São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Habitamos um discurso e uma argumentação cujo critério é a investigação honesta, disposta a relativizar tudo, a cair nos próprios alçapões e dar nome às contradições

O DRAMA ESSENCIAL

Folha Imagem
O poeta e escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade em foto de 1978



DE "ALGUMA POESIA" (1930) A "FAREWELL", LIVRO PÓSTUMO DE 1996, DRUMMOND CONSTRUIU UMA OBRA PROFUNDAMENTE DIALÉTICA, PERCORRIDA PELAS TENSÕES ENTRE O ELEVADO E O COTIDIANO, VIDA E MORTE, IDEALISMO E MATERIALISMO


por Alcides Villaça

A compreensão da poesia de Drummond pede o reconhecimento do eixo básico de tensões, no qual ela se sustenta em seus mais variados movimentos. Tal reconhecimento é delicado e sujeito a algum reducionismo, já que pretende distinguir o que seria permanente em meio às múltiplas polarizações de atitudes, temas, humores e estilos do poeta. De "Alguma Poesia" (1930) a "Farewell" (póstumo, 1996), que marca drummondiana se inscreve nos poemas, como uma espécie de assinatura inequívoca? Quem fala em "eixo de tensões" dá de barato a inclinação dramática da personalidade do poeta e as oscilações que se realizam em sua linguagem; mas que específico drama em movimento anima essa voz moderna, entre as mais intensas da poesia do século 20? Uma sintética e sugestiva formulação desse drama essencial já está, como que num prenúncio para a obra toda, nestes versos do "Poema de Sete Faces", que abre "Alguma Poesia": "A tarde talvez fosse azul,/ não houvesse tantos desejos". Entre um talvez e um se, há espaço para expressar tanto a aspiração quanto o desalento do poeta, diante do fato objetivo. Esse compromisso simultâneo com os fortíssimos apelos da vida material e com as expectativas intemporais dá compasso aos movimentos básicos da arte de Drummond.

Horizonte mítico
A figuração de um absoluto tinge de azul a tarde, horizonte mítico contra o qual se movem os tantos desejos, que turvam, perturbam ou negam aquele teimoso e longínquo horizonte. O critério idealizante, base da atitude contemplativa, e os desejos da vida, desde a origem mais determinados e particulares, traçam uma dialética entre o alto desejo de uma experiência plena e suas quedas no chão prosaico que, uma vez tocado, dá novas razões de impulso, com o efeito de novos tombos. A dialética é irretocável, pois, nessa ordem a um tempo simbólica e vivencial, o azul absoluto e os desejos históricos obrigam-se ao movimento, são critérios para a refração do mundo empírico na consciência lírica e vice-versa. A "tarde azul" não é apenas um mito afetivo que se projeta no horizonte; é também uma ordem racional, que aspira à inteligência sensível e absoluta do mundo. Os "tantos desejos" contam por si mesmos a história do indivíduo, que inicia seu caminho pelas experiências insatisfeitas do "gauche" no mundo torto, que se move direta ou obliquamente por impulsos políticos, que se internaliza nas ironias dissolventes, que sonda sem complacência as fundas raízes de origem, que investiga os limites da vida diante da morte.

Impulso rasteiro
A tarde azul se chama também "aurora", "arco", "tarde de maio", "áureos tempos", "mito", "amor", "rosa", "aliança", "Orfeu", "sonho", postulando problemáticas afirmações, das amorosas às políticas. Já os desejos, quase inumeráveis, revelam-se no crivo negativo das experiências: a cada poema, nomeia-se o impulso rasteiro, o medo específico, o desastre íntimo, a prova de imperfeição, o encontro impossível, a máquina perdida, a melancólica mercadoria, a desistência culposa, a mão suja, o remorso histórico, as raízes arrancadas, o objeto inútil, a inútil migração. O que move o elefante, no conhecido poema de "A Rosa do Povo", é a "procura de amigos" na ordem plena de "um mundo mais poético/ onde o amor reagrupa/ as formas naturais"; mas o desejo dessa busca ocorre, de fato, num "mundo enfastiado", e o delicado elefante é também tosco e desmontável. Já em "Um Boi Vê os Homens", a solidez superior instala-se, blindada, na natureza do animal que rumina estático sua própria verdade, lamentando os tantos desejos dos homens que "correm de um para outro lado, sempre esquecidos/ de alguma coisa". O contraste entre aquele elefante e este boi ilumina didaticamente o antagonismo complementar desses dois grandes livros de Drummond, bem como ajuda a compreender a dialética de sempre, armada entre as variações do mesmo azul teimoso e as muitas formas de perdê-lo, a cada tentativa de apreensão. Como efeito na leitura, os que nos identificamos com essa poesia cósmico-mineira passamos a contar com a possibilidade sempre atualizada, armada a cada poema, de alguma revelação fundamental, de um azul que caia em nosso colo por força da busca obsessiva do poeta, que traduz a nossa. No curso de sua inteligência, ativada em ritmos e imagens tão envolventes, habitamos um discurso e uma argumentação cujo critério é a investigação honesta, disposta a interrogar e a interrogar-se, a relativizar tudo, a cair nos próprios alçapões e dar nome às contradições. Mas atenção: trata-se sempre de poesia. A qualidade desses ritmos e dessas imagens não nos transporta para um patamar metafísico, mas para a consequência dos "tantos desejos", que está na consolação promovida por toda beleza fundamental. Entenda-se: numa poesia dialética como a de Drummond, a consolação pode estar na expressão mesma do desconsolo, vantagem paradoxal da arte superior. À falta do absoluto, chamá-lo pelo nome é provocá-lo entre as coisas, é associar o rito mágico ao impulso investigativo do pensamento simbólico. "Onde não há jardim, as flores nascem de um secreto investimento em formas improváveis." À falta do azul, há a vingança de cantar todos os desejos.

Fim da história
Em "Farewell", sua despedida, o poeta comparece com a especial autoridade de quem dá por encerrada sua história. Em meio ao caleidoscópio dos temas e motivos revisitados, o idealismo da tarde azul enfrenta a prova decisiva da morte. Para não sucumbir a ela, esse idealismo é recolhido pelo poeta e guardado no bolso: "Oh! se te amei, e quanto,/ quer dizer, nem tanto assim". A última esperteza do mineiro está em trazer o azul e agora em definitivo para a limitação de todo desejo. Poupado da morte, o azul passeia entre as nuvens e fica para outra vez.

Alcides Villaça é professor de literatura brasileira na USP.


Texto Anterior: Capa 27.10
Próximo Texto: Reinvenções da musa
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.