São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1998

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O poeta francês, que morreu há cem anos, passou boa parte da vida buscando criar um novo melodrama
Últimas palavras

JACQUES RANCIÈRE
especial para a Folha

Há cem anos, Stéphane Mallarmé expirava em sua casa às margens do Sena. Entre duas crises, ele teve tempo de escrever uma nota em que pedia a sua família que destruísse todos os projetos e os esboços daquele "Livro" que toda vida idealizara. "Não há ali nenhuma herança literária", escrevia. Mas logo acrescentava: "Acreditem que era para ser muito bonito".
Faz cem anos que essas últimas palavras, precedendo o silêncio definitivo, mantêm a lenda de Mallarmé. Ele se tornou o arquétipo do poeta sem obra, aquele que buscou o absoluto e encontrou o nada, que quis afastar a linguagem poética das palavras da tribo, a custo de hermetismo e de silêncio. Alguns o glorificaram por ter descoberto esse silêncio como o próprio cerne da experiência literária. Outros denunciaram uma vontade de destruição da significação que transforma as palavras em pedras preciosas, para com elas constituir um jardim proibido ao profano. Mas todos constroem a mesma imagem definitiva: a do esteta apaixonado por essências raras e sonoridades inauditas, do teórico de um poema puro demais para ser jamais escrito.
Vemos o que funda a perenidade dessa lenda. Por muito tempo ela fez de Mallarmé um ícone cômodo para ilustrar o indestrutível debate entre literatura pura e literatura engajada, entre o artista retirado em sua torre de marfim e o artista participante das batalhas do século. Hoje em dia ela serve antes à sabedoria cética que denuncia as vãs utopias do século passado. No entanto, talvez o exemplo de Mallarmé seja o mais adequado para que se recoloquem em questão essas oposições. É verdade que por toda sua vida ele desejou a execução do "livro". Mas passou, para esse fim, numerosos anos procurando a fórmula de um melodrama novo.
Em seu diário "La Dernière Mode" (A Última Moda), porém, comprouve-se em descrever toaletes, buquês e cardápios. Celebrou a flor poética "ausente de todos os buquês". "Listas de bailarinos, programas de concertos ou cardápios de clientes compõem", escreveu ele, "uma literatura que possui a imortalidade de uma semana ou duas". Ele denunciou a "reportagem universal" do jornalismo e seu jato de tinta vulgar. Mas agradou-lhe o trabalho de cronista e celebrou a novela como a delineação do "poema popular moderno".
Toda a poética de Mallarmé desmente assim a oposição entre as solidões congeladas do absoluto e o mundo das atividades profanas. Ela se dedicou constantemente a trazer de volta à terra o absoluto romântico da idéia, a fazer dela o movimento fugitivo de uma aparição e de uma desaparição: vôo de cabeleira, batida de leque, frufru de vestido, foguetes de fogos de artifício ou evento de espetáculo de feira. E não se trata de um simples gosto de esteta decadente pelo "quase nada" e pelo "não sei quê". A poesia de Mallarmé se inscreve no interior de uma preocupação política comum a seu tempo, mas também testemunha uma posição específica no seio dessa preocupação comum.
A preocupação comum a seu século era essa: o que pode fundar a comunidade política, além da relação entre as sujeições do sistema econômico e as da lei estatal? O que pode substituir essas formas de simbolização da grandeza coletiva que os fastos da monarquia e as cerimônias da religião constituíam? O que se necessita, afirmava o século de Mallarmé, é de uma nova religião, uma religião terrestre que dê uma realidade sensível ao liame comunitário. É necessária uma economia simbólica da grandeza coletiva que contrabalance a economia política das trocas de mercadoria.
O projeto poético de Mallarmé se inscreve nesse problema secular. Mas ele concebe sua realização de modo completamente contrário à corrente dominante. Para essa última, tratava-se de baixar à terra a religião celeste. As simonias tinham proclamado um "novo cristianismo", que transformava a religião em indústria. O materialismo de Feuerbach pedia que se restituísse ao pão e ao vinho cotidianos do trabalho, da família e da comunidade humana a glória que a eucaristia cristã havia projetado no céu quimérico da religião. Os teóricos positivistas da Terceira República Francesa sonhavam com uma religião republicana da ciência e da nação. Mallarmé compartilhava suas preocupações. A poesia não é para ele um deleite de estetas, ela é a consagração da passagem humana que deve suceder à religião esvaída.
