São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O (DES)LEITOR DE "RAÍZES DO BRASIL"


POETA INCORPOROU AO EIXO CENTRAL DE SUA OBRA O PARADOXO QUE NORTEIA O CLÁSSICO DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA, O DE SENTIR-SE ESTRANGEIRO EM SEU PRÓPRIO PAÍS


As edições de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, apresentam mudanças no mínimo intrigantes, se não enigmáticas. Na primeira edição (1936), o livro principia com um otimismo que certamente surpreenderá o leitor: "Todo estudo compreensivo da sociedade brasileira há de destacar o fato verdadeiramente fundamental de constituirmos o único esforço bem-sucedido, em larga escala, de transplantação da cultura européia para uma zona de clima tropical e subtropical. Sobre território que, povoado com a mesma densidade da Bélgica, chegaria a comportar um número de habitantes igual ao da população atual do globo, vivemos uma experiência sem símile" (grifos meus). A experiência brasileira, portanto, é sem igual porque exitosa. Na verdade, escuta-se nesse trecho um eco do parágrafo de abertura de "Casa-Grande & Senzala" (1933): "Quando em 1532 se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um século inteiro de contatos dos portugueses com os trópicos; de demonstrada na Índia e na África sua aptidão para a vida tropical".

Uma mudança radical
Nas duas passagens, celebra-se a vocação colonizadora portuguesa. De imediato, vale lembrar que "Raízes do Brasil" foi o primeiro volume da "Coleção Documentos Brasileiros", na época coordenada por Gilberto Freyre para a José Olympio. Freyre inclusive escreveu o prefácio do livro. Entretanto na edição definitiva (1967), enriquecida com importante prefácio de Antonio Candido, "O Significado de "Raízes do Brasil'", o parágrafo de abertura conheceu uma mudança radical: "A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências". A modificação não poderia ser maior, já que, neste caso, a experiência histórica brasileira parece condenada ao descompasso entre as idéias e seu lugar. Tanto nas primeiras edições quanto na definitiva, segue-se, então, a célebre passagem: "Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra". Na primeira edição, somente não havia o "hoje", o resto da frase é idêntico. Como é possível que não se tenha discutido com cuidado uma divergência tão flagrante? Os brasileiros tiveram uma experiência única porque bem-sucedida, mas, ao mesmo tempo, como resultado, vivem exilados em seu próprio país. Esse paradoxo tem sido ignorado pelos leitores de Sérgio Buarque. Mas talvez tenha atraído um (des)leitor especial: Carlos Drummond de Andrade transformou em matéria poética o paradoxo que Sérgio Buarque expressou, mas infelizmente suprimiu, na edição definitiva de seu ensaio.

Estratégias de revisão
As mudanças efetuadas nas sucessivas edições de "Raízes do Brasil" possuem duas orientações básicas. De um lado, o autor acrescentou notas, com o objetivo de enriquecer seu argumento com dados. Tratava-se do historiador relendo o livro de estréia. De outro, alterou ou simplesmente eliminou passagens nas quais celebrava o trabalho de Gilberto Freyre. Tratava-se do intelectual defendendo suas convicções. Numa leitura menos cautelosa, o teórico da cordialidade pagava tributo à própria criação, revelando um Sérgio Buarque cordial, à revelia do lúcido autor de "Raízes do Brasil".
Mais interessante, entretanto, será sugerir que Sérgio Buarque identificou um fenômeno importante, mas cuja formulação mais aguda devemos a uma série de poemas de Drummond; poemas que duvidam com bom humor da idéia de nacionalidade e mais ainda da idéia de "raízes". Recordemos os versos finais de "Hino Nacional", em "Brejo das Almas": "O Brasil não nos quer! Está farto de nós!/ Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil./ Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?". Na verdade, Sérgio Buarque não inovou com a célebre frase. Em "Os Sertões" (1902), Euclides da Cunha já empregara a idéia do exílio, seja como imagem metafórica do desconhecimento dos brasileiros do litoral em relação aos brasileiros do sertão, os habitantes da terra ignota, seja como figura paradoxal das tropas oficiais como mercenárias no próprio país. Num ensaio posterior, "Terra sem História (Amazônia)", publicado em "À Margem da História" (1909), Euclides inclusive antecipara a fórmula: "Naqueles lugares, o brasileiro salta: é estrangeiro: e está pisando terras brasileiras". O paradoxo anotado por Sérgio Buarque -buscar raízes e descobrir-se estrangeiro no próprio país- constitui um dos eixos da poética drummondiana relativa à idéia de Brasil. Tal paradoxo tem estimulado certa tradição intelectual que produziu clássicos para descobrir o "Brasil", embora termine às voltas com uma série de "ausências". Assim, costuma-se definir o país pelo que "ele" não foi (moderno, democrático), pelo que deixou de ser (igualitário, iluminista), ou pelo que ainda não é: nação de primeiro mundo, potência mundial. Daí sermos eternamente o "país do futuro".


