São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2007

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Outros donos do poder

Mas o relato que surge desse esforço, diferentemente do que se pode supor, está longe de ser algo enfadonho. Na primeira parte do livro, a pesquisadora discute a historiografia em torno do tema e como questões ideológicas e conjunturais influenciaram a interpretação dos fatos ao longo do tempo. Na segunda, estão as biografias dos administradores que vinham a mando da Coroa exercer o poder do Império.
Muitas vezes divididos entre a sua função e a reação imediata que tinham em relação à sociedade na qual haviam sido lançados, eles deixaram reflexões interessantes e muitas vezes ambíguas, aos olhos de hoje, sobre o significado e o futuro da dominação portuguesa. Leia os principais trechos da entrevista que a historiadora da Universidade de São Paulo deu à Folha.

FOLHA - O que a levou a interessar-se pelo tema da administração colonial no século 18?
LAURA DE MELLO E SOUZA
- Fiquei impressionada com o assunto por vários motivos. Primeiro, porque as cartas dos governadores revelavam uma preocupação legítima com os problemas que surgiam no dia-a-dia. Depois, porque, no geral, eles eram homens inteligentes e preparados, capazes de escrever bem e, não raro, discordarem de diretrizes dos ministros do reino. Percebiam que sua tarefa era ingrata e delicada. Se, por um lado, deviam cumprir as determinações metropolitanas, não podiam gerar descontentamentos muito fundos, pois estavam longe do centro do poder, onde a população escrava e negra era maior do que a branca, e, se houvesse sublevação, as coisas podiam ficar difíceis de controlar.

FOLHA - Por que a metáfora do sol e da sombra, tirada do padre Antonio Vieira?
MELLO E SOUZA
- Li o trecho de Vieira pela primeira vez em "Os Donos do Poder" [editora Globo], de Raymundo Faoro. Vieira diz que, quando o sol está no zênite, ou seja, no meio do céu, a sombra da pessoa fica toda embaixo dos pés, não é vista. Mas, quando o sol está no oriente, ao nascer, ou no ocidente, ao se pôr, a sombra fica enorme, alongando-se ameaçadoramente. A mesma coisa acontece com o poder dos reis e os súditos: quando estes estão perto do centro de onde emana o poder, sua ação e autonomia são pequenas. Mas, quando estão longe, nas Índias ou na América, os súditos têm autonomia maior, podendo contestar o poder do centro, que, por sua vez, chega rarefeito àquelas lonjuras. A partir da metáfora comecei a pensar nas implicações da distância para os impérios coloniais e a distribuição do governo dentro deles. Governo e poder não podem ser vistos de forma homogênea, pois as partes distantes não se governam da mesma forma que as mais próximas.

FOLHA - Existem tradições historiográficas ligadas ao tema com as quais você dialoga. As surgidas a partir do conceito de "sentido da colonização" (Caio Prado Jr.), da idéia de existência de um "sistema colonial" unindo Brasil e Portugal (Fernando Novais) e da centralidade do poder (Raymundo Faoro). Em que pontos elas auxiliam a conceber um novo ponto de vista sobre a Colônia?
MELLO E SOUZA
- Tais concepções são fundamentais para a reflexão sobre o problema do poder político e da administração. O assunto foi, quase sempre, contaminado por um viés ideológico -estou me referindo a Caio Prado, a Faoro e a uma historiografia portuguesa que exaltava os feitos dos portugueses e sua capacidade de manter a unidade do império. Caio Prado reforçava o lado irracional e caótico da administração porque era crítico do modelo colonizador aqui implantado, e desejava mostrar o quanto marcou a história do Brasil, sobretudo para o mal. Não se dava conta de que as lógicas daquela época eram outras. Não eram as da divisão de poderes, nem da racionalidade do estado liberal. Faoro enfatizava a obnubilação portuguesa em querer implantar uma norma nas colônias que tinha muito pouco a ver com a realidade delas: a lei precedia o povoamento, o Estado se divorciava da sociedade. Os dois estão certos e errados, mas não pelas razões que apresentam. Nenhum deles considerou devidamente o papel dos agentes sociais, fossem os de baixo -que pressionavam a norma por meio do conflito aberto ou da negociação-, fossem os de cima -os governadores, que ora desejavam ser "sócios" do governo, ora das elites locais, ora, por fim, "teóricos" de soluções originais que possibilitassem a composição das conquistas com o reino, dos súditos com o rei. No tempo em que Caio Prado e Faoro escreveram, havia ainda uma preocupação muito grande com o problema da identidade nacional. O anticolonialismo, a oposição a tudo quanto era metropolitano ainda estavam muito próximos para se poder analisar o problema com maior isenção. Hoje, por outro lado, há pressa em aceitar o que vem de fora como uma espécie de chave para entender o nosso passado.

