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Ponto de fuga
O sabiá no azul
"Elisabeth Schumann tem voz de manhã clara. Mistura de sabiá, luz matinal e seda. Extraordinária! Nunca
ouvi fusão mais hábil entre aquele timbre de sopro nítido, bem comum nas vozes femininas alemãs, com o tremolo apaixonado das vozes latinas. Ela dosa o tremer
da voz como a manhã dosa suas cores. Mas quando sinão quando a voz da moça entardece. É quando, nas peças mais lentas, ela se eleva, num som puríssimo todo
azul e de repente brilha e treme, estrela Vésper! As sombras se emaciam numa preguiça perfumada. Estrela
Vésper brilha, é linda, a noite inteira se abençoa numa
paz divina. Elisabeth Schumann, voz matinal, de calhandra, luz batendo no riacho de água límpida... Elisabeth Schumann crepusculando, tremulando, silenciando, Estrela Vésper... E depois digam se não é bom a gente adorar uma arte assim! Não porque sugere. Não estou fazendo poesia. Estou rezando oração. Elisabeth
Schumann não sugere os momentos felizes do dia, ela é
a própria felicidade nossa quando canta."
Lírico, arrebatado, Mário de Andrade saudava assim,
numa crítica de 1930, um recital dado em São Paulo pela
cantora alemã. O mesmo tom cabe para o CD que o selo
Naxos consagrou aos registros das canções de Schubert,
deixados por Elisabeth Schumann (1888-1952). As gravações foram feitas de 1927 a 1945: a voz é miraculosa e
quase não muda com o passar dos anos. São inflexões
entristecidas e pungentes, ascensões elegíacas, vibrações vivas e juvenis. Há uma fusão íntima com a música
de Schubert: o canto de Elisabeth Schumann se torna
como que a verdade dessas composições.
Discos - A coleção Naxos Historical reúne um grande
catálogo de gravações históricas realizadas há mais de
50 anos. Algumas foram feitas em estúdio, outras a partir de concertos ou óperas ao vivo. Apresentam mais do
que um interesse histórico e não satisfazem apenas o
erudito maníaco. Trazem, todas, a beleza de interpretações que foram guardadas nos velhos sulcos marcados
sobre a cera. Delas se irradia, além do esplendor próprio
que brilha entre os chiados, a poesia acrescida pelo passar do tempo, na comoção de ouvir esses artistas que
pertencem ao mesmo tempo à história e à lenda.
Perfumes - Elisabeth Schumann era uma intérprete
ideal de Richard Strauss. Foi a mais perfeita e luminosa
Sophie, em "O Cavaleiro da Rosa". O selo Naxos editou
também a versão "resumida" dessa ópera, que havia sido gravada em 1933, com a Orquestra Filarmônica de
Viena, dirigida por Robert Heger. Lotte Lehmann está
no papel da Marechala, Richard Mayr no de Ochs e Elisabeth Schumann, no de Sophie. Apesar dos cortes, é
uma referência absoluta. O disco completa-se com excertos ilustres de outros cantores daqueles tempos em
trechos da mesma obra. Entre eles, o dueto do segundo
ato, entre Octavian e Sophie, em italiano, por Conchita
Supervia e Ines Ferraris. Supervia fora o primeiro Octavian no Scala, sob a direção do próprio Strauss.
Poesia - A imensa glória que Lotte Lehmann obteve na
sua época era justificada, como demonstram as gravações que deixou. A Naxos, em 1999, lançou "O Cavaleiro
da Rosa" captado ao vivo, no Metropolitan Opera House, de Nova York, em 1933, em que Lehmann encarna a
Marechala. Risë Steven, com apenas 23 anos, era Octavian. A ópera atinge um tom sonhador, tocante e diáfano. Considerando-se a técnica do tempo, o som é bastante bom.
Divas - Lotte Lehmann, a mais esplêndida Marechala
da primeira metade do século 20, foi sucedida por Elisabeth Schwarzkopf depois da Segunda Guerra Mundial.
Ambas são insuperáveis no papel. Em Schwarzkopf há
menos abandono e carnalidade, mais aristocracia e
contenção. Nela, os artifícios revelam-se perceptíveis e
reforçam a máscara da grande dama. Sua resignação
não contém tanto desespero, mas pulsa, sensível e dolorosa. Schwarzkopf gravou a ópera em estúdio, para a
EMI Records, em 1957, já em estereofonia, ao lado de
Christa Ludwig, Teresa Stich-Randall e Otto Edelman,
sob a batuta de Karajan. É um monumento maior na
história do disco.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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