São Paulo, domingo, 28 de março de 2010

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V de poesia

De naturezas opostas, mas seminais para a literatura francesa, Valéry e Verlaine têm coletâneas lançadas

LEONARDO FRÓES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em Paris, o jovem Paul Valéry (1871-1945) morava perto do café decadente, um "antro grotesco", segundo ele, onde o velho Paul Verlaine (1844-96) sentava-se às 11h da manhã para um primeiro absinto. Em torno de Verlaine, então no auge da glória, uma roda se abria.
Valéry o admirava, por suas "invenções musicais", mas nunca ousou abordá-lo.
Como narrou em "Passage de Verlaine" [Passagem de Verlaine], texto que consta de "Variété" [edição original em francês; na edição brasileira -"Variedades", ed. Iluminuras, trad. Maiza Martins de Siqueira-, não há esse texto, mas um outro intitulado "Villon e Verlaine"], uma "espécie de horror sagrado" manteve-o dia a dia à distância daquela roda ruidosa.
Não há poetas mais opostos, quer pela vida, quer pela tessitura das obras.
Verlaine, o descobridor de Rimbaud [1854-91, poeta francês], desregrou-se o quanto pôde, tratou seus versos como desenhos de sensações e criou cantares vagos de sonoridades possantes: "Música acima de qualquer cousa".
Valéry, o discípulo de Mallarmé [1842-98, simbolista francês], envolveu-se desde cedo com as construções do espírito, resolvido a "fazer de uma coisa desconhecida uma peça da máquina do pensamento".
Na poesia e na vida, quis o equilíbrio, a medida, a contenção, trabalhando com o "obstinado rigor" de Leonardo da Vinci, um de seus guias.

Voz de Verlaine
Dois livrinhos de peso, dois camafeus para catar entre livrões vazios, nos trazem ótimos exemplos da produção desses mestres.
As traduções de Verlaine por Guilherme de Almeida [escritor modernista], ora reeditadas como "A Voz dos Botequins e Outros Poemas", datam de 1944. Foi o ano do centenário de nascimento do poeta, que era então, desde muito, um dos mais traduzidos no Brasil.
No título original que deu à coletânea, "Paralelamente a Verlaine", Almeida, de certa forma, indicava o modo de composição que adotou, transpondo linha por linha com a mais sutil fidelidade.
"Quantas vezes, nas minhas noites boêmias,/ sentindo nossas almas irmãs gêmeas", afirma Guilherme de Almeida numa carta-prefácio dirigida a Verlaine. A irmandade na raiz foi tão forte que estabeleceu entre os dois uma fusão de vozes muito rara.
O poeta brasileiro, como seu modelo francês, é simples no vocabulário, rico nas rimas e versátil nos efeitos sonoros, qualidades que exibe a cada passo nas traduções enfocadas.
Por conta disso, o resultado são primores no português dessas almas, como se vê no poema-título da coletânea atual: "A voz dos botequins, a lama das sarjetas,/ Os plátanos largando no ar as folhas pretas,/ O ônibus, furacão de ferragens e lodo,/ Que entre as rodas se empina e desengonça todo...".
Como esse, os poemas traduzidos por Guilherme de Almeida estão entre os mais famosos que Verlaine escreveu. Em destaque, "Canção de Outono" e "Arte Poética", ambos orações veneradas por sucessivas gerações de poetas, dos antigos simbolistas aos que voltaram mais tarde, já em pleno modernismo, ao emprego da rima e das formas fixas.

Alfabeto de Valéry
"Dividido, como orar? Como orar quando um outro si mesmo escutaria a oração?" Paul Valéry, na letra C do seu cifrado "Alfabeto", faz a pergunta que o separa das orações em tropel.
Ele é metódico na dúvida.
Observa-se, decompõe-se nos seus possíveis, evita as impressões de certeza.
Porém, nos leva, ante o impasse de orar com o testemunho do ouvido, a uma aceitável solução de poeta: "É por isso que não se deve orar senão com palavras desconhecidas".
Encomendado por um editor em 1924, concluído em 1938 e somente publicado pela primeira vez em 1976, "Alfabeto" celebra o mais comum dos mistérios: a vivência do corpo na passagem de um dia.
Da letra A, em que sai do sono, à letra V, hora da noite em que sucumbe a um encontro carnal, "pelo contato do único com o único, na partilha e na troca, na busca do íntimo no íntimo", o corpo é fotografado com espanto nas suas operações de rotina: pôr-se de pé, comer, banhar-se, auscultar o silêncio ou ter ideias.
Na diluição do mistério que assim será obtida, o corpo acaba por tornar-se "um sonho agradável que o pensamento sonha vagamente". É bela aqui, como ao longo do livro, a tradução de Tomaz Tadeu.
Dois poetas tão opostos, em leitura simultânea, mostram que os rumos da poesia são tantos quanto os que a gama dos temperamentos dispõe. Poesia pede cortesia, não dissensão.
O jovem Valéry nunca falou com Verlaine, nunca sentou-se à sua mesa de bar. Mas não deixou de comparecer ao enterro do grande velho maldito.


LEONARDO FRÓES é poeta, tradutor e crítico.

A VOZ DOS BOTEQUINS E OUTROS POEMAS
Autor:
Paul Verlaine
Tradução: Guilherme de Almeida
Editora: Hedra (tel. 0/ xx/ 11/3097-8304)
Quanto: R$ 15 (106 págs.)

ALFABETO
Autor:
Paul Valéry
Organizador: Michel Jarrety
Tradução: Tomaz Tadeu
Editora: Autêntica (tel. 0/ xx/31/ 3222-6819)
Quanto: R$ 29 (160 págs.)


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