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V de poesia
De naturezas opostas,
mas seminais
para a
literatura francesa,
Valéry e
Verlaine têm
coletâneas
lançadas
LEONARDO FRÓES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em Paris, o jovem Paul
Valéry (1871-1945)
morava perto do café
decadente, um "antro
grotesco", segundo
ele, onde o velho Paul Verlaine
(1844-96) sentava-se às 11h da
manhã para um primeiro absinto. Em torno de Verlaine,
então no auge da glória, uma
roda se abria.
Valéry o admirava, por suas
"invenções musicais", mas
nunca ousou abordá-lo.
Como narrou em "Passage
de Verlaine" [Passagem de Verlaine], texto que consta de "Variété" [edição original em francês; na edição brasileira -"Variedades", ed. Iluminuras, trad.
Maiza Martins de Siqueira-,
não há esse texto, mas um outro intitulado "Villon e Verlaine"], uma "espécie de horror
sagrado" manteve-o dia a dia à
distância daquela roda ruidosa.
Não há poetas mais opostos,
quer pela vida, quer pela tessitura das obras.
Verlaine, o descobridor de
Rimbaud [1854-91, poeta francês], desregrou-se o quanto pôde, tratou seus versos como desenhos de sensações e criou
cantares vagos de sonoridades
possantes: "Música acima de
qualquer cousa".
Valéry, o discípulo de Mallarmé [1842-98, simbolista
francês], envolveu-se desde cedo com as construções do espírito, resolvido a "fazer de uma
coisa desconhecida uma peça
da máquina do pensamento".
Na poesia e na vida, quis o
equilíbrio, a medida, a contenção, trabalhando com o "obstinado rigor" de Leonardo da
Vinci, um de seus guias.
Voz de Verlaine
Dois livrinhos de peso, dois
camafeus para catar entre livrões vazios, nos trazem ótimos exemplos da produção
desses mestres.
As traduções de Verlaine por
Guilherme de Almeida [escritor modernista], ora reeditadas
como "A Voz dos Botequins e
Outros Poemas", datam de
1944. Foi o ano do centenário
de nascimento do poeta, que
era então, desde muito, um dos
mais traduzidos no Brasil.
No título original que deu à
coletânea, "Paralelamente a
Verlaine", Almeida, de certa
forma, indicava o modo de
composição que adotou, transpondo linha por linha com a
mais sutil fidelidade.
"Quantas vezes, nas minhas
noites boêmias,/ sentindo nossas almas irmãs gêmeas", afirma Guilherme de Almeida numa carta-prefácio dirigida a
Verlaine. A irmandade na raiz
foi tão forte que estabeleceu
entre os dois uma fusão de vozes muito rara.
O poeta brasileiro, como seu
modelo francês, é simples no
vocabulário, rico nas rimas e
versátil nos efeitos sonoros,
qualidades que exibe a cada
passo nas traduções enfocadas.
Por conta disso, o resultado
são primores no português dessas almas, como se vê no poema-título da coletânea atual: "A
voz dos botequins, a lama das
sarjetas,/ Os plátanos largando
no ar as folhas pretas,/ O ônibus, furacão de ferragens e lodo,/ Que entre as rodas se empina e desengonça todo...".
Como esse, os poemas traduzidos por Guilherme de Almeida estão entre os mais famosos
que Verlaine escreveu.
Em destaque, "Canção de
Outono" e "Arte Poética", ambos orações veneradas por sucessivas gerações de poetas,
dos antigos simbolistas aos que
voltaram mais tarde, já em pleno modernismo, ao emprego da
rima e das formas fixas.
Alfabeto de Valéry
"Dividido, como orar? Como
orar quando um outro si mesmo escutaria a oração?" Paul
Valéry, na letra C do seu cifrado
"Alfabeto", faz a pergunta que o
separa das orações em tropel.
Ele é metódico na dúvida.
Observa-se, decompõe-se nos
seus possíveis, evita as impressões de certeza.
Porém, nos leva, ante o impasse de orar com o testemunho do ouvido, a uma aceitável
solução de poeta: "É por isso
que não se deve orar senão com
palavras desconhecidas".
Encomendado por um editor
em 1924, concluído em 1938 e
somente publicado pela primeira vez em 1976, "Alfabeto"
celebra o mais comum dos mistérios: a vivência do corpo na
passagem de um dia.
Da letra A, em que sai do sono, à letra V, hora da noite em
que sucumbe a um encontro
carnal, "pelo contato do único
com o único, na partilha e na
troca, na busca do íntimo no íntimo", o corpo é fotografado
com espanto nas suas operações de rotina: pôr-se de pé, comer, banhar-se, auscultar o silêncio ou ter ideias.
Na diluição do mistério que
assim será obtida, o corpo acaba por tornar-se "um sonho
agradável que o pensamento
sonha vagamente". É bela aqui,
como ao longo do livro, a tradução de Tomaz Tadeu.
Dois poetas tão opostos, em
leitura simultânea, mostram
que os rumos da poesia são tantos quanto os que a gama dos
temperamentos dispõe. Poesia
pede cortesia, não dissensão.
O jovem Valéry nunca falou
com Verlaine, nunca sentou-se
à sua mesa de bar. Mas não deixou de comparecer ao enterro
do grande velho maldito.
LEONARDO FRÓES é poeta, tradutor e crítico.
A VOZ DOS BOTEQUINS E OUTROS POEMAS
Autor: Paul Verlaine
Tradução: Guilherme de Almeida
Editora: Hedra (tel. 0/ xx/ 11/3097-8304)
Quanto: R$ 15 (106 págs.)
ALFABETO
Autor: Paul Valéry
Organizador: Michel Jarrety
Tradução: Tomaz Tadeu
Editora: Autêntica (tel. 0/ xx/31/
3222-6819)
Quanto: R$ 29 (160 págs.)
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