São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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Ponto de fuga

A maior emoção e a mais natural possível

Jorge Coli
especial para a Folha

É preciso tempo. Não porque elas sejam muito grandes. Algumas cabem num pedaço de papel diminuto. Mas bastam alguns segundos para que o olhar seja capturado e permaneça. A verdade dessas obras é inexplicável e hipnotiza. São gravuras de Rembrandt, ora expostas no Centro Cultural Banco do Brasil/SP. Há muito tempo, Eugène Fromentin caracterizou a natureza particular do claro-escuro: concisa e elíptica, densa de surpresas, entremeada de subentendidos, ela incorpora o incerto, o indefinido, o infinito. Nas mãos de Rembrandt, o claro-escuro é a matéria da sombra, que ele faz espessa ou transparente, acentuando ou reduzindo a força da luz.
Em vez dos contrastes, emprega transições miraculosas. Refaz assim o mundo e veste-o de um realismo que atinge a truculência. Homens e mulheres do povo urinam; um camponês grotesco, no trabalho da terra, grita: "Está frio". Em outra gravura, um parceiro retruca: "Não, não está". Uma negra exibe seu corpo nu, de costas, alongado como a Vênus de Velázquez.
Os temas mais nobres, extraídos da Bíblia ou da mitologia, apresentam o mesmo imediatismo realista. A mulher de Putifar agarra José, exibindo seu ventre inchado de lascívia obscena. Na descida da cruz, Cristo desmonta-se, em contorções onde a pele enruga e o grotesco se faz trágico. Nunca imagem nenhuma carregou tanta verdade humana. Rembrandt rompe com receitas e convenções, para, como escreveu uma vez, obter "a maior emoção e a mais natural possível".

Fim - A mostra "Rembrandt e a Arte da Gravura" deve permanecer no CCBB de São Paulo até o dia 3 de novembro apenas. Quem não foi ver, corra. Trouxe tiragens de época, magníficas, cuja qualidade nenhuma reprodução mantém. Estão perfeitamente iluminadas. Compõem um percurso claro e articulado. Às obras de Rembrandt foram acrescentadas outras, de colaboradores, discípulos, seguidores e também de alguns nomes imensos, como Callot ou Picasso, que, de algum modo, se ligaram ao grande mestre.

Descaso - A idéia é extraordinária. Tomar algumas obras maiores do cinema, de Truffaut, Fellini, Lang, os Irmãos Marx, Buster Keaton, entre outros, em cópias novas; distribuí-las em várias cidades (São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Campinas, Ribeirão Preto), projetá-las com excelente qualidade em salas de grande afluência, fazendo cada título permanecer uma semana. Este é o projeto que está sendo realizado pelo Festival Marlboro de Cinema. Pena que a divulgação seja precária, muito aquém do que seria merecido: nenhum destaque, informações minguadas, tanto sobre a natureza dos filmes quanto sobre a programação no seu todo, incluindo aqui as datas de exibição.

Colaboração - Antoine Seel envia comentários sobre o filme "Rollerball" (2002), de John McTiernan. Aqui, um excerto: "Os jogadores se entregam ao público, eles oferecem também a revolta, ou revolução, uma tomada de consciência de classe (o filme todo confere carnes, sentimentos, aos lugares-comuns marxistas). O jogo não é uma alienação, panem et circensis, um derivativo, é uma jubilação, uma prática da infância em nós (como mostram as primeiras corridas), é uma alegria comum a todos, salvo àqueles que preferem o dinheiro: os malvados. O jogo fascina: as cores, os sons, a velocidade dos corpos nas pistas de reflexos e de plástico. Na velocidade, os sentimentos de identificação se esgarçam, se fragmentam, se perdem quase, mas se reencontram num plano mais amplo: entre os espectadores em geral (nós) e os jogadores em geral. Não há morbidez, não há desejo de ver os corpos se esmagarem, pois o espetáculo (alegria, medos, os sentimentos do espetáculo) ganha tudo. Não há também "contaminação" da realidade no jogo. É claro, seria possível ver, em "Rollerball", uma justificação da política norte-americana que busca o controle da Ásia Central. EUA opostos à Rússia (o antigo colonizador); humanismo contra máfia, já que a Rússia não passa de máfia nos filmes atuais. O ponto de vista não seria ilegítimo, mas faltaria o essencial, a alegria e humanidade do jogo".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br



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