Sérgio Buarque identificou um fenômeno importante, mas cuja formulação mais aguda devemos a uma série de poemas de Drummond


A perda deliberada da memória
Já no caso de Drummond, a ausência se transforma ironicamente numa perda deliberada da memória oficial. Em "Europa, França e Bahia", o poeta sofre de bem-vinda amnésia cultural: "Como era mesmo a "Canção do Exílio'?/ Eu tão esquecido de minha terra.../ Ai terra que tem palmeiras/ onde canta o sabiá!". Aliás, e antes mesmo de Gonçalves Dias, tornar o exílio condição de poesia, em lugar de impasse civilizatório, tem sido uma tônica na literatura brasileira. Gonçalves de Magalhães, num poema cujo título vale por um ensaio, "O Dia 7 de Setembro em Paris", reunido em "Suspiros Poéticos e Saudades" (1836), inaugurou o jogo com os advérbios de lugar "lá" e "aqui", a fim de sugerir o exílio como a base do romantismo nos trópicos. É como se o brasileiro somente concebesse o próprio através do alheio. Pelo contrário, Sérgio Buarque de Holanda optou por aplainar a edição definitiva de "Raízes do Brasil". É bem verdade que seu texto ganhou em coerência, mas também é inegável que o ensaio tornou-se menos intrigante. Ficamos, assim, somente desterrados. Mas por que não enfrentar o paradoxo apresentado na primeira edição de "Raízes do Brasil", supondo que o exílio talvez apresente um potencial a ser mais bem explorado reflexivamente?

Fenomenologia do brasileiro
O filósofo Vilém Flusser aceitou o desafio, propondo o brasileiro como o homem do futuro. Em "A Fenomenologia do Brasileiro", ele definiu a condição humana a partir do exílio, visto como situação inelutável. O filósofo é o exilado consciente de seu perpétuo nomadismo, e a filosofia se transforma literalmente num exercício peripatético. Ora, macunaímico, portanto "sem caráter", o brasileiro seria o habitante permanente da pátria-exílio: a residência do porvir.
No tocante à obra de Sérgio Buarque, devemos recuperar sua contradição. De fato, a experiência histórica brasileira engendrou uma interação bem-sucedida, marcada pelo predomínio do afeto, pela proximidade física entre contrários, enfim, por um alto grau de porosidade social entre pólos opostos. Tal porosidade, porém, não se traduz em justiça social, distribuição de riquezas, ou seja, acesso à plena cidadania. Por isso, os alarmantes índices de violência e de pobreza demonstram que muitos brasileiros são estrangeiros no próprio país ou, no "máximo", são cidadãos de segunda classe.
Podemos, pois, enriquecer a leitura de "Raízes do Brasil" através da poética de Drummond. Recordando, por exemplo, os versos de "Canto Brasileiro", do livro "As Impurezas do Branco": "Meu país, essa parte de mim fora de mim/ constantemente a procurar-me [..."". Nesse caso, o desencontro ideológico se revela mais produtivo que a coerência textual.

João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj) e organizador de "As Máscaras da Mímesis" (Record) e "Interseções" (Imago).


Texto Anterior: + cronologia
Próximo Texto: + obras
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.