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Outros donos do poder
Mas o relato que surge desse
esforço, diferentemente do que
se pode supor, está longe de ser
algo enfadonho. Na primeira
parte do livro, a pesquisadora
discute a historiografia em torno do tema e como questões
ideológicas e conjunturais influenciaram a interpretação
dos fatos ao longo do tempo.
Na segunda, estão as biografias dos administradores que
vinham a mando da Coroa
exercer o poder do Império.
Muitas vezes divididos entre a
sua função e a reação imediata
que tinham em relação à sociedade na qual haviam sido lançados, eles deixaram reflexões interessantes e muitas vezes ambíguas, aos olhos de hoje, sobre
o significado e o futuro da dominação portuguesa.
Leia os principais trechos da
entrevista que a historiadora da
Universidade de São Paulo deu
à Folha.
FOLHA - O que a levou a interessar-se pelo tema da administração colonial no século 18?
LAURA DE MELLO E SOUZA - Fiquei
impressionada com o assunto
por vários motivos. Primeiro,
porque as cartas dos governadores revelavam uma preocupação legítima com os problemas que surgiam no dia-a-dia.
Depois, porque, no geral, eles
eram homens inteligentes e
preparados, capazes de escrever bem e, não raro, discordarem de diretrizes dos ministros
do reino. Percebiam que sua tarefa era ingrata e delicada.
Se, por um lado, deviam cumprir as determinações metropolitanas, não podiam gerar
descontentamentos muito fundos, pois estavam longe do centro do poder, onde a população
escrava e negra era maior do
que a branca, e, se houvesse sublevação, as coisas podiam ficar
difíceis de controlar.
FOLHA - Por que a metáfora do sol
e da sombra, tirada do padre Antonio Vieira?
MELLO E SOUZA - Li o trecho de
Vieira pela primeira vez em "Os
Donos do Poder" [editora Globo], de Raymundo Faoro. Vieira diz que, quando o sol está no
zênite, ou seja, no meio do céu,
a sombra da pessoa fica toda
embaixo dos pés, não é vista.
Mas, quando o sol está no
oriente, ao nascer, ou no ocidente, ao se pôr, a sombra fica
enorme, alongando-se ameaçadoramente.
A mesma coisa acontece com
o poder dos reis e os súditos:
quando estes estão perto do
centro de onde emana o poder,
sua ação e autonomia são pequenas. Mas, quando estão longe, nas Índias ou na América, os
súditos têm autonomia maior,
podendo contestar o poder do
centro, que, por sua vez, chega
rarefeito àquelas lonjuras.
A partir da metáfora comecei
a pensar nas implicações da
distância para os impérios coloniais e a distribuição do governo dentro deles.
Governo e poder não podem
ser vistos de forma homogênea,
pois as partes distantes não se
governam da mesma forma que
as mais próximas.
FOLHA - Existem tradições historiográficas ligadas ao tema com as
quais você dialoga. As surgidas a
partir do conceito de "sentido da colonização" (Caio Prado Jr.), da idéia
de existência de um "sistema colonial" unindo Brasil e Portugal (Fernando Novais) e da centralidade do
poder (Raymundo Faoro). Em que
pontos elas auxiliam a conceber um
novo ponto de vista sobre a Colônia?
MELLO E SOUZA - Tais concepções são fundamentais para a
reflexão sobre o problema do
poder político e da administração. O assunto foi, quase sempre, contaminado por um viés
ideológico -estou me referindo a Caio Prado, a Faoro e a
uma historiografia portuguesa
que exaltava os feitos dos portugueses e sua capacidade de
manter a unidade do império.
Caio Prado reforçava o lado
irracional e caótico da administração porque era crítico do
modelo colonizador aqui implantado, e desejava mostrar o
quanto marcou a história do
Brasil, sobretudo para o mal.
Não se dava conta de que as
lógicas daquela época eram outras. Não eram as da divisão de
poderes, nem da racionalidade
do estado liberal.
Faoro enfatizava a obnubilação portuguesa em querer implantar uma norma nas colônias que tinha muito pouco a
ver com a realidade delas: a lei
precedia o povoamento, o Estado se divorciava da sociedade.
Os dois estão certos e errados, mas não pelas razões que
apresentam. Nenhum deles
considerou devidamente o papel dos agentes sociais, fossem
os de baixo -que pressionavam
a norma por meio do conflito
aberto ou da negociação-, fossem os de cima -os governadores, que ora desejavam ser "sócios" do governo, ora das elites
locais, ora, por fim, "teóricos"
de soluções originais que possibilitassem a composição das
conquistas com o reino, dos súditos com o rei.
No tempo em que Caio Prado
e Faoro escreveram, havia ainda uma preocupação muito
grande com o problema da
identidade nacional. O anticolonialismo, a oposição a tudo
quanto era metropolitano ainda estavam muito próximos para se poder analisar o problema
com maior isenção.
Hoje, por outro lado, há pressa em aceitar o que vem de fora
como uma espécie de chave para entender o nosso passado.
FOLHA - Ainda com relação à historiografia, no fim do livro, você lança
a pergunta: "Até que ponto é possível preservar análises como as de
Caio Prado Jr. e Fernando Novais?"
Acredita que a primeira "envelheceu" diante das novas pesquisas,
mais do que a segunda?
MELLO E SOUZA - Por um lado,
certas interpretações não envelhecem nunca, nascem clássicas. É o caso de Caio Prado e de
Novais, na medida em que é
obrigatório se reportar a elas
sempre, inclusive quando o objetivo é criticá-las. A crítica, por
sua vez, vejo-a sempre como
benfazeja, se for inteligente:
nociva é a detração.
