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Ponto de Fuga
O bom selvagem 1
"Avatar" traz consigo o velho fascínio, que pertence à antropologia, mas é bem anterior a ela: o do paraíso que está no outro
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Vamos almoçar em Canudos!" e "Vamos jantar
em casa!". As duas frases, bem parecidas, são pronunciadas em situações idênticas. A primeira é uma exclamação do coronel Moreira César,
registrada por Euclydes da Cunha em "Os Sertões". César, retratado nesse livro como exemplo da estupidez militar histérica, lançou esse grito antes da
batalha contra os jagunços de
Canudos em que morreria.
A segunda é rosnada pelo coronel Miles Quaritch, não menos estúpido, não menos histérico e não menos militar, antes
do ataque contra Pandora, em
"Avatar", de James Cameron.
Quaritch também morre na
inesperada derrota.
Moreira César e Miles Quaritch têm outro ponto em comum: são personagens de duas
formidáveis criações épicas, o
livro e o filme.
Cameron decerto não leu
Euclydes da Cunha. Mas as
duas cenas são mais do que
apenas coincidentes. Fazem
parte de lembranças coletivas,
em eco. Remetem à resistência
daqueles que são mais frágeis
só em aparência diante de
exércitos muito poderosos.
É uma conjuntura que viaja
em idas e vindas, da história
para as artes: os EUA tiveram
fracassos militares semelhantes, dos quais o Vietnã é exemplar e "Apocalypse Now", seu
grande épico.
As gabolices retumbantes de
Moreira César e Miles Quaritch atualizam a versão, primordial e realista, de Leônidas
nas Termópilas: "Almocemos
como homens que jantarão nos
Infernos".
Cipós
Leônidas e seus espartanos:
um punhado de resistentes
contra o grande exército persa.
Daí o realismo da frase. César e
Quaritch, fortes e fanfarrões,
são inconscientes e antipáticos.
Ao contrário, os fracos, vítimas
potenciais, despertam sempre
solidariedade.
As enormes desproporções
militares pressupõem quase
sempre diferenças de cultura:
foi assim em Canudos e no
Vietnã, é assim entre os terráqueos e os na'vi de Pandora. Cameron insere em sua história
um projeto antropológico, chefiado pela dra. Grace Augustine, uma irresistível Sigourney
Weaver.
Há quem destrua, há quem
tente compreender. "Avatar"
traz consigo o velho fascínio,
que pertence à antropologia,
mas é bem anterior a ela: o do
paraíso que está no outro.
Quantos antropólogos, ao estudarem, não procuraram integrar seus próprios objetos? Entre tantos e tantos, o admirável
Curt Nimuendaju, abandonando seu sobrenome alemão por
um guarani e morrendo entre
os tucunas, na Amazônia.
Nimuendaju era fascinado
pela busca indígena e mítica do
paraíso, ou terra sem males.
Seu nome, ao que parece, pode
ser traduzido por "aquele que
encontrou seu lugar".
Ferro velho
James Cameron tem fascínio
pela fusão entre homem e máquina. Ela o levou aos dois "Exterminador do Futuro" [em
1984 e 1991]. A atração já estava
em "Xenogenesis", seu primeiríssimo curta-metragem, que
pode ser visto no YouTube. Ali
nascia o gigantesco soldado robô (em "Avatar" ironicamente
apresentado como um Golias
de aço sem cabeça).
Vasos comunicantes
Cameron também é atraído
pelas metamorfoses genéticas,
pelos mistérios biológicos: assim, seu "Aliens - O Resgate".
Em "Avatar" defrontam-se o
homem racional e militar,
cúmplice articulado da máquina, e o alienígena suave, que sabe conectar-se e sintonizar-se
com a natureza. Ou, ainda, o capitalista que calcula lucros e o
selvagem que intui e fusiona
com seu mundo.
Guerra entre o mecânico e o
orgânico, entre a insatisfação
insaciável e a plenitude bem-aventurada. Um maniqueísmo
que conserva sua verdade no
fato de que o primeiro termo se
esqueceu da possibilidade do
segundo.
jorgecoli@uol.com.br
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