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Os sem-política
Transformado em peça
na máquina
de consumo compulsivo, torcedor
é vítima
maior da despolitização que atinge a sociedade
LUIZ HENRIQUE DE TOLEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Assistência" foi um
termo muito comum propagado
pela imprensa esportiva até os anos
1930, condenando à passividade os torcedores mais populares. Estes se diferenciavam dos
sócios, indivíduos notabilizados por laços mais estreitos, inclusive de parentesco, com os
integrantes dos clubes.
A inauguração do estádio do
Pacaembu, em São Paulo, e a
transformação do futebol em
evento de massa nos anos 40
redimensionaria os espetáculos futebolísticos e a importância dos torcedores.
Eles passaram a ser motivo
de preocupação mais detida de
parte dos poderes públicos, da
imprensa e daqueles que organizavam os eventos, em virtude
da intolerância e das rinhas
que, diga-se de passagem, já
existiam desde a época do amadorismo anterior aos anos 30.
Os jornais não se cansavam
de censurar as "desinteligências" frequentes promovidas
pelo mau comportamento generalizado.
Faixas e cartazes
Foi nesse momento, então,
que surgiram as primeiras organizações uniformizadas, indivíduos que acompanhavam
as partidas em bloco, cantando,
exibindo faixas e cartazes homenageando jogadores, cronistas esportivos e o próprio poder
público.
Reciprocamente, a imprensa
esportiva e os dirigentes dos
clubes prestigiavam esses uniformizados por acreditarem
que formavam um corpo elitizado (entenda-se "civilizado")
no meio da massa.
Essa situação foi alterada
com o aparecimento das torcidas organizadas, já no final dos
anos 60.
Tratava-se de agrupamentos
com nítida inspiração popular
que se autonomizaram em relação aos interesses mais imediatos dos dirigentes e estabeleceram outros padrões para o
ato de torcer.
Os ciclos de violência intensificados nos anos 90 e a ingerência cada vez maior da TV e
dos canais pagos repercutiram
na necessidade imposta por
uma nova conduta torcedora.
Foi nessa conjuntura de políticas de repressão às organizadas que se inventaram os sócios-torcedores -analogia opaca que alude a uma espécie de
acionista minoritário do clube- e o torcedor de poltrona,
que paga para ver seu time pelo
sistema pay-per-view, serviço
oferecido pelos canais fechados
(elitistas, não?).
Portanto, formas físicas ou
simbólicas de violência não
constituem um corpo necessariamente estranho dentro desse universo.
Dirigentes que motivam os
seus publicamente, ainda que
de modo figurado, na lógica da
contenda tendem cada vez
mais a levar o espetáculo sacrificial para dentro da casa de cada torcedor plugado na web.
Há que saber administrar as
formas da belicosidade que, de
resto, é constitutiva do futebol.
Assim como as organizadas
não reproduzem toda a extensão do torcer, elas também não
contêm todas as variáveis que
explicam a violência tomada
como linguagem de todos.
Ambientadas e nutridas nas
dinâmicas de poder, as organizadas reproduzem os sucessos
e fracassos das organizações
sociais que conformam o que
visualizamos por sociedade.
Nenhum destes aspectos
lhes faltam: burocracia, hierarquias, lógicas de distinção,
comprometimentos políticos
com projetos coletivos próprios ou negociados com outros atores, discurso da parlamentarização das relações e,
obviamente, violência instrumental nutrida por masculinidades hegemônicas, homofóbicas, e intolerâncias já esparramadas por toda a sociedade.
Vingança inconclusa
O problema não são as organizações em si.
No geral, o comportamento
belicoso e intolerante se manifesta de modo mais desgarrado,
individualizante e descompromissado com qualquer projeto
coletivo, descentralizando práticas e comportamentos que fogem em muito ao controle das
elites torcedoras.
Como uma espécie de vingança inconclusa, as mortes se
sucedem há décadas em nome
de honras difusas em torno da
adesão aos clubes.
Elas certamente estão relacionadas ao desmonte da dimensão lúdica do jogo e ao esgarçamento da sociabilidade
em uma sociedade armada.
Embora as imagens dos últimos acontecimentos mostrem
hordas de torcedores se digladiando, não há guerra ali, não
há cadeia mecânica de mando e
obediência.
Essa é justamente a linguagem desgastada do poder que
tem no fantasma da desordem
unida a sua face oculta, mas
companheira de todas as horas.
Das instâncias policiais e judiciais espera-se apuração e indiciamento daqueles indivíduos que estiveram diretamente envolvidos nos confrontos
generalizados.
Mas o que esperar daqueles
que administram o futebol: os
dirigentes de clubes, os políticos e as elites torcedoras?
O cerne da questão parece residir na baixa qualidade das relações políticas travadas entre
esses agentes.
Não bastam reuniões administrativas para resolver a conduta torcedora neste ou naquele jogo em específico.
A despolitização de longo
prazo que se impinge aos torcedores só faz minar os investimentos coletivos em nome de
outras violências instrumentais parciais, inclusive legais.
O desinvestimento orquestrado que se faz na cultura do
torcer -transformada em mera coadjuvante da maquinaria
do consumo compulsivo- também não colabora para o processo de cidadania esportiva,
sobretudo às portas dos megaeventos que se avizinham por aí.
LUIZ HENRIQUE DE TOLEDO é antropólogo e
professor na Universidade Federal de São Carlos
(SP). É organizador de "Visão de Jogo - Antropologia das Práticas Esportivas" (Terceiro Nome).
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