Vejo que não é raro anular ou
detratar autores que foram lidos apressadamente porque a
corrente se virou contra eles,
ou porque se discorda deles
sem procurar entendê-los.
No trecho citado, não me refiro às interpretações desses
autores em geral, mas ao que se
diz respeito ao estudo do império colonial português no
Atlântico sul no século 18.
Estou ponderando sobre a
possibilidade de não haver um
único sentido na colonização,
na medida em que havia vários
agentes envolvidos, com projetos muitas vezes conflitantes.
Caio Prado ajudou a pensar
qual era o sentido último da colonização em termos pragmáticos: acumular capital para as
metrópoles. A história, contudo, é cheia de sentidos pouco
evidentes, e os historiadores, a
cada geração, devem buscá-los.
Tem-se, às vezes, a impressão de que os autores envelhecem porque as interpretações
não são só reflexões sobre a história, elas são produtos da historia: elas são históricas em
mais de um sentido.
Não se pode querer que Caio
Prado, Novais ou Faoro escrevessem o que hoje esperamos
que tivessem escrito, pois não
estavam onde estamos, não sabiam o que sabemos, e nós também nunca saberemos o que
eles sabiam naquele momento.
Em uma palavra: todos nós
vamos envelhecer também, e é
bom que envelheçamos, pois a
outra alternativa -morrer sem
envelhecer ou deixar rastros-
é bem mais trágica.
FOLHA - A história de São Paulo
tem flancos inexplorados?
MELLO E SOUZA - São Paulo sempre esteve no centro dos estudos historiográficos, veja-se a
historiografia ufanista, a quantidade de trabalhos sobre as
bandeiras, sobre a "heroicidade" da expansão etc.
Sérgio Buarque de Holanda
elevou os estudos sobre São
Paulo a níveis altíssimos:
"Monções" e "Caminhos e
Fronteiras" [Cia. das Letras]
constam entre os mais belos livros da nossa historiografia.
Um dos marcos da renovação
historiográfica mais recente
em nosso país foi o livro de
John Monteiro sobre São Paulo, "Negros da Terra".
Nos anos 20 do século passado, Alcântara Machado produziu um trabalho incrivelmente
original sobre São Paulo, "Vida
e Morte do Bandeirante" (leia
resenha ao lado). Alguns períodos, como a primeira metade
do século 18, têm sido menos
estudados, e houve um certo
bairrismo nas abordagens. Mas
esse mal não atingiu apenas os
estudos sobre São Paulo.
FOLHA - Como o conde de Assumar
[governador da capitania de Minas
Gerais entre 1717 e 1721] lhe proporcionou um novo olhar para os
administradores?
MELLO E SOUZA - Sempre tive
uma curiosidade inexplicável
por dom Pedro de Almeida Portugal, o conde de Assumar, sobretudo porque a memória que
se construiu sobre ele -um
monstro, um sanguinário, um
boçal- não batia com o que eu
encontrava nos documentos,
sobretudo nas suas cartas.
Quando fui ler sua correspondência pessoal para editar
um texto que atribuí a ele, o
"Discurso Histórico e Político
Sobre a Sublevação de 1720", aí
o fosso ficou mais evidente.
Ele foi um homem cultíssimo, pertencia a um dos círculos
mais sofisticados intelectualmente de Portugal de sua época. Sua biblioteca era variada,
um verdadeiro tesouro. Assumar mostrou-me que as coisas
são sempre muito mais complicadas do que parecem, não
existe o preto e o branco.
Por outro lado, ilustrava como um administrador sofisticado e inteligente podia recorrer a expedientes escusos e ser
muito violento no exercício do
mando. Mesmo sendo tão lido e
informado, não entendia o
mundo que tinha que governar.
Por fim, é um dos poucos governantes coloniais que tentaram fazer teoria política, escrever tratados sobre o governo.
FOLHA - Há uma discussão temática intensa entre historiadores do período colonial dividida, grosso modo, entre os que defendem a idéia
de transição da Colônia ao Brasil independente a partir de uma dinâmica interna, e os que crêem numa
ruptura entre metrópole e Colônia
sem tantas nuanças. De que maneira você se posiciona?
MELLO E SOUZA - Acho que a idéia
da unidade da América portuguesa surgiu primeiro nos círculos cultos e políticos do reino
do que na própria América Portuguesa: não como algo a se realizar, mas como um risco óbvio.
As revoltas do final do século 18
se pensaram antes, e sobretudo, como regionais, do que como americanas.
Nesse sentido, dom João sabia que, por um lado, corria um
risco enorme de perder o Brasil, e, por outro, deve ter ponderado que os "brasileiros" ainda
não pensavam na unidade. Pagou para ver, mesmo porque
não tinha outra alternativa, e
preservou a dinastia dos dois
lados do Atlântico.
Acho 1808 um marco muito
importante, talvez mais do que
1822. A escravidão continuou,
as elites pouco se transformaram -daí os que defendem a
idéia da continuidade.
Por outro lado, se acreditarmos -como hoje muitos acreditam, inclusive eu mesma tendo a isso- que o projeto, entre
o reinado de dom José e o de
dom João 6º, era o de um império luso-brasileiro com maior
inserção da América portuguesa no jogo político do império,
1822 foi uma ruptura sim.
Eminentemente política e
simbólica, mais foi. O rei, afinal,
passou a ficar deste lado do
oceano: a sombra encolheu.
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