São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1998

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Marcado pelo horror nazista, Celan condensa em si toda uma tradição poética da Europa
A pureza derradeira

CLAUDIO MAGRIS
especial para o "Corriere della Sera"

Depois de Auschwitz, escreveu Adorno em célebre página, não é -ou não deveria ser?- possível escrever poesia. A poesia, de fato, mesmo quando nasce do sofrimento mais profundo, é uma afirmação de humanidade e uma expressão de beleza, contribuindo, portanto, mesmo que à sua revelia, a destemperar o horror, a limar a intolerabilidade do mal -ela sugere que pode haver humanidade e beleza, apesar da violência inominável, e, portanto, abranda de certo modo a sua monstruosidade. O silêncio, o emudecimento parecem ser a única resposta adequada ao horror. Primo Levi -com o remorso dos que logram sobreviver- escreveu que ninguém pode falar da Górgona, pois quem realmente a olhou nos olhos não retornou e quem fala dela atenua a sua aniquiladora fúria.
Aquela frase de Adorno é insustentável e, ao mesmo tempo, irrefutável: o mal não é absoluto, porque até a ação mais atroz está ligada, por nexos históricos (isto é, relativos, mediados), à realidade em seu conjunto -mas é vivido como devastação absoluta e total, e esta verdade de sua experiência não pode ser nem esquecida nem relativizada. Da imbecil abjeção dos torturadores à exploração econômica do trabalho dos deportados, os campos de extermínio também se inserem na inextricável rede de mediações do mundo, mas a câmara de gás trespassa a história, coloca-nos frente a frente com um absoluto não mediável e tampouco definível ou nomeável.
Sem conhecer Adorno -que provavelmente se recusaria a ler e julgaria excessivamente regalado com as próprias sutilezas-, Umberto Saba dizia, referindo-se a outro campo de extermínio: "Depois de Maidanek...", com a leveza dos poetas, amiúde mais conhecedora de bem e mal do que o podem ser as teses totalizantes dos filósofos. Ele deixava aquelas palavras suspensas, quase querendo dizer que, depois de Maidanek, tudo estava irreparavelmente mudado, mas sem formular prescrições ou proibições.
A proibição de Adorno foi transgredida, como aliás ele bem sabia e fazia votos, pois não se pode pensar uma humanidade sem poesia. Primo Levi mostrou a Górgona, Paul Celan também tinha pleno direito de transgredir aquela proibição, enquanto diretamente envolvido pelo horror do extermínio, que também atingira os seus pais. Celan duvidou, mais do que qualquer outro, da legitimidade e da possibilidade de escrever poesia depois de Auschwitz, percebendo, com uma dor lancinante, a necessidade e ao mesmo tempo a extrema dificuldade deste ato, e fazendo desta dilaceração a própria essência de sua altíssima e impenetrável lírica, arrancada do abismo e do inenarrável.
Nascido em 1920 em Tchernovtsy (ex-Romênia, atual Ucrânia), morto suicida em Paris, em 1970, Paul Celan é originário daquela ex-província oriental do Império dos Habsburgo, a Bucovina, que era um caldeirão de povos e culturas diferentes (alemã, romena, russa, hebraica, rutena), com toda a estimulante fecundidade e a maldição das terras de fronteira, sempre incertas entre uma abertura supranacional mais ampla e a exasperação de rancores chauvinistas. O Prut, o rio da cidade em cujas margens fora sonhado e até realizado um notável florescimento cultural e literário, de fôlego cosmopolita, torna-se o rio da morte, o rio para além do qual os nazistas deportam a mãe do poeta.
Depois da guerra, Celan vive em Bucareste, em Viena -onde encontra amigos ideais, seres errantes e órfãos da vida e da história feito ele; na Alemanha, onde trava amizade com os mais significativos poetas, mas em cujo mundo literário não consegue se inserir, não só devido ao trauma do contato com a Alemanha, mas também porque a literatura alemã cultiva um sentido tecnológico da poesia.
