São Paulo, domingo, 28 de março de 2010

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Ponto de Fuga

Homem nenhum é uma ilha



Scorsese se interroga sempre sobre a presença do mal no mundo; a frase-chave do filme é esta: "O que seria pior, viver como um monstro ou morrer como um homem bom?"

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Em 1954, sobre o mar, num ferry, ao largo de Boston [EUA]. A bruma tinge tudo de cinza. Nos porões, algemas pendem do teto. Solidão de navio fantasma. Nele, um homem vomita dentro da privada. É Leonardo DiCaprio, ex-herói romântico de um grande naufrágio. Agora está desfeito, desgracioso, torturado por enxaquecas; seu timbre agudo, nasalado, sugere uma solidão antiga.
O porto é ainda pior do que a travessia: penhascos escuros e esmagadores, reflexos lívidos, edifícios sinistros. A ilha recolhe criminosos que são loucos, ou loucos que são criminosos. Eles vagueiam como assombrações, os rostos marcados pela demência.
O comportamento dos enfermeiros e guardas da prisão-hospital é levemente descompassado, sugerindo cumplicidade para esconder alguma coisa. Os diretores, psiquiatras (formidáveis Ben Kingsley e Max von Sydow), são ainda mais suspeitos.
DiCaprio, na pele de Teddy Daniels, agente federal, deve investigar, na companhia de seu parceiro Chuck Aule (Mark Ruffalo), o caso de uma prisioneira em fuga.
Não é grave contar o início de "Ilha do Medo" (excelente título para "Shutter Island", lembrando "Cabo do Medo", também de Scorsese). Mas deve preservar-se o fim. Embora mais importante do que a surpresa seja o clima constante de estranhamento. O percurso interior do personagem suplanta a descoberta final. Que, certamente, para espectadores com argúcia de detetive, não será nem mesmo uma.

Por quem os sinos dobram
Scorsese se interroga sempre sobre a presença do mal no mundo, suas faces, seus disfarces, suas tentações, suas estratégias de permeabilidade ou de franca entrada.
Em "Ilha do Medo", toca em sua natureza insondável. O rigor jansenista do cineasta aspira agora ao esquecimento ou, mais ainda, à inconsciência. Esquecimento ou inconsciência são humanas redenções. Chega de ser torturado por um Deus, de mistérios tão impenetráveis que O deixaram surdo.
O filme é fiel ao livro [homônimo] de Dennis Lehane, tão intenso, mas introduz algumas alterações sutis. A mais importante está no final. Sobre ele, Scorsese emprega, numa entrevista, a palavra "revelação", de grande peso dentro das crenças cristãs.
No livro de Lehane, a força trágica reside na ausência de escolha. Na concepção de Scorsese, diante do terrível que é revelado, a dor insuportável surge porque o crime vem carregado de culpa. A frase-chave é esta: "O que seria pior, viver como um monstro ou morrer como um homem bom?"

A ilha do dr. Scorsese
"Ilha do Medo" é um filme alucinatório. Traumas, choques, memória individual e coletiva, o crime e o massacre, são esses os grandes temas que adquirem forma cinematográfica. Essa forma é feita, ela própria, de memória.
Scorsese pertence à geração de cineastas cinéfilos e fez os atores de "Ilha do Medo" assistirem "Laura", de Otto Preminger (1944) e "Fuga do Passado", de Jacques Tourneur (1947).
Mas paira também sobre ele, muito nítida, a sombra de Hitchcock, os espectros de Roger Corman (a massa de ratazanas no penhasco, por exemplo) e tantas ilhas que o cinema criou nos tempos do preto e branco: a de King Kong (Cooper e Schoedsak), a do conde Zaroff (idem), a dos mortos (Mark Robson), a do dr. Moreau (Erle C. Kenton).

Ecos
"As primeiras notas que se ouvem são as de uma sirene de neblina. (...) O que atrai Teddy nesse mundo? A sirene de neblina? O próprio mar? O barulho das gaivotas? Tudo é música." Scorsese, sobre "Ilha do Medo".


jorgecoli@uol.com.br


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