|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FILOSOFIA
Ensaísta francesa expõe as bases do pensamento do filósofo norte-americano Stanley Cavell
A aceitação do cotidiano
SANDRA LAUGIER
especial para a Folha
Em que ponto encontra-se hoje a
filosofia nos Estados Unidos? Durante muito tempo ela foi dominada por uma visão unívoca, que lhe
poupava indagar sobre a sua história, sobre a sua natureza. A filosofia analítica proclamava-se
a-histórica e científica. De uns
anos para cá, ela se interroga sobre
seu passado e redescobre seus primeiros pensadores -Emerson e
Thoreau- sob o impulso de Stanley Cavell, o primeiro a perguntar,
em 1972, se existiria uma filosofia
americana. A obra de Cavell está
longe de ser uma rejeição das origens -pragmáticas, lógico-positivistas ou outras- do pensamento americano; seu objetivo, ao
contrário, é fazer com que a América aceite -"acknowledge", para citar sua obsessão de reconhecimento- suas origens filosóficas.
É a isso que se propõe Cavell:
abordar, como diz o título de sua
obra recentemente traduzida aqui,
"Esta América Nova, Ainda Inabordável" (Ed. 34).
O interesse de Cavell por Emerson e Thoreau deveu-se também
ao fato de que a obra deles, constantemente repudiada -pelo
pragmatismo e depois pela filosofia analítica importada da Europa-, toca num elemento essencial do pensamento de Wittgenstein: o cotidiano, o comum, o ordinário. Wittgenstein e Austin,
outro autor-fetiche de Cavell, caracterizam-se pelo senso do cotidiano, pelo exame incessante de
detalhes de nossos usos da linguagem, pela atenção ao que é trivial,
negligenciável, "missable, dismissable", repetitivo, sem sobressaltos.
Essa atenção ao comum, reivindicada por Emerson como uma
declaração de independência em
relação ao Velho Mundo, torna-se
em Cavell o fio condutor de um
novo projeto filosófico, que não se
inscreve em nenhuma das duas
tradições (anglo-americana e
franco-germânica, ou analítica e
continental, com perdão do esquematismo) que dominam nosso
século 20, mas situa-se entre elas.
Remontar, com Austin e Wittgenstein, ao cotidiano é justamente tentar pensar (n)a fratura entre
as duas tradições -não para conciliá-las, absolutamente, mas para
consolar-se dela, bem como da
descoberta que, em Emerson, abre
caminho ao ceticismo: "Muito
triste essa descoberta de que existimos, mas já é tarde para poder
modificá-la". A única resposta está diante de nós, a nossos pés, no
cotidiano.
O outro
Essa descoberta do cotidiano
marcou as duas primeiras obras
de Cavell ("Must We Mean What
We Say?" e "The Claim of Reason"), que foram sentidas como
um novo alento na época de suas
publicações (1969 e 1979). Cavell,
ao diferenciar-se explicitamente
da tradição analítica, trata de filósofos, de textos, e não de problemas ou de argumentos. "The
Claim of Reason", por exemplo,
explora Wittgenstein; "Esta América Nova, Ainda Inabordável",
Emerson.
Toda sua obra, porém, é guiada
por um fio condutor: o ceticismo.
Segundo Cavell, o ceticismo, em
sua forma filosófica clássica, "representa" e mascara uma incapacidade ou uma recusa de conhecer
-e reconhecer- o outro, que é
também uma incapacidade de entrar em relação com o mundo. Cavell propõe, assim, uma nova leitura de Wittgenstein, mas também
de toda a tradição cética moderna,
de Montaigne a Descartes passando por Shakespeare, como mostra
a verdade do ceticismo, ou seja, a
tragédia: nossa recusa de reconhecer o outro.
O ceticismo, sendo a recusa do
saber, a ruptura do contato com o
mundo e a linguagem comum,
não pode, portanto, ser superado
por um novo conhecimento
("knowledge"). A única resposta
ao ceticismo seria o reconhecimento ("acknowledgement"), a
aceitação da finitude e da repetição, que Cavell denomina o cotidiano, o ordinário. Daí a insistência de Cavell na linguagem comum e a posição central que ela
ocupa em Austin e Wittgenstein:
não para o fim de uma análise da
linguagem, mas de uma reapropriação da linguagem como minha (e nossa), e portanto de uma
nova definição do sujeito por intermédio da problemática do ceticismo. A linguagem comum permite, assim, a reinvenção da subjetividade em termos de reapropriação da voz comum.
