São Paulo, domingo, 27 de setembro de 1998

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FILOSOFIA
Ensaísta francesa expõe as bases do pensamento do filósofo norte-americano Stanley Cavell
A aceitação do cotidiano

SANDRA LAUGIER
especial para a Folha

Em que ponto encontra-se hoje a filosofia nos Estados Unidos? Durante muito tempo ela foi dominada por uma visão unívoca, que lhe poupava indagar sobre a sua história, sobre a sua natureza. A filosofia analítica proclamava-se a-histórica e científica. De uns anos para cá, ela se interroga sobre seu passado e redescobre seus primeiros pensadores -Emerson e Thoreau- sob o impulso de Stanley Cavell, o primeiro a perguntar, em 1972, se existiria uma filosofia americana. A obra de Cavell está longe de ser uma rejeição das origens -pragmáticas, lógico-positivistas ou outras- do pensamento americano; seu objetivo, ao contrário, é fazer com que a América aceite -"acknowledge", para citar sua obsessão de reconhecimento- suas origens filosóficas. É a isso que se propõe Cavell: abordar, como diz o título de sua obra recentemente traduzida aqui, "Esta América Nova, Ainda Inabordável" (Ed. 34).
O interesse de Cavell por Emerson e Thoreau deveu-se também ao fato de que a obra deles, constantemente repudiada -pelo pragmatismo e depois pela filosofia analítica importada da Europa-, toca num elemento essencial do pensamento de Wittgenstein: o cotidiano, o comum, o ordinário. Wittgenstein e Austin, outro autor-fetiche de Cavell, caracterizam-se pelo senso do cotidiano, pelo exame incessante de detalhes de nossos usos da linguagem, pela atenção ao que é trivial, negligenciável, "missable, dismissable", repetitivo, sem sobressaltos.
Essa atenção ao comum, reivindicada por Emerson como uma declaração de independência em relação ao Velho Mundo, torna-se em Cavell o fio condutor de um novo projeto filosófico, que não se inscreve em nenhuma das duas tradições (anglo-americana e franco-germânica, ou analítica e continental, com perdão do esquematismo) que dominam nosso século 20, mas situa-se entre elas. Remontar, com Austin e Wittgenstein, ao cotidiano é justamente tentar pensar (n)a fratura entre as duas tradições -não para conciliá-las, absolutamente, mas para consolar-se dela, bem como da descoberta que, em Emerson, abre caminho ao ceticismo: "Muito triste essa descoberta de que existimos, mas já é tarde para poder modificá-la". A única resposta está diante de nós, a nossos pés, no cotidiano.

O outro
Essa descoberta do cotidiano marcou as duas primeiras obras de Cavell ("Must We Mean What We Say?" e "The Claim of Reason"), que foram sentidas como um novo alento na época de suas publicações (1969 e 1979). Cavell, ao diferenciar-se explicitamente da tradição analítica, trata de filósofos, de textos, e não de problemas ou de argumentos. "The Claim of Reason", por exemplo, explora Wittgenstein; "Esta América Nova, Ainda Inabordável", Emerson.
Toda sua obra, porém, é guiada por um fio condutor: o ceticismo. Segundo Cavell, o ceticismo, em sua forma filosófica clássica, "representa" e mascara uma incapacidade ou uma recusa de conhecer -e reconhecer- o outro, que é também uma incapacidade de entrar em relação com o mundo. Cavell propõe, assim, uma nova leitura de Wittgenstein, mas também de toda a tradição cética moderna, de Montaigne a Descartes passando por Shakespeare, como mostra a verdade do ceticismo, ou seja, a tragédia: nossa recusa de reconhecer o outro.
O ceticismo, sendo a recusa do saber, a ruptura do contato com o mundo e a linguagem comum, não pode, portanto, ser superado por um novo conhecimento ("knowledge"). A única resposta ao ceticismo seria o reconhecimento ("acknowledgement"), a aceitação da finitude e da repetição, que Cavell denomina o cotidiano, o ordinário. Daí a insistência de Cavell na linguagem comum e a posição central que ela ocupa em Austin e Wittgenstein: não para o fim de uma análise da linguagem, mas de uma reapropriação da linguagem como minha (e nossa), e portanto de uma nova definição do sujeito por intermédio da problemática do ceticismo. A linguagem comum permite, assim, a reinvenção da subjetividade em termos de reapropriação da voz comum.