Ali, ela é entendida como experimento, laboratório, produção de "textos", enquanto a sua poesia é um canto órfico que desce às raízes do ser ou do nada, é uma palavra conquistada com o silêncio e arrancada ao silêncio, uma pergunta sobre as coisas últimas. Não por acaso Celan pode ter um diálogo, não isento de escuridão e reticências, com Heidegger. A estada mais feliz -para um homem que nascera para ser feliz, para amar, e também para gozar a vida, e se encontrou a viver em sua pessoa uma laceração insustentável- é certamente Paris, onde, ainda assim, no final, sucumbe a um padecimento crescente, que o transtorna em todas as suas fibras, e busca a morte no Sena.
O poeta cuja língua materna, a língua em que escreve, é a língua dos assassinos de sua mãe, assume sobre si a tragédia histórica e o mal de existir da época, como um Messias dolente, para reencontrar os verdadeiros nomes das coisas, apagados pela violência e pela falsificação. Mas encontra a neve da morte e do luto, jazigos e lápides anônimos, cuja verdade é, justamente, a impossibilidade de trazer um nome, o desaparecimento, a extinção, o ser lápide de Ninguém.
A lírica de Celan assemelha um pouco àquela sua, mais famosa, "Fuga da Morte", da qual, por vezes, chegou-se quase a repreender o exorcismo do horror do extermínio, por meio do feitiço do canto. Como todo o verdadeiro poeta, Celan é concreto, nunca genérico. Se, por exemplo, inicia uma poesia com as palavras "Treze de Fevereiro", o faz referindo-se a uma realidade histórico-política exata. Mas ele avança para o limiar do silêncio, da afasia, na desesperada convicção de que só atravessando o inenarrável se poderia, talvez, estabelecer um diálogo, dizer a palavra caída no abismo. À medida que prossegue, os seus versos, em alguns casos elevadíssimos, partem-se em negações, despem-se numa pedregosa descarnadura, emaranham-se em tortuosidades lancinantes e, no final, são às vezes incompreensíveis e desconexos.
A interpretação é obrigada a oscilar entre a explicação de referências, que auxilia na compreensão do poder poético, e a decifração de alusões particulares, em que a autêntica e misteriosa complexidade da palavra lírica confunde-se com a árida arte enigmática do criptograma e da linguagem cifrada.
Celan é também um grande epígono, que condensa em si uma inteira tradição órfica da Europa e a leva a uma última e cegante pureza antes que esta se apague, apagando-se com ela. Realmente ainda é muito cedo para saber se a posteridade verá nele um clássico, um daqueles autores exemplares de uma época que, como dizia o antigo Liu Xie -o Aristóteles da poética chinesa-, participam da ordem das coisas. É difícil dizê-lo, até porque esta interrogação não atinge apenas sua obra, e sim toda uma visão da poesia, da qual sua obra é um exemplo radical, ou seja, a visão da poesia como busca da vida verdadeira, de outra história: a relação entre poesia e revolução, portanto, a poesia que sonha a revolução e continua a sonhá-la mesmo depois que toda a revolução concreta desmentiu ou sufocou suas expectativas.
Pode ser que a violência staliniana em que morreu o grande Mandelstam, talvez o poeta mais próximo a Celan, tenha destruído esta relação entre poesia e exigência de resgate da história, da qual a literatura ocidental se alimentou, do romantismo a Rimbaud aos nossos dias. Neste caso, o poeta seria "ninguém" num sentido ainda mais radical daquele que Celan dava à imagem, pois também cairia a fé na palavra poética como experiência privilegiada da noite e do silêncio; e o poeta que se lança, sem rede, para tocar um fundo essencial da realidade, só encontraria o próprio, irredimível naufrágio.


Claudio Magris é escritor, crítico literário e ensaísta italiano.
Tradução de Roberta Barni.



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