Transcendentalismo e cinema
Um tema central de Cavell é o de
que a filosofia sempre pressupôs
(até Austin e Wittgenstein) o cotidiano (a linguagem comum, a vida comum) como seu outro, de
quem se devia distanciar. E tal cotidiano, que é a resposta ao ceticismo, onde estaria ele, afinal? Cavell
tem duas respostas: no transcendentalismo (Emerson) e no cinema.
Isso levou Cavell a refletir sobre
a comédia americana dos anos 30,
chamada por ele de "comédia de
novo casamento" ("Philadelphia
Story", "Adam's Rib"), em "A
Busca da Felicidade". Nesses filmes, a intenção básica da intriga
não é unir o casal central, mas repô-lo junto ou reuni-lo mais uma
vez. É esse esquema de reencontros e repetições que estrutura todos esses filmes, como se o importante fosse superar algo como o
ceticismo e lograr estabelecer uma
relação com o outro perdido.
As comédias de novo casamento
podem ser definidas como comédias do cotidiano, pois mostram a
vida e os diálogos comuns de um
casal, que revelam o meio de superar a separação, e portanto o ceticismo. Emerge assim uma solução
ou uma resposta "feliz" e positiva à questão -trágica- do ceticismo: como se o cinema pudesse,
no sentido pleno do termo, domesticar o terror cético, fazer reconhecer a realidade e a fatalidade
da separação ("separateness"),
convertendo-as em repetição feliz
e desejada do cotidiano.
Tal resposta ao ceticismo já se
achava implícita, segundo Cavell,
em Thoreau e Emerson, aos quais
Wittgenstein nos confere acesso.
Em "Walden", Thoreau inventou uma filosofia da vida comum,
descrevendo a sua vida nos mínimo detalhes e mostrando aos poucos, de forma imanente a esse cotidiano, o sublime da repetição dos
dias e das noites. Nada há de misterioso, de indizível: as coisas que
cremos inefáveis, para Thoreau, já
estão ditas, estão diante de nós.
Em Emerson há, igualmente, uma
resposta ao ceticismo, primeiro
pelo conceito de autoconfiança
("self reliance"), depois por sua
reinvenção do conceito de experiência ("experience"), que mostra a ambiguidade do termo
"transcendentalismo".
Um neocético
Na verdade, não se trata de uma
filosofia da imanência que repõe
todas as coisas no plano do cotidiano. O jogo entre transcendência e imanência é típico de Cavell,
um neocético que interpreta Wittgenstein à luz de Emerson, mas
também Nietzsche (que retomou
várias passagens e temas de Emerson) ou mesmo Heidegger. Seria
possível, assim, reler a história da
filosofia do século 20 e reinterpretar a cisão Wittgenstein-Heidegger à luz de uma dupla filiação
emersoniana.
Vê-se, para finalizar, que não se
trata, para Cavell, de redescobrir
ou reivindicar uma filosofia americana autêntica. Herdar o transcendentalismo e Wittgenstein é
renunciar à busca de uma América primeva. O pensamento de
Thoreau e Emerson já é um pensamento de imigração, a exemplo do
de Cavell, filho de imigrantes poloneses. Encontrar as suas raízes
não é forçosamente instalar-se em
alguma parte, mas descobrir o que
há em você de estrangeiro, de imigrante. É essa definição da América pela ausência de raízes e de fundamentos -ela só existe em sua
descoberta- que dá sentido à empreitada de Cavell e a diferencia
radicalmente do pensamento de
Heidegger. Esta é a lição de Cavell,
para além das inúteis polêmicas
sobre a relação ou a rivalidade entre as filosofias continental ou anglo-saxônica.
"Como uma filosofia que tem
suas raízes na língua, na geografia
e nas aspirações de uma cultura
pode pretender ultrapassar suas
fronteiras, seus limites? Se a filosofia não tem de reivindicar os
privilégios (nem as abnegações)
das ciências da natureza, como ela
espera transgredir seus signos nacionais?", ele indagou recentemente. A resposta não se acha no
relativismo nem no universalismo, mas simplesmente na esperança, para a filosofia, "de sentir-se em casa, simultaneamente,
em toda parte e em lugar algum".
Sandra Laugier é professora da Universidade
d'Amiens (França) e tradutora da obra de Cavell
para o francês.
Tradução de José Marcos Macedo.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|