São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2001

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+ brasil 501 d.C.

O século de ontem

Luiz Costa Lima

Organizado por Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva, "Catástrofe e Representação" (Editora Escuta) reúne dez ensaios de autores estrangeiros e nacionais e dois contos inéditos de Bernardo Carvalho e Modesto Carone. Todos têm por tema a mudança radical sofrida pela experiência e conceituação de representação na vida e pensamento do século 20. São páginas tão densas que o único modo de nos aproximarmos delas será buscar uma reflexão englobante. Apenas tomarei o notável ensaio de Shoshana Felman -na que julgo a primeira tradução brasileira dessa brilhante ensaísta- como guia, sem sequer lhe fazer justiça.
Se, sinteticamente, o livro tem por tema a reviravolta da representação, analiticamente há de se considerar a incorporação de outros termos: a experiência da catástrofe e a necessidade do testemunho. Nestes três termos, catástrofe, testemunho, representação, condensa-se a figura sombria do século. Mas o qualificativo diz muito pouco. Para dar-lhe o peso devido, será preciso criar uma constelação de passagens.
A primeira é da autoria de Jürgen Habermas: "Auschwitz mudou as bases para a continuidade das condições de vida na história". Acrescente-se a de Maurice Blanchot: "Toda história a partir de agora (depois de Auschwitz) será de antes de Auschwitz". A terceira é de Seligmann-Silva: "O campo de concentração é a realização única, hipertrofiada, da sociedade moderna com a sua onipresente experiência de choque". A quarta, de Geoffrey Hartman, que também suponho traduzido pela primeira vez: "A mídia nos tornou a todos co-espectadores involuntários das atrocidades apresentadas plasticamente e a cada hora". A última concerne à glosa de Cathy Caruth do conceito freudiano de trauma: "Resposta a um evento ou eventos violentos, inesperados ou arrebatadores, que não são inteiramente compreendidos quando acontecem, mas retornam mais tarde em flashbacks, pesadelos e outros fenômenos repetitivos".
O trauma, como dizem na introdução os organizadores, traz "o paradoxo de um conhecimento voltado para o que há de mais marcante e específico na experiência, mas fadado a perder a especificidade exatamente ao torná-la compreensível". Na ordem do simbólico, o trauma é um buraco negro. Ele nos deixa o dilema: ou somos engolidos pelo silêncio e a passividade que nos apagam ou o testemunhamos "como se apenas um trauma pessoal ou histórico (sangro, logo existo) pudesse nos vincular à vida" (Nestrovski). Só mediante constelação semelhante, "sombrio" pode qualificar o século 20. Seu sentido põe em cena um personagem específico: aquele que testemunha, cuja ferida ("sangro, logo existo") não cicatriza, isto é, não se estabiliza em conhecimento.
Por isso "sombrio" não concerne só ao que passou, mas aponta para o legado em que continuamos imersos. Mesmo por esses traços, sua representação não é idêntica ao que antes se entendia por representação. Mas poder-se-ia contestar: por mais doloroso que seja o que se diz, o processo a cumprir, a partir do trauma, é semelhante a qualquer processo cognitivo. Afinal, se a indagação não fracassa, não se chega por fim a um foco luminoso, que afasta trevas e incertezas? O que segue deve mostrar o engano.
Começo me perguntando: qual o uso costumeiro do termo "testemunho"? Que faz uma testemunha em um processo judicial? Seu papel consiste em declarar que viu ou ouviu determinada ação cominada por uma norma codificada. Ou seja, no sentido usual, o testemunho testemunha a infração de uma verdade codificada e com força de lei. Foi nessa acepção que ainda há poucas décadas se difundiu na América Latina a chamada literatura de "testimonio". Nela, o básico consistia na afirmação de que o texto em pauta comprovava a verdade de uma verdade ou sua transgressão.
Tratava-se de verdades incontestáveis -pertencemos a nações colonizadas, entre nós os pobres não têm direitos, a cada punhado de ricos correspondem centenas de milhares de miseráveis, só os espertos não têm um triste fim etc. A literatura de "testimonio" continuava o documentalismo de tamanho prestígio entre nós, no século 19, que, por ele, se definiu e, grosso modo, continuamos a definir o que seria a literatura. Como documento, a literatura testemunha(va) seu caráter de reduplicação e ilustração de uma verdade antes sabida (Machado, romancista do segundo reinado). Isso é tão conhecido que o leitor pode se perguntar qual a razão de repeti-lo. Mas, aqui, a redundância é funcional.
A retomada do testemunho no contexto contemporâneo modifica drasticamente o sentido dos termos. De imediato, porque o testemunho não explicita o conhecimento de uma ação infratora de uma verdade estável. Ao contrário, os fatos relatados contêm uma estranheza enceguecedora, mesmo para aquele que os enuncia. Ao passo que a experiência rotineira do testemunho consiste em "registrar eventos e relatar os fatos de um acontecimento histórico" (Felman), contra os quais se opunha uma lei, sua inserção histórica é agora inadequada.
Como diz Felman a propósito de "A Peste", de Camus, alegoria da dominação européia pelos nazis, a metáfora da história se tornou insuficiente. O narrador antes assume a figura de um "médico" que anuncia a extensão de um contágio. Mas a presença de um "médico" aqui indica a possibilidade de cura? Se assim fosse, o testemunho não teria novidade radical. Pois o circuito "peste médico cura" suporia que continuaríamos a dispor de uma verdade inquestionável (tal tratamento permitiria a volta à normalidade).
Contra essa hipótese, cabe lembrar os testemunhos de dois sobreviventes de Auschwitz: "Não estou entre os vivos, morri em Auschwitz e ninguém percebeu" (Charlotte Delbos). "Nós, sobreviventes, somos uma minoria anômala, além de exígua: somos aqueles que, por prevaricação, habilidade ou sorte, não tocamos o fundo" (Primo Levi). A testemunha sabe que fora contaminada por uma doença para a qual não há cura, mesmo porque carrega uma culpa que não a deixa ou ainda porque recusa a possibilidade pessoal de cura. Há, portanto, uma viragem radical dentro do testemunho: ele testemunha que se sabe tocado por uma doença cujo contrário não vislumbra. Mais bem dito: é a própria medicina que deixa de ser parâmetro. A medicina é substituída pela psicanálise.
De modo mais explícito: passa-se da afirmação de um critério estabilizador, concentrado em uma verdade, para a problematização da verdade. A testemunha testemunha a verdade-que-escapa. A verdade torna-se inacessível desde que acordamos. Eis a "testemunha inconsciente", cuja fala formula seu trauma. A fala exposta não visa a pôr em funcionamento a máquina da verdade, habilitando uma condenação ou ajudando uma cura, mas sim a criar, por sua própria expressão, um homólogo do que sabe, mas não entende.

