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Ponto de Fuga
Notas de viagem 3
"Don Carlo", ópera de Verdi, é um trambolho, um enorme trambolho, tanto quanto o "Crepúsculo dos Deuses", de Wagner
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Don Carlo", ópera de Verdi, é um trambolho. Um
enorme trambolho.
Tanto quanto o "Crepúsculo
dos Deuses" [de Wagner].
Em sua versão original, com
o balé, pode chegar a seis horas.
Verdi aceitou fazer vários cortes, entre eles o do primeiro
ato, para que ficasse menor.
Pena: o gênio desse primeiro
ato, crucial, tem a mesma força
implacável do resto. "Don Carlo" é uma composição poderosa entre as poderosas.
Na verdade, o talho melhor
dessa ópera é a edição para o
teatro de Modena, em 1886,
pouco apresentada. Incorpora
o primeiro ato e concentra o todo, graças a uma revisão inspirada. Há uma insuperável interpretação, gravada em 1961
para a Deutsche Grammophon,
hoje fora dos catálogos de CD,
com Christoff, Labò, Stella,
Cossotto, Bastianini e Vinco,
dirigidos por Gabriele Santini.
É difícil alguém, mesmo que
não goste de ópera, não ficar
subjugado por essa gravação.
(Pensando melhor: se quem
não gosta de ópera aguentou
me ler até aqui, fique firme
mais um pouco. Os apaixonados por ópera têm a doença do
proselitismo. É que o prazer
oferecido pela ópera é tão intenso, inexplicável e delicioso
que parece um crime certas
pessoas não o conhecerem.
Os
aficionados não param de impor a escuta de trechos aos
amigos indiferentes e de os levar aos teatros. Os resultados
dos esforços quase sempre são
chinfrins e decepcionantes.)
Há também o DVD do Metropolitan, com Domingo, Freni, Bumbry, Quilico, Ghiaurov,
Furlanetto, Levine, de tirar o
fôlego. Foi vendido no Brasil
em bancas de jornal, numa edição com imagem ruim.
Ou la la!
Na verdade, a primeira versão de "Don Carlo" se chamou
"Don Carlos", com "s" no fim, e
foi uma encomenda da ópera de
Paris. Verdi [1813-1901] escreveu sobre um libreto em francês, e as recentes tentativas de
reviver essa forma inicial não
se impuseram: o texto francês é
medíocre, o italiano, excelente,
e as retificações que Verdi operou para as apresentações na
Itália injetaram energia e intensidade na partitura.
Os franceses exigiam balé,
grande espetáculo, e árias que
pusessem à prova o gogó dos
cantores. Verdi criou então
grande cena com a Inquisição
espanhola, torrando heréticos
na fogueira, e toda uma panóplia pitoresca: infante apaixonado; rei velho e terrível; grande inquisidor sinistro; dama da
corte com fogo lá onde se pode
imaginar, vocalizando, exibida,
multiplicando os agudos, trinando, arrulhando, apitando.
Mas há, por trás disso, o gênio de Schiller, autor da peça, e
o gênio de Verdi. Os ódios (entre pai e filho: velho tema verdiano); os amores presentes
(entre madrasta e enteado, e do
amigo sublime pelo amigo...
nem tanto); os amores ausentes (entre o marido e a mulher,
entre a amante do pai e o filho
por quem arde); os confrontos
tremendos (o rei e o inquisidor)
a solidão do poder (ah! esse violoncelo!); a religião dominadora e sectária, tudo forma então
uma grandiosa e intrincada
obra-prima.
Allons enfants
"Don Carlo", em italiano,
apresentado sem o primeiro
ato, na ópera da Bastilha, em
Paris. Luciana d'Intino como
Eboli, a amante: pouco requintada, mas vozeirão magnífico e
aveludado. Stefano Secco: don
Carlo agitado e neurótico. Ludovic Tézier, o marquês amigo:
voz de sonho e a interpretação
aristocrática. Giacomo Prestia:
o rei, apesar do vibrato, doloroso, em suas contradições. Sondra Radvanovsky, hoje com 40
anos, no seu apogeu.
Não se pode imaginar outra
melhor para encarnar Elisabetta, a bela rainha.
jorgecoli@uol.com.br
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