponeses de Languedoc entre os séculos 15 e 18.
Publicado em 1966, "Les Paysans de Languedoc" ("Camponeses do Languedoc", Companhia das Letras) era de certa maneira um exemplo típico das histórias sociais e econômicas regionais em voga naquele momento -desde a sua longa introdução geográfica até a utilização de um sem-número de estatísticas econômicas e demográficas. Menos usual para o período eram as seções sobre política e cultura, passando por religião e revolta rural, além do prazer que o autor claramente nutria pela narrativa num momento em que o que dominava eram as análises de estruturas e tendências.
Nove anos mais tarde, outra monografia de Le Roy causava um certo choque ao ser publicada: "Montaillou, Village Occitan" (1975) ("Montaillou - Povoado Occitânico", Companhia das Letras). Era uma surpresa um especialista em história "moderna" publicar um livro sobre a Idade Média, e que um livro extenso fosse dedicado aos habitantes de uma pequena aldeia (retrospectivamente, o livro foi reconhecido como uma das primeiras "microhistórias"). Desde essa época, Le Roy publicou toda uma série de outros livros: um deles sobre o carnaval numa pequena cidade francesa, Romans, durante as guerras religiosas de fins do século 16; outro sobre uma família teuto-suíça de físicos humanistas, os Platter; outro sobre os contos populares e seus contadores no sul da França, no século 18. Nunca se sabe qual será o próximo passo de Le Roy.
Independentemente disso, para aqueles que conhecem a sua obra anterior, concentrada de maneira tão intensa em pessoas comuns e na cultura popular, pode representar um choque -outro choque- encontrar Le Roy dedicado à corte de Luís 14 e à Regência que sucedeu à morte deste em 1715. É possível questionar se a política tem alguma coisa a ver com essa mudança de camponeses para príncipes. Afinal, Le Roy, que começou a sua vida adulta na esquerda, rebelando-se contra o seu pai, que era ministro da Agricultura francês durante o regime de Vichy (1940-1944), desde então vem se movendo gradualmente para a direita. Pode-se também questionar se é possível dizer algo de novo sobre a corte de Luís 14, que já foi objeto de tantos livros.
Com efeito, Le Roy tem algo de novo a dizer graças a uma abordagem adotada em toda a sua obra anterior. "Montaillou", por exemplo, foi uma tentativa de escrever aquilo que os antropólogos chamam de "estudo de comunidade" de uma aldeia do século 14 (tratando os interrogatórios por que passaram os habitantes de maneira similar a entrevistas), enquanto o livro novo nos fornece uma visão antropológica tão pouco familiar da corte de Versalhes quanto a descrição que Mark Twain faz da corte do rei Artur por meio do olhar de um ianque oitocentista.
Em todos os seus livros, Le Roy utiliza-se da mesma abordagem. Focaliza um único texto do período que estuda, tal como a autobiografia de Thomas Platter ou os registros inquisitoriais que contêm os interrogatórios dos habitantes de Montaillou. Ele compara o texto com outros e o situa em contexto, atendo-se, porém, tanto quanto possível, a um único texto, a fim de oferecer ao leitor a ilusão de perceber o passado por meio do olhar da época. No caso do último livro, a escolha do autor recaiu sobre o duque de Saint-Simon (1675-1755), cujas memórias da corte preenchem oito volumes da edição Pléiade.
Saint-Simon é bastante conhecido, tanto como testemunha da vida em Versalhes quanto como clássico da literatura francesa, mas Le Roy o utiliza de uma maneira bastante pouco usual. Trata Saint-Simon como se este mesmo fosse um antropólogo, descrevendo-o como observador arguto, munido de um olhar apurado para o detalhe significativo e capaz de se distanciar daquilo que observa. Demonstra que o duque se interessava em comparar a Europa com outras sociedades -dos iroqueses e huronianos aos "petits rois africains" do Senegal. Sobretudo enfatiza o interesse de Saint-Simon por classificar e teorizar, a sua visão da corte como "sistema" no qual todo detalhe pode e deve ser explicado com referência ao todo.
Em resumo, Saint-Simon é levado a sério como pensador, possivelmente pela primeira vez. A despeito de referências ocasionais às "obsessões" do duque e às suas "fobias", Le Roy trata as suas atitudes aristocráticas não apenas como conjunto de preconceitos, mas como expressões de uma visão do mundo que se torna cada vez mais difícil de entender no interior daquilo que o autor chama de "nosso mundo igualitário e desencantado". Em poucas palavras: ele nos oferece uma antropologia de Saint-Simon, remetendo-se às idéias do famoso indianista Louis Dumont a fim de explicar a preocupação do duque com o sagrado e o profano, o puro e o impuro. Os capítulos relativos a esses tópicos são, a meu ver, os melhores do livro, e eles trazem uma contribuição importante àquilo que Le Roy ainda chama de história das "mentalidades", em vez da expressão, mais em voga, "imaginário social".
Se eles têm um precedente, este se encontra no famoso ensaio do sociólogo alemão Norbert Elias, escrito no início da década de 1930, mas publicado apenas uma geração mais tarde. "A Sociedade de Corte" também tentava entender Versalhes como sistema social. Que estranho, então, ou -para ser mais cínico- infelizmente previsível, que o autor a ser atacado por Le Roy seja Elias. É bastante razoável que o sociólogo alemão seja criticado no texto por certos erros, mesmo que tivesse sido mais generoso reconhecer a sua contribuição positiva ao tema. Que um anexo seja devotado a refutar a abordagem de Elias também é compreensível, apesar de, no geral, desnecessário.
Entretanto é possivelmente excessivo que até as notas de rodapé ataquem Elias. O fato de a bibliografia também incluir outros ataques ou repetições do mesmo ataque sugere que Le Roy, não menos do que Saint-Simon, sofre de "fobias" e "obsessões".
Depois da antropologia da hierarquia, o que mais me impressiona neste estudo é o talento e a fluência com que é escrito. Houve um tempo, não muito longínquo, em que a maioria dos historiadores profissionais desconfiavam da escrita elegante como se existisse algo de imoral em tentar atrair os leitores oferecendo-lhes mais do que "os fatos", servidos sem nenhum ornamento, como a comida inglesa. Felizmente na França e em outros lugares, alguns dos melhores historiadores em atividade hoje destacam-se também como escritores -mesmo se não encaram a história como forma de ficção.
Saint-Simon foi chamado de Proust setecentista (Proust foi, de fato, um grande admirador das memórias de Saint-Simon). Le Roy não se esforça em imitar "Em Busca do Tempo Perdido". Escreve numa mistura de coloquialismos, anglicismos, latinismos, neologismos e de circunlocuções arcaicas. Refere-se a Saint-Simon como "le petit duc" (o pequeno duque) e ao pai deste como "l'auteur de ses jours" (o autor de sua época). Se ele tem um modelo literário, trata-se provavelmente de Céline. Como sempre, entretanto, Le Roy escreve com estilo. Fluente em todos os momentos, frequentemente sensível e por vezes divertido, "Saint-Simon ou le Système de la Cour" atrai tanto quanto qualquer bom romance.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "A Arte da Conversação" (Unesp). Ele escreve bimestralmente na seção "Autores".
Tradução de Fraya Frehse.

Onde encomendar
Obras em francês podem ser adquiridas na Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, tel. 011/231-4555, SP) ou, pela Internet, na Librairie Gallimard (http://www.gallimard-mtl.com/).



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