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Estímulo à impunidade
Esforço louvável para garantir
as liberdades individuais após a ditadura teve como efeito colateral ajudar
a proteger criminosos
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RENATO MEZAN
COLUNISTA DA FOLHA
Nada estimula mais
a criminalidade do
que a certeza antecipada da impunidade, por absolvição ou prescrição do crime",
disse o ministro Carlos Ayres
Britto, do Supremo Tribunal
Federal, quando do brutal assassinato do menino João Hélio. A barbárie da coisa chocou
o país: pendurado no cinto de
segurança, o menino foi arrastado em alta velocidade pelas
ruas do Rio.
Apesar dos gritos dos que
viam o carro passar, os ladrões
não se detiveram -e, entre
eles, estava um adolescente de
16 anos.
Na época, houve um clamor
pela redução da maioridade penal e, segundo pesquisa Datafolha, cresceu muito o número
de brasileiros favoráveis à pena
de morte.
Vozes mais ponderadas, como as do juiz encarregado do
caso, de dona Zilda Arns (1934-2010) e do governador José
Serra, sugeriram aumentar o
tempo em que um menor infrator pode ficar recluso.
Entende-se essa proposta:
pela lei brasileira, após cumprir uma pena máxima de três
anos, o menor (ou ex-menor,
dependendo da idade que tiver
na data da soltura) está quite
com a Justiça.
Pouco importa que tenha ficado preso por bater uma carteira, por ser avião de traficante, por ter estuprado a irmã ou
por ter participado de um feito
tão cruel quanto o que vitimou
o garoto carioca: três míseros
anos, e volta para casa.
No máximo, pode ser colocado em liberdade vigiada, o que
significa que deve dormir todas
as noites numa instituição credenciada.
Ora, segundo a Vara da Infância e da Juventude do Rio, 7
em cada 10 ex-menores nessa
condição deixam de cumprir a
norma -e nada lhes acontece.
Tudo se passa como se tivesse
havido absolvição ou prescrição do crime, com as consequências previstas pelo ministro Britto.
Esses fatos são conhecidos
há muito pelos que lidam com
delinquentes juvenis, mas recentemente ganharam destaque graças a uma notícia estarrecedora: atendendo à solicitação de uma ONG, o juiz Marcius Ferreira conferiu proteção
federal a um dos assassinos de
João Hélio, precisamente
aquele que na época tinha 16
anos.
Motivo: na "instituição socioeducativa" em que ficou, outros detentos teriam ameaçado
matá-lo, e, ao ser solto, ele estaria correndo risco de vida.
Com que direito -talvez alguém me objete- você, que
não é advogado nem jurista,
critica uma decisão judicial?
A resposta é: com minha
condição de ser pensante e no
exercício do uso público da razão, que, segundo Kant, caracteriza a maioridade intelectual
e o exercício da cidadania.
Não envolve desrespeito pelo Judiciário nem por qualquer
outra instituição pátria considerar equivocada a decisão,
pois equipara pessoas ameaçadas por criminosos (por exemplo, testemunhas de delitos) a
um criminoso que fez bem
mais que ameaçar sua vítima.
Seria um insulto (mais um...)
ao contribuinte brasileiro que
um único centavo dos seus impostos fosse destinado a dar
"assistência financeira" a ele e
um insulto aos que justificadamente gozam de proteção sob o
programa da Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
Foi o que entendeu o Tribunal de Justiça do Rio, ao reverter a decisão e expedir contra o
indivíduo um mandado de busca. E se for encontrado ou se
entregar? Ficará preso mais
tempo, pelo crime pavoroso do
qual foi partícipe?
Não: deve ser "condenado" à
liberdade vigiada, diz o desembargador que emitiu a ordem
-exatamente a regra da qual
escarnecem 70% dos que a deveriam obedecer.
Rigor sem sadismo
Por que tamanha leniência
na legislação brasileira, não só
para com os menores infratores mas também para com
qualquer tipo de réu?
Não estou defendendo rigores sádicos, mas tudo parece indicar que, a partir do momento
em que alguém é acusado de
um crime, se torna mais digno
de cuidados e de respeito que o
comum dos cidadãos.
Os direitos de defesa e a um
processo justo -conquistas das
quais não podemos abrir mão-
não implicam necessariamente
as oportunidades que nossos
códigos processuais oferecem a
quem quiser e puder burlar as
leis do país.
Qual o sentido, por exemplo,
de determinar uma pena que
excede o permitido pela lei?
A sentença máxima vigente
no Brasil é de 30 anos de prisão,
mas os assassinos "maiores" de
João Hélio foram condenados a
39, 45 etc.
Com certeza há doutas justificativas para tal decisão, mas a
impossibilidade jurídica de a
cumprir faz com que, ao reduzi-la, a segunda instância dê a impressão de estar aliviando o
castigo -e isso, digam o que
disserem, apenas aumenta o
descrédito dos tribunais perante os cidadãos.
A verdade é que o Estado brasileiro não sabe controlar a violência da sociedade civil de modo a desestimulá-la.
Ora é demasiado brutal, ora
injusto com os mais fracos, ora
complacente com os poderosos, ora excessivamente brando
(ou, como neste caso, cínico) na
interpretação do conceito de
"direitos humanos".
Penso que um dos motivos
dessa incapacidade de exercer
com serenidade a função de
resguardar a segurança dos cidadãos que não são criminosos
é a experiência da ditadura.
O cerceamento dos direitos
políticos naquele período levou
os constituintes de 1988 a criar
salvaguardas para as liberdades
essenciais -o que é louvável-
mas também a dificultar ao extremo ações e práticas dirigidas
aos que as ameaçam.
Entre elas, conto a de viver,
negada a João Hélio pelo jovem
alvo da extremosa atenção de
uma ONG e de um juiz.
Muito há que reformar no
Judiciário brasileiro, dizem os
especialistas. Por que não começar com algo tão simples
quanto curvar-se à evidência da
justiça?
Concordo que ela nem sempre é clara -mas, em casos como este que nos ocupa, não cabem dúvidas: um assassino
confesso, já beneficiado por
uma norma que o liberta depois
de um tempo irrisório, não tem
por que ser incluído num programa cuja finalidade é bem
outra.
Quero deixar bem claro: não
penso que o rapaz devesse ser
executado por quem o detesta:
apesar de criminoso, é um cidadão e tem direito exatamente à
mesma proteção que qualquer
outro brasileiro.
Contudo está na hora de deixarmos para trás as sequelas da
tirania militar. Quando mais
não fosse por respeito às vítimas, e aos seus familiares, devemos reconhecer que um assassino é um assassino, e que
deve cumprir até o fim a pena
que lhe for imposta.
Três anos são muito pouco
para isso; objeto de escárnio
por quem a deveria prezar como uma concessão especial, a
liberdade condicional como
vem sendo praticada acaba
criando a "certeza antecipada
da impunidade" -e portanto
tem efeito contrário ao esperado pelo legislador.
Em suma: o jovem assassino
está à solta. Não precisa da quase invisibilidade que o programa federal garante a inocentes
ameaçados; se precisa de proteção, é contra a falta em sua psique dos freios morais que impedem os não psicopatas de fazer o que ele fez.
Essa assistência psicológica
poderia (e deveria) ser oferecida pelo Estado -mas, a meu ver
pelo menos, atrás de grades
bem resistentes.
RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP.
Escreve na seção "Autores", do Mais!.
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