São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010

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Estímulo à impunidade


Esforço louvável para garantir as liberdades individuais após a ditadura teve como efeito colateral ajudar a proteger criminosos


RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA

Nada estimula mais a criminalidade do que a certeza antecipada da impunidade, por absolvição ou prescrição do crime", disse o ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, quando do brutal assassinato do menino João Hélio. A barbárie da coisa chocou o país: pendurado no cinto de segurança, o menino foi arrastado em alta velocidade pelas ruas do Rio.
Apesar dos gritos dos que viam o carro passar, os ladrões não se detiveram -e, entre eles, estava um adolescente de 16 anos.
Na época, houve um clamor pela redução da maioridade penal e, segundo pesquisa Datafolha, cresceu muito o número de brasileiros favoráveis à pena de morte.
Vozes mais ponderadas, como as do juiz encarregado do caso, de dona Zilda Arns (1934-2010) e do governador José Serra, sugeriram aumentar o tempo em que um menor infrator pode ficar recluso.
Entende-se essa proposta: pela lei brasileira, após cumprir uma pena máxima de três anos, o menor (ou ex-menor, dependendo da idade que tiver na data da soltura) está quite com a Justiça.
Pouco importa que tenha ficado preso por bater uma carteira, por ser avião de traficante, por ter estuprado a irmã ou por ter participado de um feito tão cruel quanto o que vitimou o garoto carioca: três míseros anos, e volta para casa.
No máximo, pode ser colocado em liberdade vigiada, o que significa que deve dormir todas as noites numa instituição credenciada. Ora, segundo a Vara da Infância e da Juventude do Rio, 7 em cada 10 ex-menores nessa condição deixam de cumprir a norma -e nada lhes acontece.
Tudo se passa como se tivesse havido absolvição ou prescrição do crime, com as consequências previstas pelo ministro Britto. Esses fatos são conhecidos há muito pelos que lidam com delinquentes juvenis, mas recentemente ganharam destaque graças a uma notícia estarrecedora: atendendo à solicitação de uma ONG, o juiz Marcius Ferreira conferiu proteção federal a um dos assassinos de João Hélio, precisamente aquele que na época tinha 16 anos.
Motivo: na "instituição socioeducativa" em que ficou, outros detentos teriam ameaçado matá-lo, e, ao ser solto, ele estaria correndo risco de vida. Com que direito -talvez alguém me objete- você, que não é advogado nem jurista, critica uma decisão judicial?
A resposta é: com minha condição de ser pensante e no exercício do uso público da razão, que, segundo Kant, caracteriza a maioridade intelectual e o exercício da cidadania.
Não envolve desrespeito pelo Judiciário nem por qualquer outra instituição pátria considerar equivocada a decisão, pois equipara pessoas ameaçadas por criminosos (por exemplo, testemunhas de delitos) a um criminoso que fez bem mais que ameaçar sua vítima.
Seria um insulto (mais um...) ao contribuinte brasileiro que um único centavo dos seus impostos fosse destinado a dar "assistência financeira" a ele e um insulto aos que justificadamente gozam de proteção sob o programa da Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
Foi o que entendeu o Tribunal de Justiça do Rio, ao reverter a decisão e expedir contra o indivíduo um mandado de busca. E se for encontrado ou se entregar? Ficará preso mais tempo, pelo crime pavoroso do qual foi partícipe? Não: deve ser "condenado" à liberdade vigiada, diz o desembargador que emitiu a ordem -exatamente a regra da qual escarnecem 70% dos que a deveriam obedecer.

Rigor sem sadismo
Por que tamanha leniência na legislação brasileira, não só para com os menores infratores mas também para com qualquer tipo de réu? Não estou defendendo rigores sádicos, mas tudo parece indicar que, a partir do momento em que alguém é acusado de um crime, se torna mais digno de cuidados e de respeito que o comum dos cidadãos.
Os direitos de defesa e a um processo justo -conquistas das quais não podemos abrir mão- não implicam necessariamente as oportunidades que nossos códigos processuais oferecem a quem quiser e puder burlar as leis do país.
Qual o sentido, por exemplo, de determinar uma pena que excede o permitido pela lei? A sentença máxima vigente no Brasil é de 30 anos de prisão, mas os assassinos "maiores" de João Hélio foram condenados a 39, 45 etc.
Com certeza há doutas justificativas para tal decisão, mas a impossibilidade jurídica de a cumprir faz com que, ao reduzi-la, a segunda instância dê a impressão de estar aliviando o castigo -e isso, digam o que disserem, apenas aumenta o descrédito dos tribunais perante os cidadãos. A verdade é que o Estado brasileiro não sabe controlar a violência da sociedade civil de modo a desestimulá-la. Ora é demasiado brutal, ora injusto com os mais fracos, ora complacente com os poderosos, ora excessivamente brando (ou, como neste caso, cínico) na interpretação do conceito de "direitos humanos".
Penso que um dos motivos dessa incapacidade de exercer com serenidade a função de resguardar a segurança dos cidadãos que não são criminosos é a experiência da ditadura.
O cerceamento dos direitos políticos naquele período levou os constituintes de 1988 a criar salvaguardas para as liberdades essenciais -o que é louvável- mas também a dificultar ao extremo ações e práticas dirigidas aos que as ameaçam.
Entre elas, conto a de viver, negada a João Hélio pelo jovem alvo da extremosa atenção de uma ONG e de um juiz.
Muito há que reformar no Judiciário brasileiro, dizem os especialistas. Por que não começar com algo tão simples quanto curvar-se à evidência da justiça?
Concordo que ela nem sempre é clara -mas, em casos como este que nos ocupa, não cabem dúvidas: um assassino confesso, já beneficiado por uma norma que o liberta depois de um tempo irrisório, não tem por que ser incluído num programa cuja finalidade é bem outra.
Quero deixar bem claro: não penso que o rapaz devesse ser executado por quem o detesta: apesar de criminoso, é um cidadão e tem direito exatamente à mesma proteção que qualquer outro brasileiro.
Contudo está na hora de deixarmos para trás as sequelas da tirania militar. Quando mais não fosse por respeito às vítimas, e aos seus familiares, devemos reconhecer que um assassino é um assassino, e que deve cumprir até o fim a pena que lhe for imposta.
Três anos são muito pouco para isso; objeto de escárnio por quem a deveria prezar como uma concessão especial, a liberdade condicional como vem sendo praticada acaba criando a "certeza antecipada da impunidade" -e portanto tem efeito contrário ao esperado pelo legislador. Em suma: o jovem assassino está à solta. Não precisa da quase invisibilidade que o programa federal garante a inocentes ameaçados; se precisa de proteção, é contra a falta em sua psique dos freios morais que impedem os não psicopatas de fazer o que ele fez.
Essa assistência psicológica poderia (e deveria) ser oferecida pelo Estado -mas, a meu ver pelo menos, atrás de grades bem resistentes.

RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP. Escreve na seção "Autores", do Mais!.



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