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BRASIL 500 D.C.
Banimento da cena política de Florença permitiu a Maquiavel
escrever obras como "O Príncipe"
Elogio do ostracismo
EVALDO CABRAL DE MELLO
especial para a Folha
Em Florença, em 1512, o retorno
dos Médici ao poder enterrou o regime republicano restaurado 20
anos antes na esteira da pregação
integrista de Savonarola e da invasão francesa da Itália. Do dia para
a noite, Niccolò Machiavelli, o secretário da segunda chancelaria
florentina, caiu no ostracismo. Em
vez de se ocupar das questões de
Estado, para as quais se considerava especialmente vocacionado,
ei-lo reduzido a sobreviver mediante a gestão de San Casciano,
pequena propriedade rural herdada do pai, a cerca de 30 quilômetros da cidade.
Que fazia ali? De manhãzinha,
capturava pássaros e ocupava-se
com providências práticas, como
a de supervisionar a derrubada de
um bosque, cuja madeira vendia,
tagarelando com os lenhadores e
barganhando com os compradores. À sombra de uma fonte ou
sentado no viveiro, relia Dante,
Petrarca ou Ovídio. O almoço tinha a frugalidade do de um camponês do Mediterrâneo: apenas os
alimentos que lhe fornecia o sítio
ou que lhe permitiam os rendimentos modestos. À tarde, encanalhava-se no albergue da estrada,
ouvindo as novidades trazidas pelos passantes ou jogando com gente do povo, entre disputas e palavrões. Esgotando ao longo do dia o
que reputava a malignidade da sua
sorte, vingava-se à noite, quando,
vestido com apuro urbano, entregava-se à leitura dos historiadores
clássicos, sobretudo Tito Lívio e
Políbio, com quem "nutro-me do
alimento que é verdadeiramente o
meu e para o qual nasci. E durante
quatro longas horas, não sinto
mais o tédio, esqueço minha miséria, já não temo a pobreza nem me
deixo intimidar pela morte". Em
resumo: o estudo das ações dos
grandes homens do passado tornara-se a compensação da sua inatividade forçada.
Restavam-lhe 15 anos de vida,
prazo que lhe será mais do que suficiente para escrever todas as
grandes obras que lhe assegurarão
no Ocidente uma influência indizivelmente superior à que poderia
haver jamais exercido na Itália, caso os Médici o houvessem chamado de volta à Signoria. Maquiavel
não suspeitava, contudo, da fortuna a que seu pensamento estava
fadado; e, se o formula, será, em
grande parte, no fito de conseguir
sua reabilitação política.
Tudo o que obteve, porém, foi a
designação de historiador oficial,
que lhe permitirá redigir as "História de Florença" (Ed. Musa), espécie de laboratório para testar a
teoria política que havia formulado no "Príncipe" e nos "Comentários"; e duas ou três missões
anódinas em cidades vizinhas. Essas foram, aliás, o quanto bastou
para comprometê-lo aos olhos dos
antigos correligionários republicanos quando o equilíbrio político
da Itália foi novamente posto à
prova pela vitória espanhola de
Pavia e pelo saque de Roma. Restaurada provisoriamente a República Florentina, ninguém se lembrará dele. A piada banal é inevitável: na sua atividade política, Maquiavel não foi nada maquiavélico.
Sua biografia contrafatual poderia pressupor duas inflexões alternativas no seu destino. Pela primeira, os Médici não teriam retomado o poder em 1512 e ele teria
prosseguido sua carreira de alto
funcionário. Pela segunda, os Médici o teriam realmente empregado a seu serviço, como haviam feito por exemplo, com um colega,
Francesco Vettori, cuja amizade
Maquiavel cultivou na esperança
da reabilitação. O problema consiste em que, em nenhuma dessas
hipóteses, o nosso autor teria conhecido uma autêntica celebridade, seja como homem de ação, seja
sequer como eminência parda, à
maneira do frei Joseph, agente de
Richelieu. O contemporâneo e
conterrâneo de Maquiavel Francesco Guicciardini, também associado à história da teoria da razão
de Estado, teve uma carreira diplomática bem-sucedida, mas nada realizou de notável, tornando-se exclusivamente lembrado
pela "História da Itália", que recebeu a honra insigne de ser traduzida para o castelhano, já no século 17, por Felipe 4º. Quanto a
Vettori, outro triunfador do curto
prazo, só o conhecemos por haver
sido precisamente o destinatário
de cartas de Maquiavel.