Vivência do choque
A palavra reassume a opacidade que o pensamento operacional descartara como jogo de poetas. Eis o que Walter Benjamin antecipadamente chamara "vivência de choque". Ela se caracteriza por seu intimismo, por sua incapacidade de se converter em experiência que circula. A redução da vivência decorre de ela ter em seu horizonte uma verdade problemática ou enigmática -um buraco negro habita o que se sabe.


Se queremos um emblema para a educação mundial em prol da insensibilidade, não será difícil descobri-lo, ele está na cobertura televisiva de alguns anos atrás da Guerra do Golfo

À medida que entra em cena um saber-que-não-se-sabe, o testemunho se torna a expressão de um irrepresentável. A representação já não se cumpre pela figuração do que houve. A representação deixa de ser uma condensação luminosa, catártica, prazerosa. É antes diálogo entre sombras. A representação, ao contrário do clichê com que se costuma explicar a arte abstrata, não se torna impossível, mas lida com o impossível: a impossibilidade de converter a realidade em conceito e conhecimento.
A crença em tal conversão animara o projeto secular de cientificização do mundo. A ela corresponde nossa noção prosaica de testemunho. Ao mesmo tempo, porém, a desmedicalização que o advento da psicanálise supõe, a escrita subterrânea de Dostoiévski e Von Kleist, de Kafka e Celan, mostra tanto a inadequação das idéias majoritárias de arte e literatura como a premência de uma experiência de mundo que parta da problematicidade do que tomamos como inquestionável. O verso de Celan, "ninguém testemunha pelas testemunhas", implica que o testemunho supõe a "esperança de achar um testemunho para a testemunha" (Hartman). Um testemunho para a doença surda que atravessa a sociedade.
Contra isso, entretanto, o novo milênio se arma. Seus melhores argumentos estão na "sociedade administrada" -cada um sabe seu caminho e o mundo já é muito complicado para nos metermos nas tarefas dos outros-, na divisão dos saberes, com seus famosos especialistas, e na "anestesia psíquica", criada pela exposição multicolorida das catástrofes pela mídia.
Em comum, esses recursos operam contra a compreensão do que se deu nos campos de concentração. Sua síntese se mostra em nossa insensibilidade ante as catástrofes que se acumulam (as mais recentes estão em toda parte: aqui, nos Bálcãs ou na Palestina). Mas, se queremos um emblema para a educação mundial em prol da insensibilidade, não será difícil descobri-lo: ele está na cobertura televisiva de alguns anos atrás da Guerra do Golfo.
"Catástrofe e Representação" condensa o legado do "fim de um século um tanto pior do que os outros" (Nestrovski).

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.".


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