Transcendentalismo e cinema
Um tema central de Cavell é o de que a filosofia sempre pressupôs (até Austin e Wittgenstein) o cotidiano (a linguagem comum, a vida comum) como seu outro, de quem se devia distanciar. E tal cotidiano, que é a resposta ao ceticismo, onde estaria ele, afinal? Cavell tem duas respostas: no transcendentalismo (Emerson) e no cinema.
Isso levou Cavell a refletir sobre a comédia americana dos anos 30, chamada por ele de "comédia de novo casamento" ("Philadelphia Story", "Adam's Rib"), em "A Busca da Felicidade". Nesses filmes, a intenção básica da intriga não é unir o casal central, mas repô-lo junto ou reuni-lo mais uma vez. É esse esquema de reencontros e repetições que estrutura todos esses filmes, como se o importante fosse superar algo como o ceticismo e lograr estabelecer uma relação com o outro perdido.
As comédias de novo casamento podem ser definidas como comédias do cotidiano, pois mostram a vida e os diálogos comuns de um casal, que revelam o meio de superar a separação, e portanto o ceticismo. Emerge assim uma solução ou uma resposta "feliz" e positiva à questão -trágica- do ceticismo: como se o cinema pudesse, no sentido pleno do termo, domesticar o terror cético, fazer reconhecer a realidade e a fatalidade da separação ("separateness"), convertendo-as em repetição feliz e desejada do cotidiano.
Tal resposta ao ceticismo já se achava implícita, segundo Cavell, em Thoreau e Emerson, aos quais Wittgenstein nos confere acesso. Em "Walden", Thoreau inventou uma filosofia da vida comum, descrevendo a sua vida nos mínimo detalhes e mostrando aos poucos, de forma imanente a esse cotidiano, o sublime da repetição dos dias e das noites. Nada há de misterioso, de indizível: as coisas que cremos inefáveis, para Thoreau, já estão ditas, estão diante de nós. Em Emerson há, igualmente, uma resposta ao ceticismo, primeiro pelo conceito de autoconfiança ("self reliance"), depois por sua reinvenção do conceito de experiência ("experience"), que mostra a ambiguidade do termo "transcendentalismo".

Um neocético
Na verdade, não se trata de uma filosofia da imanência que repõe todas as coisas no plano do cotidiano. O jogo entre transcendência e imanência é típico de Cavell, um neocético que interpreta Wittgenstein à luz de Emerson, mas também Nietzsche (que retomou várias passagens e temas de Emerson) ou mesmo Heidegger. Seria possível, assim, reler a história da filosofia do século 20 e reinterpretar a cisão Wittgenstein-Heidegger à luz de uma dupla filiação emersoniana.
Vê-se, para finalizar, que não se trata, para Cavell, de redescobrir ou reivindicar uma filosofia americana autêntica. Herdar o transcendentalismo e Wittgenstein é renunciar à busca de uma América primeva. O pensamento de Thoreau e Emerson já é um pensamento de imigração, a exemplo do de Cavell, filho de imigrantes poloneses. Encontrar as suas raízes não é forçosamente instalar-se em alguma parte, mas descobrir o que há em você de estrangeiro, de imigrante. É essa definição da América pela ausência de raízes e de fundamentos -ela só existe em sua descoberta- que dá sentido à empreitada de Cavell e a diferencia radicalmente do pensamento de Heidegger. Esta é a lição de Cavell, para além das inúteis polêmicas sobre a relação ou a rivalidade entre as filosofias continental ou anglo-saxônica.
"Como uma filosofia que tem suas raízes na língua, na geografia e nas aspirações de uma cultura pode pretender ultrapassar suas fronteiras, seus limites? Se a filosofia não tem de reivindicar os privilégios (nem as abnegações) das ciências da natureza, como ela espera transgredir seus signos nacionais?", ele indagou recentemente. A resposta não se acha no relativismo nem no universalismo, mas simplesmente na esperança, para a filosofia, "de sentir-se em casa, simultaneamente, em toda parte e em lugar algum".


Sandra Laugier é professora da Universidade d'Amiens (França) e tradutora da obra de Cavell para o francês.
Tradução de José Marcos Macedo.



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