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Ponto de Fuga
Homem nenhum é uma ilha
Scorsese se interroga sempre sobre a presença do mal no mundo; a frase-chave do filme é esta: "O que seria pior, viver como um monstro ou morrer como um homem bom?"
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Em 1954, sobre o mar, num
ferry, ao largo de Boston
[EUA]. A bruma tinge tudo de cinza. Nos porões, algemas pendem do teto. Solidão
de navio fantasma. Nele, um
homem vomita dentro da privada. É Leonardo DiCaprio, ex-herói romântico de um grande
naufrágio. Agora está desfeito,
desgracioso, torturado por enxaquecas; seu timbre agudo,
nasalado, sugere uma solidão
antiga.
O porto é ainda pior do que a
travessia: penhascos escuros e
esmagadores, reflexos lívidos,
edifícios sinistros. A ilha recolhe criminosos que são loucos,
ou loucos que são criminosos.
Eles vagueiam como assombrações, os rostos marcados
pela demência.
O comportamento dos enfermeiros e guardas da prisão-hospital é levemente descompassado, sugerindo cumplicidade para esconder alguma
coisa. Os diretores, psiquiatras
(formidáveis Ben Kingsley e
Max von Sydow), são ainda
mais suspeitos.
DiCaprio, na pele de Teddy
Daniels, agente federal, deve
investigar, na companhia de
seu parceiro Chuck Aule (Mark
Ruffalo), o caso de uma prisioneira em fuga.
Não é grave contar o início de
"Ilha do Medo" (excelente título para "Shutter Island", lembrando "Cabo do Medo", também de Scorsese). Mas deve
preservar-se o fim. Embora
mais importante do que a surpresa seja o clima constante de
estranhamento. O percurso interior do personagem suplanta
a descoberta final. Que, certamente, para espectadores com
argúcia de detetive, não será
nem mesmo uma.
Por quem os sinos dobram
Scorsese se interroga sempre
sobre a presença do mal no
mundo, suas faces, seus disfarces, suas tentações, suas estratégias de permeabilidade ou de
franca entrada.
Em "Ilha do Medo", toca em
sua natureza insondável. O rigor jansenista do cineasta aspira agora ao esquecimento ou,
mais ainda, à inconsciência. Esquecimento ou inconsciência
são humanas redenções. Chega
de ser torturado por um Deus,
de mistérios tão impenetráveis
que O deixaram surdo.
O filme é fiel ao livro [homônimo] de Dennis Lehane, tão
intenso, mas introduz algumas
alterações sutis. A mais importante está no final. Sobre ele,
Scorsese emprega, numa entrevista, a palavra "revelação", de
grande peso dentro das crenças
cristãs.
No livro de Lehane, a força
trágica reside na ausência de
escolha. Na concepção de Scorsese, diante do terrível que é revelado, a dor insuportável surge porque o crime vem carregado de culpa. A frase-chave é esta: "O que seria pior, viver como
um monstro ou morrer como
um homem bom?"
A ilha do dr. Scorsese
"Ilha do Medo" é um filme
alucinatório. Traumas, choques, memória individual e coletiva, o crime e o massacre, são
esses os grandes temas que adquirem forma cinematográfica.
Essa forma é feita, ela própria,
de memória.
Scorsese pertence à geração
de cineastas cinéfilos e fez os
atores de "Ilha do Medo" assistirem "Laura", de Otto Preminger (1944) e "Fuga do Passado",
de Jacques Tourneur (1947).
Mas paira também sobre ele,
muito nítida, a sombra de
Hitchcock, os espectros de Roger Corman (a massa de ratazanas no penhasco, por exemplo)
e tantas ilhas que o cinema
criou nos tempos do preto e
branco: a de King Kong (Cooper e Schoedsak), a do conde
Zaroff (idem), a dos mortos
(Mark Robson), a do dr. Moreau (Erle C. Kenton).
Ecos
"As primeiras notas que se
ouvem são as de uma sirene de
neblina. (...) O que atrai Teddy
nesse mundo? A sirene de neblina? O próprio mar? O barulho das gaivotas? Tudo é música." Scorsese, sobre "Ilha do Medo".
jorgecoli@uol.com.br
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