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Marcado pelo horror nazista, Celan condensa em si toda uma tradição poética da Europa
A pureza derradeira
CLAUDIO MAGRIS
especial para o "Corriere della Sera"
Depois de Auschwitz, escreveu
Adorno em célebre página, não é
-ou não deveria ser?- possível
escrever poesia. A poesia, de fato,
mesmo quando nasce do sofrimento mais profundo, é uma afirmação de humanidade e uma expressão de beleza, contribuindo,
portanto, mesmo que à sua revelia, a destemperar o horror, a limar a intolerabilidade do mal
-ela sugere que pode haver humanidade e beleza, apesar da violência inominável, e, portanto,
abranda de certo modo a sua
monstruosidade. O silêncio, o
emudecimento parecem ser a única resposta adequada ao horror.
Primo Levi -com o remorso dos
que logram sobreviver- escreveu
que ninguém pode falar da Górgona, pois quem realmente a olhou
nos olhos não retornou e quem fala dela atenua a sua aniquiladora
fúria.
Aquela frase de Adorno é insustentável e, ao mesmo tempo, irrefutável: o mal não é absoluto, porque até a ação mais atroz está ligada, por nexos históricos (isto é, relativos, mediados), à realidade em
seu conjunto -mas é vivido como
devastação absoluta e total, e esta
verdade de sua experiência não
pode ser nem esquecida nem relativizada. Da imbecil abjeção dos
torturadores à exploração econômica do trabalho dos deportados,
os campos de extermínio também
se inserem na inextricável rede de
mediações do mundo, mas a câmara de gás trespassa a história,
coloca-nos frente a frente com um
absoluto não mediável e tampouco definível ou nomeável.
Sem conhecer Adorno -que
provavelmente se recusaria a ler e
julgaria excessivamente regalado
com as próprias sutilezas-, Umberto Saba dizia, referindo-se a
outro campo de extermínio: "Depois de Maidanek...", com a leveza dos poetas, amiúde mais conhecedora de bem e mal do que o podem ser as teses totalizantes dos filósofos. Ele deixava aquelas palavras suspensas, quase querendo
dizer que, depois de Maidanek, tudo estava irreparavelmente mudado, mas sem formular prescrições
ou proibições.
A proibição de Adorno foi transgredida, como aliás ele bem sabia e
fazia votos, pois não se pode pensar uma humanidade sem poesia.
Primo Levi mostrou a Górgona,
Paul Celan também tinha pleno
direito de transgredir aquela proibição, enquanto diretamente envolvido pelo horror do extermínio, que também atingira os seus
pais. Celan duvidou, mais do que
qualquer outro, da legitimidade e
da possibilidade de escrever poesia depois de Auschwitz, percebendo, com uma dor lancinante, a
necessidade e ao mesmo tempo a
extrema dificuldade deste ato, e
fazendo desta dilaceração a própria essência de sua altíssima e impenetrável lírica, arrancada do
abismo e do inenarrável.
Nascido em 1920 em Tchernovtsy (ex-Romênia, atual Ucrânia), morto suicida em Paris, em
1970, Paul Celan é originário daquela ex-província oriental do Império dos Habsburgo, a Bucovina,
que era um caldeirão de povos e
culturas diferentes (alemã, romena, russa, hebraica, rutena), com
toda a estimulante fecundidade e a
maldição das terras de fronteira,
sempre incertas entre uma abertura supranacional mais ampla e a
exasperação de rancores chauvinistas. O Prut, o rio da cidade em
cujas margens fora sonhado e até
realizado um notável florescimento cultural e literário, de fôlego
cosmopolita, torna-se o rio da
morte, o rio para além do qual os
nazistas deportam a mãe do poeta.
Depois da guerra, Celan vive em
Bucareste, em Viena -onde encontra amigos ideais, seres errantes e órfãos da vida e da história
feito ele; na Alemanha, onde trava
amizade com os mais significativos poetas, mas em cujo mundo
literário não consegue se inserir,
não só devido ao trauma do contato com a Alemanha, mas também
porque a literatura alemã cultiva
um sentido tecnológico da poesia.
