São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010

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Ponto de Fuga

Notas de viagem 3


"Don Carlo", ópera de Verdi, é um trambolho, um enorme trambolho, tanto quanto o "Crepúsculo dos Deuses", de Wagner


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Don Carlo", ópera de Verdi, é um trambolho. Um enorme trambolho. Tanto quanto o "Crepúsculo dos Deuses" [de Wagner]. Em sua versão original, com o balé, pode chegar a seis horas. Verdi aceitou fazer vários cortes, entre eles o do primeiro ato, para que ficasse menor.
Pena: o gênio desse primeiro ato, crucial, tem a mesma força implacável do resto. "Don Carlo" é uma composição poderosa entre as poderosas.
Na verdade, o talho melhor dessa ópera é a edição para o teatro de Modena, em 1886, pouco apresentada. Incorpora o primeiro ato e concentra o todo, graças a uma revisão inspirada. Há uma insuperável interpretação, gravada em 1961 para a Deutsche Grammophon, hoje fora dos catálogos de CD, com Christoff, Labò, Stella, Cossotto, Bastianini e Vinco, dirigidos por Gabriele Santini.
É difícil alguém, mesmo que não goste de ópera, não ficar subjugado por essa gravação. (Pensando melhor: se quem não gosta de ópera aguentou me ler até aqui, fique firme mais um pouco. Os apaixonados por ópera têm a doença do proselitismo. É que o prazer oferecido pela ópera é tão intenso, inexplicável e delicioso que parece um crime certas pessoas não o conhecerem.
Os aficionados não param de impor a escuta de trechos aos amigos indiferentes e de os levar aos teatros. Os resultados dos esforços quase sempre são chinfrins e decepcionantes.) Há também o DVD do Metropolitan, com Domingo, Freni, Bumbry, Quilico, Ghiaurov, Furlanetto, Levine, de tirar o fôlego. Foi vendido no Brasil em bancas de jornal, numa edição com imagem ruim.

Ou la la!
Na verdade, a primeira versão de "Don Carlo" se chamou "Don Carlos", com "s" no fim, e foi uma encomenda da ópera de Paris. Verdi [1813-1901] escreveu sobre um libreto em francês, e as recentes tentativas de reviver essa forma inicial não se impuseram: o texto francês é medíocre, o italiano, excelente, e as retificações que Verdi operou para as apresentações na Itália injetaram energia e intensidade na partitura.
Os franceses exigiam balé, grande espetáculo, e árias que pusessem à prova o gogó dos cantores. Verdi criou então grande cena com a Inquisição espanhola, torrando heréticos na fogueira, e toda uma panóplia pitoresca: infante apaixonado; rei velho e terrível; grande inquisidor sinistro; dama da corte com fogo lá onde se pode imaginar, vocalizando, exibida, multiplicando os agudos, trinando, arrulhando, apitando.
Mas há, por trás disso, o gênio de Schiller, autor da peça, e o gênio de Verdi. Os ódios (entre pai e filho: velho tema verdiano); os amores presentes (entre madrasta e enteado, e do amigo sublime pelo amigo... nem tanto); os amores ausentes (entre o marido e a mulher, entre a amante do pai e o filho por quem arde); os confrontos tremendos (o rei e o inquisidor) a solidão do poder (ah! esse violoncelo!); a religião dominadora e sectária, tudo forma então uma grandiosa e intrincada obra-prima.

Allons enfants
"Don Carlo", em italiano, apresentado sem o primeiro ato, na ópera da Bastilha, em Paris. Luciana d'Intino como Eboli, a amante: pouco requintada, mas vozeirão magnífico e aveludado. Stefano Secco: don Carlo agitado e neurótico. Ludovic Tézier, o marquês amigo: voz de sonho e a interpretação aristocrática. Giacomo Prestia: o rei, apesar do vibrato, doloroso, em suas contradições. Sondra Radvanovsky, hoje com 40 anos, no seu apogeu.
Não se pode imaginar outra melhor para encarnar Elisabetta, a bela rainha.

jorgecoli@uol.com.br


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