A situação da Itália, dividida
contra si mesma, mero objeto na
luta das grandes potências, que
eram a Espanha e a França, não se
prestava ao programa político a
que o ostracizado de San Casciano
teria ambicionado servir, vale dizer, o fim da influência estrangeira
na península graças à ação de um
homem providencial, da têmpera
de um César Borgia ou de um Fernando o Católico, e de quem ele, o
secretário, seria o guru. Pois originalmente o maquiavelismo, ao
menos o maquiavelismo de Maquiavel, não deveria ser apenas o
instrumento para chegar ao poder, mas também para colocá-lo
ao dispor de um grand design.
A conclusão melancólica se impõe: caso tivesse sido chamado pelos Médici, sua obra não teria sido
escrita ou teria ficado pela metade,
sem que ele tivesse nem sequer o
consolo patriótico de ver a Itália
livre do estrangeiro. Seus livros só
serão publicados após sua morte; e
a unidade italiana levará mais de
300 anos para ser realizada. Ele seria certamente o primeiro surpreendido ao saber da própria
imortalidade e de que ela lhe viera
de onde menos a esperava, isto é,
dos escritos das suas noites estudiosas de San Casciano.
Como tantos homens de reflexão
tentados pela ação política, Maquiavel correu o risco desse acontecimento verdadeiramente trágico na existência de um indivíduo
de inteligência superior, a infidelidade à própria vocação, a qual imprime a tudo que faz o estigma da
inautenticidade. Ação e reflexão
são atividades que exigem, cada
uma separadamente, qualidades
que mutuamente se repelem. São
bem raros os que possuem ambas;
mesmo nesses casos, haverá que,
mais cedo ou mais tarde, melhor
mais cedo do que mais tarde, optar pelo exercício exclusivo de
uma delas sob pena de não se realizar nenhuma.
A biografia do secretário florentino é um caso-limite do fenômeno, que se repete todos os dias, do
homem de talento disposto a vender a alma ao diabo, vale dizer,
preparado para sacrificar a formulação das suas idéias, por mais inteligentes que lhe pareçam, à satisfação passageira de haver impingido ao príncipe de plantão ao menos uma parte delas. Na história
luso-brasileira, o exemplo do padre Antônio Vieira, eminência
parda de d. João 4º, a excogitar silogismos irrefutáveis para justificar a entrega do Nordeste aos holandeses. E, contudo, como era ele
encarado na corte do Bragança?
Da maneira pela qual todo homem
de reflexão é visto nos círculos políticos que frequenta, isto é, sob
desconfiança. Não é outro o sentido do que referiu seu contemporâneo, o conde da Ericeira. Após reconhecer que o jesuíta fora "o
maior pregador do seu tempo", o
historiador aduz a sentença condenatória: "Como o seu juízo era
superior e não igual aos negócios
(públicos), muitas vezes se lhe
desvaneceram por querer tratá-los
mais sutilmente do que os compreendiam os príncipes e ministros, com quem comunicou muitos de grande importância". Por
inteligência, não por delicadeza,
Vieira perdera sua vida pública.
Escusado assinalar que ele leu, e
não gostou, a afirmação de Ericeira, a quem dirigiu uma longa missiva, depoimento de grande importância para a história da restauração portuguesa, a que acrescentou, contudo, algumas lorotas
destinadas a deixá-lo bem perante
a posteridade.
Evaldo Cabral de Mello é historiador e diplomata aposentado. É autor, entre outros, de "Rubro Veio", "Olinda Restaurada" e "O Negócio do
Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste,
1641-1669" (Topbooks).
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