São Paulo, domingo, 28 de março de 2004

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Ponto de fuga

O sabiá no azul

"Elisabeth Schumann tem voz de manhã clara. Mistura de sabiá, luz matinal e seda. Extraordinária! Nunca ouvi fusão mais hábil entre aquele timbre de sopro nítido, bem comum nas vozes femininas alemãs, com o tremolo apaixonado das vozes latinas. Ela dosa o tremer da voz como a manhã dosa suas cores. Mas quando sinão quando a voz da moça entardece. É quando, nas peças mais lentas, ela se eleva, num som puríssimo todo azul e de repente brilha e treme, estrela Vésper! As sombras se emaciam numa preguiça perfumada. Estrela Vésper brilha, é linda, a noite inteira se abençoa numa paz divina. Elisabeth Schumann, voz matinal, de calhandra, luz batendo no riacho de água límpida... Elisabeth Schumann crepusculando, tremulando, silenciando, Estrela Vésper... E depois digam se não é bom a gente adorar uma arte assim! Não porque sugere. Não estou fazendo poesia. Estou rezando oração. Elisabeth Schumann não sugere os momentos felizes do dia, ela é a própria felicidade nossa quando canta."
Lírico, arrebatado, Mário de Andrade saudava assim, numa crítica de 1930, um recital dado em São Paulo pela cantora alemã. O mesmo tom cabe para o CD que o selo Naxos consagrou aos registros das canções de Schubert, deixados por Elisabeth Schumann (1888-1952). As gravações foram feitas de 1927 a 1945: a voz é miraculosa e quase não muda com o passar dos anos. São inflexões entristecidas e pungentes, ascensões elegíacas, vibrações vivas e juvenis. Há uma fusão íntima com a música de Schubert: o canto de Elisabeth Schumann se torna como que a verdade dessas composições.

Discos - A coleção Naxos Historical reúne um grande catálogo de gravações históricas realizadas há mais de 50 anos. Algumas foram feitas em estúdio, outras a partir de concertos ou óperas ao vivo. Apresentam mais do que um interesse histórico e não satisfazem apenas o erudito maníaco. Trazem, todas, a beleza de interpretações que foram guardadas nos velhos sulcos marcados sobre a cera. Delas se irradia, além do esplendor próprio que brilha entre os chiados, a poesia acrescida pelo passar do tempo, na comoção de ouvir esses artistas que pertencem ao mesmo tempo à história e à lenda.

Perfumes - Elisabeth Schumann era uma intérprete ideal de Richard Strauss. Foi a mais perfeita e luminosa Sophie, em "O Cavaleiro da Rosa". O selo Naxos editou também a versão "resumida" dessa ópera, que havia sido gravada em 1933, com a Orquestra Filarmônica de Viena, dirigida por Robert Heger. Lotte Lehmann está no papel da Marechala, Richard Mayr no de Ochs e Elisabeth Schumann, no de Sophie. Apesar dos cortes, é uma referência absoluta. O disco completa-se com excertos ilustres de outros cantores daqueles tempos em trechos da mesma obra. Entre eles, o dueto do segundo ato, entre Octavian e Sophie, em italiano, por Conchita Supervia e Ines Ferraris. Supervia fora o primeiro Octavian no Scala, sob a direção do próprio Strauss.

Poesia - A imensa glória que Lotte Lehmann obteve na sua época era justificada, como demonstram as gravações que deixou. A Naxos, em 1999, lançou "O Cavaleiro da Rosa" captado ao vivo, no Metropolitan Opera House, de Nova York, em 1933, em que Lehmann encarna a Marechala. Risë Steven, com apenas 23 anos, era Octavian. A ópera atinge um tom sonhador, tocante e diáfano. Considerando-se a técnica do tempo, o som é bastante bom.

Divas - Lotte Lehmann, a mais esplêndida Marechala da primeira metade do século 20, foi sucedida por Elisabeth Schwarzkopf depois da Segunda Guerra Mundial. Ambas são insuperáveis no papel. Em Schwarzkopf há menos abandono e carnalidade, mais aristocracia e contenção. Nela, os artifícios revelam-se perceptíveis e reforçam a máscara da grande dama. Sua resignação não contém tanto desespero, mas pulsa, sensível e dolorosa. Schwarzkopf gravou a ópera em estúdio, para a EMI Records, em 1957, já em estereofonia, ao lado de Christa Ludwig, Teresa Stich-Randall e Otto Edelman, sob a batuta de Karajan. É um monumento maior na história do disco.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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