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+ Memória
Às voltas com Bento Prado Jr.
O crítico Roberto Schwarz analisa a postura do filósofo paulista que morreu no último dia 12
ROBERTO SCHWARZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
N
os anos 60 e 70, a
resistência à ditadura deu projeção
extra-universitária a alguns professores de esquerda, permitindo
que, mais adiante, na hora da
abertura política, eles se candidatassem a cargos eletivos.
O exemplo inicial em São
Paulo foi Fernando Henrique
Cardoso, que se elegeu suplente de senador. O salto da faculdade de filosofia ao Parlamento, sem a passagem prévia pelo
liquidificador da política profissional, criava expectativas
altas e agitava os espíritos. O
hábito dos estudos e da discussão, a intimidade com as ciências sociais e com o marxismo
fariam diferença no governo?
Bento Prado na ocasião inventou um slogan para divertir
os amigos: "Quem sabe escrever, sabe governar; Bento Prado para senador". A alegria foi
geral na faculdade. A fórmula
peremptória fazia rir por muitos lados. Sua inverdade clamorosa era uma piada, na verdade
uma aula pela via paródica, oswaldiana ou brechtiana, sobre
as presunções da oligarquia
num país de alfabetização precária. Havia também o tempero biográfico. A inteligência incomum de Bento era uma unanimidade, assim como a sua
inapetência para lidar com as
complicações da vida prática.
Além disso, ele era o descendente filósofo de uma família
de fazendeiros quebrados pela
Crise de 29, aos quais o tom autoritário -tão bem imitado-
pareceria natural. Enfim, se
havia alguém que não aspirava
ao mando nem queria ser mandado era ele.
A malícia das malícias, entretanto, não estava aí. Se o slogan
fazia troça com as pretensões
políticas das classes que redigem bem, ele não obstante afirmava que dentre os muitos
candidatos quem sabia escrever deveras era Bento Prado ele
mesmo. Sob a autopropaganda
humorística havia a estocada
nos colegas menos sonhadores
e estetas, ou mais afeitos à política real. Atrás de tudo, a equiparação cômico-polêmica entre as letras e a política: se as
primeiras não levam ao Senado, não cedem à segunda em
valor, nem se deixam abafar.
Um duelo nas nuvens, mas carregado de convicção.
O fato é que Bento escrevia
admiravelmente e que a sua
prosa se impunha -e se impõe- à primeira vista, por razões que aliás não são fáceis de
explicar. A sua frase, de caimento sempre perfeito, é ampla, muito organizada e clara,
ligeiramente retórica e fora de
moda, com miolo filosófico
moderno. O modelo com certeza é o Drummond do período
classicizante, agilizado talvez
pela multiplicação malabarística de aspectos, a la Sartre e
Merleau-Ponty, além de acompanhado pelo culto parnasiano
da visibilidade completa, que
não deixa nada na sombra.
O amor da clareza -uma forma de decoro, mas sobretudo
de racionalidade e universalismo- era a feição dominante da
elegância buscada por Bento.
Aparecia igualmente na sua
maneira muito correta e atenciosa de conversar, na pronúncia de professor que não engolia sílabas nem cedia a modismos e regionalismos, e também na bela caligrafia e nos envelopes bem sobrescritados.
Do ponto de vista literário,
remava na contracorrente do
modernismo, que pesquisava
as irregularidades brasileiras, a
gramática popular, a informalidade, a forma elíptica e fragmentária, o sujeito socialmente e nacionalmente marcado.
Entretanto, o universalismo
de Bento não deixava de ter sua
fisionomia social. O refinamento sintático, a visão abrangente e concatenada, o vocabulário justo, a pitada de eloqüência etc. tinham a nota senhorial
-é claro que modificada pelo
naufrágio histórico do senhor
enquanto classe, e por um ajuste de contas filosófico com a
sua figura. A seu tempo, a prosa
escoimada de brasileirismos,
segura da gramática portuguesa e do latim, terá sido um padrão de autoridade, e não só
um esforço cultural. A prosa de
Bento lhe conservou o arcabouço, com suas possibilidades
formais e sua altura, mas obedecendo a outro sujeito.
Jogo limpo
Entre os belos traços de Bento estavam o igualitarismo radical e a ira juvenil contra o privilégio, que faziam dele um homem indiscutivelmente de esquerda. Suponho que o objeto
inicial de sua revolta tenha sido
a prerrogativa oligárquica, à
qual o secundarista convertido
ao comunismo opunha a igualdade e a justiça.
Contudo, como ele logo notou, o autoritarismo e o conchavo que o indignavam na oligarquia eram a norma também
no Partido Comunista, o que o
colocou para sempre à margem
da política prática.
A conversação com Bento era
algo especial. Ele era brincalhão e farsante, mas sobretudo
sério. Na discussão gostava de
um pouco de esgrima, mas não
se tratava de jogo apenas. Havia
o desejo real de esclarecer as
questões, e não lhe ocorria levar a melhor de qualquer jeito.
A lealdade e o "fair play" eram
parte absoluta do processo, que
ultrapassava a dimensão pessoal e, meio metaforicamente,
representava o interesse coletivo. O espírito democrático, que
na política tinha pouca chance,
aqui dava fruto e criava padrão.
Assim, na segunda edição de
seus ensaios, ele publicou como
posfácio uma discussão muito
crítica -embora notavelmente
compreensiva- de Paulo Arantes a respeito. Na mesma linha,
quando saiu o meu primeiro livro, Bento publicou um excelente artigo que o questionava
no essencial. São procedimentos que vale a pena mencionar
por não serem habituais em
nosso meio.
Quando tínhamos 20 anos,
Bento me fez a comunicação
formal de sua repulsa pelo anti-semitismo. Era parte da consolidação de nossa amizade, e
uma afirmação de suas convicções universalistas, para as
quais o preconceito contra os
judeus era o arquétipo de todos
os preconceitos.
Como eu não corria o risco de
ser anti-semita, mas nem por
isso tinha grande opinião de
meus patrícios, a conversa tomou rumo engraçado, com o
gói advogando a causa do opositor. Outra vertente de seu universalismo era o absoluto respeito pela desgraça. Tendo bastante de príncipe, ele não se
sentia melhor do que ninguém.
Num fim de noite, quando os
bares decentes já haviam fechado, ele me arrastou para um
boteco atrás da praça da República, onde a sua atenção se fixou na munheca fechada e nas
unhas sujas de um pobre homem adormecido, que por um
bom momento resumiram para
ele a angústia da existência.
Notívago atormentado
Como combinar o cultor da
clareza superlativa, o farsante e
o notívago atormentado, que
preferia que a noite não terminasse e que temia a luz do dia
seguinte? Lutavam, um derrubando o outro, mas não se misturavam, e naturalmente compunham um enigma para os
amigos e para ele mesmo.
A poesia de Bento, que não
está reunida, dá testemunho do
impasse reinante no seu Laboratório de Metafísica Geral
-expressão dele. Ele gostava
de recitar o "Relógio do Rosário" de Drummond, especialmente os versos seguintes: "(...)
E nada basta, / nada é de natureza assim tão casta // que não
macule ou perca sua essência /
ao contato furioso da existência. // Nem existir é mais que
um exercício / de pesquisar de
vida um vago indício, // a provar a nós mesmos que, vivendo,
/ estamos para doer, estamos
doendo".
Que falta o Bento faz!
ROBERTO SCHWARZ é crítico literário, autor,
entre outros, de "Um Mestre na Periferia do Capitalismo" (ed. 34).
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