Mas não se trata de santificar a realidade terrestre do trabalho e da comunidade. O homem não é um animal político ou econômico, é um animal quimérico. O que se deve colocar acima da circulação de mercadorias e das opiniões é uma religião do artifício, reconhecido e glorificado como artifício. O "quase nada" do poema mallarmaico se inscreve na perspectiva dessa religião humana que consagra não o pão e o vinho comunitários, mas o puro gesto de elevação da quimera.
A questão do "silêncio" de Mallarmé ganha assim um outro sentido. Ela não é a experiência angustiada do nada no coração da linguagem. É de saber o que o poema deve ser para responder a essa exigência, qual deve ser o estatuto de sua palavra. E o problema não é separar a palavra pura da poesia da palavra impura do vulgar. É saber como definir o ato e o lugar da palavra próprios à poesia. Impõe-se um modelo ao pensamento de Mallarmé: o do teatro. "O palco", escreve ele, "é a majestosa abertura sobre o mistério, cuja grandeza estamos no mundo para encarar". Mas qual palavra pode corresponder a esse lugar?
Fascinado, como todo seu século, pela imagem do teatro grego da comunidade, ele é também, como todo seu século, tomado pela contradição. Pois o modo dominante da palavra poética, desde Vico e o romantismo, não é mais a palavra em ato da cena. É a palavra muda, inscrita no centro das coisas e cujo discurso uma outra palavra vem desenvolver: é a natureza, poema escrito em língua cifrada, de Kant e de Schelling: é o poema-oceano do antiquário de Balzac; o poema do esgoto de Hugo: o poema da vitrine da loja de novidades de Zola ou, mais tarde, o livro hieroglífico de Proust inscrito em nós.
A partir do romantismo, o modo dominante da palavra poética, e também o modo dominante da palavra eficaz, é o modo interpretativo: o que revela o enigma no centro das coisas e interpreta a linguagem secreta de um rosto, de uma cena, de um objeto, de uma impressão. A poesia tornou-se a diferença interior à prosa do mundo. Essa mutação, que consagrou a palavra romanesca e favoreceu o desenvolvimento do poema em prosa, banaliza, inversamente, essa palavra teatral que não é senão "palavra". Essa palavra nua, sem fundo duplo, precisará então ser complementada por um outro poder de expressão. Seu modelo é o drama musical wagneriano e o que ele anuncia: a obra de arte total, que apresente à comunidade a realidade sensível do próprio mito.
Mallarmé admira Wagner, mas recusa a dissipação da palavra na desordem dessa música que só é tão eloquente porque foi dispensada do exercício lúcido da palavra; e refuta que o poema vindouro seja uma nova forma de religião positiva, a encarnação do mito comunitário. O poema deve então precaver-se de dois perigos. De um lado, há o "poema da prosa", a crônica que revela a poesia escondida de toda realidade ordinária. Mas pôr a poesia em todo lugar é finalmente anular a especificidade de seu ato, torná-la semelhante à reportagem universal. De outro lado, há a grande encenação do ato poético. Mas essa o identifica com uma nova encarnação do verbo no corpo do povo.
É preciso então que o teatro se assente na página do livro, mas que também a página do livro faça com que as palavras falem duas vezes, pelo idealismo de seu sentido e pela materialidade de sua disposição. Daí a atenção dispensada por Mallarmé a todas as formas da linguagem sem palavras, da dança ou da pantomima. Daí a disposição da caligrafia em "Un Coup de Dés Jamais n'Abolira le Hasard" ("Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso"), em que as palavras se ordenam para fazer da página uma coreografia da idéia.
Pode-se considerar essa tentativa como um impasse. Mas não é, em todo caso, o impasse do formalismo. O problema de Mallarmé é tanto político quanto literário. Ele ressente o impasse do simbolismo: essa dissolução da poesia numa grande vida da "mente", em que a palavra se anula. Mas também pressente as núpcias próximas das nuvens simbolistas com as divindades futuristas da eletricidade, da velocidade e do povo. "Não vão", disse, "desbotar em não sei que diluição cor, eletricidade e povo o arcaico ultramarino dos céus". Era, de fato, o que muitos artistas iam acabar fazendo.


Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e um dos nomes centrais da filosofia francesa atual. É autor de "O Dissenso", "O Desentendimento" (Ed. 34) e "A Noite dos Proletários" (Companhia das Letras), entre outros.

Tradução de Mônica Cristina Correa.




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