São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2007

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Ponto de fuga

Figuração e matéria

Depois da Segunda Guerra, a abstração se impôs; os pintores brasileiros foram forçados pelas convicções do tempo a se tornarem abstratos, ou o mais que pudessem

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O s pintores brasileiros que começam a amadurecer nos anos de 1930 ou 40 fazem, quase sempre, nesse início de carreira, retratos, naturezas-mortas e, sobretudo, paisagens. Em São Paulo, vários deles descobrem a poesia dos subúrbios, dos arrabaldes povoados por chácaras.
Quase nenhum se interessa pelas transformações urbanas da metrópole. Mas, na cultura artística do país, tão imaginária, tão pouco realista, para quem a paisagem nunca foi um gênero de importância, eles significaram uma bela exceção.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a abstração se impôs, hegemônica. Aqueles artistas foram, então, pressionados pelas convicções do tempo a se tornarem abstratos ou, pelo menos, o mais abstratos que pudessem. As obras deviam ter ar "moderno", dissolvendo as velhas representações.
A figuração surgia como coisa do passado. Para certos artistas, isso conduziu a um desastre; outros conseguiram, ao contrário, uma verdadeira renovação. Volpi, por exemplo, seguiu uma evolução poderosa, que terminou por reduzir suas imagens às bandeirinhas. Algumas são de qualidade excepcional, outras se ressentem da receita rotineira.
As retrospectivas desses artistas tomam, de hábito, o mesmo esquema, calcado em suas trajetórias. Quadros figurativos no início, tratados com um certo desdém: o artista "ainda" não chegou à abstração, embora "já" revele, aqui e ali, alguns indícios dela, como os monitores dessas mostras costumam explicar. Enfim, atinge-se o apogeu triunfante das belas formas sem sentido.

Fundamento
A mostra, organizada pelo Museu de Arte Contemporânea da USP, sobre Aldo Bonadei (1906-74) no Ibirapuera se encerra hoje. Ela é notável. As paisagens iniciais do pintor raramente se mostram como panorama. Bonadei vê de perto e ocupa toda a tela com volumes próximos, que não têm nada de mentais, no sentido de que não se contentam com as puras formas da geometria. Elas são construídas pela massa espessa da pintura, que nunca permite superfícies lisas ou coloridas por igual.
Depois desses começos, Bonadei empregou o tardo-cubismo muito corrente então, já bem assentado na cultura visual do século 20, e que dava aos artistas a impressão de serem modernos. Esse procedimento não altera muito seu interesse mais forte no essencial: a forma que emana de poderosa materialidade.
Bonadei não foi, de modo algum, tocado por qualquer idealismo. É, antes de tudo, um realista, fascinado pela magia do que é sólido, do que é densamente material. Até o fim conservou esse amor pela substância das coisas, tão presente também nas naturezas mortas de seu mestre Pedro Alexandrino (1856 - 1942).

Feitio
A exposição do MAC reuniu obras muito bem escolhidas e evitou o lugar-comum cronológico. O olhar cruza vários períodos e temas, para constatar as diferenças e, mais que tudo, por trás delas, a unidade forte. O catálogo transcreve um escrito de Emanoel Araújo, que sugere a coesão desse criador, para concluir enumerando seus múltiplos: "Mas houve um Bonadei que pintava e bordava roupas para sobreviver. Houve um Bonadei italiano que pintou Florença, e outro de Moema, que pintava paisagens ao ar livre, e um outro mais, o Bonadei da rua da Abolição. Houve também um Bonadei que pintava formas musicais. Houve ainda um outro, o pintor abstrato. Houve um Bonadei poeta e um Bonadei amante (este talvez o mais secreto dos Bonadeis). Todos eles pungentes, fortes e generosos."


jorgecoli@uol.com.br


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