Ali, ela é entendida como experimento, laboratório, produção de
"textos", enquanto a sua poesia é
um canto órfico que desce às raízes do ser ou do nada, é uma palavra conquistada com o silêncio e
arrancada ao silêncio, uma pergunta sobre as coisas últimas. Não
por acaso Celan pode ter um diálogo, não isento de escuridão e reticências, com Heidegger. A estada
mais feliz -para um homem que
nascera para ser feliz, para amar, e
também para gozar a vida, e se encontrou a viver em sua pessoa
uma laceração insustentável- é
certamente Paris, onde, ainda assim, no final, sucumbe a um padecimento crescente, que o transtorna em todas as suas fibras, e busca
a morte no Sena.
O poeta cuja língua materna, a
língua em que escreve, é a língua
dos assassinos de sua mãe, assume
sobre si a tragédia histórica e o mal
de existir da época, como um Messias dolente, para reencontrar os
verdadeiros nomes das coisas,
apagados pela violência e pela falsificação. Mas encontra a neve da
morte e do luto, jazigos e lápides
anônimos, cuja verdade é, justamente, a impossibilidade de trazer
um nome, o desaparecimento, a
extinção, o ser lápide de Ninguém.
A lírica de Celan assemelha um
pouco àquela sua, mais famosa,
"Fuga da Morte", da qual, por
vezes, chegou-se quase a repreender o exorcismo do horror do extermínio, por meio do feitiço do
canto. Como todo o verdadeiro
poeta, Celan é concreto, nunca genérico. Se, por exemplo, inicia
uma poesia com as palavras "Treze de Fevereiro", o faz referindo-se a uma realidade histórico-política exata. Mas ele avança
para o limiar do silêncio, da afasia,
na desesperada convicção de que
só atravessando o inenarrável se
poderia, talvez, estabelecer um
diálogo, dizer a palavra caída no
abismo. À medida que prossegue,
os seus versos, em alguns casos
elevadíssimos, partem-se em negações, despem-se numa pedregosa descarnadura, emaranham-se
em tortuosidades lancinantes e,
no final, são às vezes incompreensíveis e desconexos.
A interpretação é obrigada a oscilar entre a explicação de referências, que auxilia na compreensão
do poder poético, e a decifração de
alusões particulares, em que a autêntica e misteriosa complexidade
da palavra lírica confunde-se com
a árida arte enigmática do criptograma e da linguagem cifrada.
Celan é também um grande epígono, que condensa em si uma inteira tradição órfica da Europa e a
leva a uma última e cegante pureza
antes que esta se apague, apagando-se com ela. Realmente ainda é
muito cedo para saber se a posteridade verá nele um clássico, um daqueles autores exemplares de uma
época que, como dizia o antigo Liu
Xie -o Aristóteles da poética chinesa-, participam da ordem das
coisas. É difícil dizê-lo, até porque
esta interrogação não atinge apenas sua obra, e sim toda uma visão
da poesia, da qual sua obra é um
exemplo radical, ou seja, a visão
da poesia como busca da vida verdadeira, de outra história: a relação entre poesia e revolução, portanto, a poesia que sonha a revolução e continua a sonhá-la mesmo
depois que toda a revolução concreta desmentiu ou sufocou suas
expectativas.
Pode ser que a violência staliniana em que morreu o grande Mandelstam, talvez o poeta mais próximo a Celan, tenha destruído esta
relação entre poesia e exigência de
resgate da história, da qual a literatura ocidental se alimentou, do romantismo a Rimbaud aos nossos
dias. Neste caso, o poeta seria
"ninguém" num sentido ainda
mais radical daquele que Celan dava à imagem, pois também cairia a
fé na palavra poética como experiência privilegiada da noite e do
silêncio; e o poeta que se lança,
sem rede, para tocar um fundo essencial da realidade, só encontraria o próprio, irredimível naufrágio.
Claudio Magris é escritor, crítico literário e ensaísta italiano.
Tradução de Roberta Barni.
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