FOLHA - Ainda com relação à historiografia, no fim do livro, você lança a pergunta: "Até que ponto é possível preservar análises como as de Caio Prado Jr. e Fernando Novais?" Acredita que a primeira "envelheceu" diante das novas pesquisas, mais do que a segunda?
MELLO E SOUZA
- Por um lado, certas interpretações não envelhecem nunca, nascem clássicas. É o caso de Caio Prado e de Novais, na medida em que é obrigatório se reportar a elas sempre, inclusive quando o objetivo é criticá-las. A crítica, por sua vez, vejo-a sempre como benfazeja, se for inteligente: nociva é a detração. Vejo que não é raro anular ou detratar autores que foram lidos apressadamente porque a corrente se virou contra eles, ou porque se discorda deles sem procurar entendê-los. No trecho citado, não me refiro às interpretações desses autores em geral, mas ao que se diz respeito ao estudo do império colonial português no Atlântico sul no século 18. Estou ponderando sobre a possibilidade de não haver um único sentido na colonização, na medida em que havia vários agentes envolvidos, com projetos muitas vezes conflitantes. Caio Prado ajudou a pensar qual era o sentido último da colonização em termos pragmáticos: acumular capital para as metrópoles. A história, contudo, é cheia de sentidos pouco evidentes, e os historiadores, a cada geração, devem buscá-los. Tem-se, às vezes, a impressão de que os autores envelhecem porque as interpretações não são só reflexões sobre a história, elas são produtos da historia: elas são históricas em mais de um sentido. Não se pode querer que Caio Prado, Novais ou Faoro escrevessem o que hoje esperamos que tivessem escrito, pois não estavam onde estamos, não sabiam o que sabemos, e nós também nunca saberemos o que eles sabiam naquele momento. Em uma palavra: todos nós vamos envelhecer também, e é bom que envelheçamos, pois a outra alternativa -morrer sem envelhecer ou deixar rastros- é bem mais trágica.

FOLHA - A história de São Paulo tem flancos inexplorados?
MELLO E SOUZA
- São Paulo sempre esteve no centro dos estudos historiográficos, veja-se a historiografia ufanista, a quantidade de trabalhos sobre as bandeiras, sobre a "heroicidade" da expansão etc. Sérgio Buarque de Holanda elevou os estudos sobre São Paulo a níveis altíssimos: "Monções" e "Caminhos e Fronteiras" [Cia. das Letras] constam entre os mais belos livros da nossa historiografia. Um dos marcos da renovação historiográfica mais recente em nosso país foi o livro de John Monteiro sobre São Paulo, "Negros da Terra". Nos anos 20 do século passado, Alcântara Machado produziu um trabalho incrivelmente original sobre São Paulo, "Vida e Morte do Bandeirante" (leia resenha ao lado). Alguns períodos, como a primeira metade do século 18, têm sido menos estudados, e houve um certo bairrismo nas abordagens. Mas esse mal não atingiu apenas os estudos sobre São Paulo.

FOLHA - Como o conde de Assumar [governador da capitania de Minas Gerais entre 1717 e 1721] lhe proporcionou um novo olhar para os administradores?
MELLO E SOUZA
- Sempre tive uma curiosidade inexplicável por dom Pedro de Almeida Portugal, o conde de Assumar, sobretudo porque a memória que se construiu sobre ele -um monstro, um sanguinário, um boçal- não batia com o que eu encontrava nos documentos, sobretudo nas suas cartas. Quando fui ler sua correspondência pessoal para editar um texto que atribuí a ele, o "Discurso Histórico e Político Sobre a Sublevação de 1720", aí o fosso ficou mais evidente. Ele foi um homem cultíssimo, pertencia a um dos círculos mais sofisticados intelectualmente de Portugal de sua época. Sua biblioteca era variada, um verdadeiro tesouro. Assumar mostrou-me que as coisas são sempre muito mais complicadas do que parecem, não existe o preto e o branco. Por outro lado, ilustrava como um administrador sofisticado e inteligente podia recorrer a expedientes escusos e ser muito violento no exercício do mando. Mesmo sendo tão lido e informado, não entendia o mundo que tinha que governar. Por fim, é um dos poucos governantes coloniais que tentaram fazer teoria política, escrever tratados sobre o governo.

FOLHA - Há uma discussão temática intensa entre historiadores do período colonial dividida, grosso modo, entre os que defendem a idéia de transição da Colônia ao Brasil independente a partir de uma dinâmica interna, e os que crêem numa ruptura entre metrópole e Colônia sem tantas nuanças. De que maneira você se posiciona?
MELLO E SOUZA
- Acho que a idéia da unidade da América portuguesa surgiu primeiro nos círculos cultos e políticos do reino do que na própria América Portuguesa: não como algo a se realizar, mas como um risco óbvio. As revoltas do final do século 18 se pensaram antes, e sobretudo, como regionais, do que como americanas.
Nesse sentido, dom João sabia que, por um lado, corria um risco enorme de perder o Brasil, e, por outro, deve ter ponderado que os "brasileiros" ainda não pensavam na unidade. Pagou para ver, mesmo porque não tinha outra alternativa, e preservou a dinastia dos dois lados do Atlântico.
Acho 1808 um marco muito importante, talvez mais do que 1822. A escravidão continuou, as elites pouco se transformaram -daí os que defendem a idéia da continuidade.
Por outro lado, se acreditarmos -como hoje muitos acreditam, inclusive eu mesma tendo a isso- que o projeto, entre o reinado de dom José e o de dom João 6º, era o de um império luso-brasileiro com maior inserção da América portuguesa no jogo político do império, 1822 foi uma ruptura sim.
Eminentemente política e simbólica, mais foi. O rei, afinal, passou a ficar deste lado do oceano: a sombra encolheu.


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