São Paulo, Domingo, 28 de Março de 1999
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Crítico português tenta livrar Machado de Assis da dependência da análise crítica associada à questão da identidade brasileira
Instinto de universalidade

Marcelo Buianam/Folha Imagem
O crítico português Abel Barros Baptista, autor de "Autobibliografias" e "Em Nome do Apelo do Nome", ambos sobre Machado de Assis


ADRIANO SCHWARTZ
Editor-adjunto do Mais!

Não é sempre que um grande escritor tem a sorte de encontrar um grande crítico. Desse ponto de vista, Machado de Assis -que já fora afortunado em, ao contrário de tantos outros autores fundamentais, ter sua genialidade reconhecida em vida- não teria do que reclamar. Os seus mais importantes trabalhos, principalmente "Dom Casmurro", vem sendo, há mais de cem anos, estudados polêmica e apaixonadamente por um bom número de grandes críticos.
É a essa linhagem que vem se juntar agora o professor português Abel Barros Baptista, com as densas 600 páginas de um livro extraordinariamente bem escrito: "Autobibliografias - Solicitação do Livro na Ficção e na Ficção de Machado de Assis".
Em seu estudo, o autor parte da própria definição de livro e do estabelecimento do romance moderno, passando por discussões a respeito de obras de Cervantes, Rousseau, Laclos, Melville e Borges, bem como das idéias dos defensores do que denomina "o paradigma do pé atrás" (Helen Caldwell, Silviano Santiago, John Gledson e Roberto Schwarz), para analisar os cinco romances finais de Machado de Assis, particularmente "Dom Casmurro". Nesse percurso, privilegia os momentos em que o livro discute a si mesmo, ou, para empregar a terminologia por ele utilizada, em que o livro "solicita" o livro.
Barros Baptista, 44, é professor de literatura brasileira e teoria literária da Universidade Nova de Lisboa e diretor-adjunto da revista portuguesa "Colóquio-Letras", editada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Tomou contato com a obra de Machado de Assis por acaso, quando tinha cerca de 20 anos e era estudante de economia na cidade do Porto, onde conhecia uma pessoa que morava na rua Brás Cubas: "Um dia, ao passar numa livraria, vi um livro chamado "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Pensei que era o mesmo e o comprei. Não era o mesmo. A partir daí começou meu interesse por Machado. Fui lendo todo o resto da obra e, depois, quando me mudei para um curso de letras, cheguei à literatura brasileira".
Sobre Machado de Assis, escreveu também o livro "Em Nome do Apelo do Nome" (Litoral Edições, 1991), em que analisa o famoso ensaio "Instinto de Nacionalidade" e o romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas".
Na entrevista a seguir, feita por telefone, ele explica por que discorda da mais importante linha analítica do romance machadiano e expõe as principais idéias de "Autobibliografias".

Folha - No final de "Autobibliografias", o sr. fala que a "tradição crítica o têm mantido (Machado de Assis) agrilhoado num trânsito mesquinho". Eu gostaria que o sr. comentasse suas principais restrições a essa "tradição crítica".
Abel Barros Baptista -
Falando para o Brasil é preciso matizar um pouco a questão. Em primeiro lugar, há em Portugal, nos estudos de literatura brasileira, uma dependência excessiva em relação às expectativas próprias da historiografia e da crítica brasileiras. Com relação a Machado, talvez devido a minha experiência, sempre tive uma tendência a encontrar uma posição que não fosse estritamente brasileira, que não estivesse dependente dos mesmos problemas que a crítica brasileira têm.
Comecei a tratar desse assunto em "Em Nome do Apelo do Nome". Pareceu-me sempre que Machado constituiu um problema na literatura brasileira, no processo da sua formação -uma literatura que, por circunstâncias e devido às condições históricas em que surgiu, viveu obcecada durante muito tempo pela questão de sua nacionalidade, de sua identidade.
Um escritor chamado Machado de Assis era, de certa forma, uma grande perturbação relativamente a isso. Sendo, ao mesmo tempo, um grande escritor, o maior, e um escritor aparentemente indiferente aos problemas da nacionalidade, surgiu a questão que definiu aquilo que eu chamo a "tradição crítica machadiana".
Não nego que haja na obra de Machado referências a um contexto histórico que é brasileiro, que é o do tempo dele, de seu lugar. Mas, como crítico português, tenho outro tipo de indagação, principalmente o de saber o que ele pode dizer a mim, que sou europeu no final do século 20, além de um outro tipo de problema, que é mais teórico, crítico, de saber como uma obra daquelas, estando ligada àquele contexto, sobrevive para além dele. Esse é um primeiro aspecto, que me separa das perspectivas de Roberto Schwarz, John Gledson e Silviano Santiago.
Além disso, me parece que, em relação a "Dom Casmurro", a crítica tendeu a assumir, sobretudo depois do livro da Helen Caldwell ("The Brazilian Othello of Machado de Assis"), e é o que eu chamei "o paradigma do pé atrás", um mesmo raciocínio que Dom Casmurro faz em relação a Capitu, que é um raciocínio de suspeita: ele considera que Capitu o atraiçoou, e o que a crítica tem feito é suspeitar de Dom Casmurro. Roberto Schwarz radicaliza essa suspeita em relação a Brás Cubas, com a idéia que é um narrador que está exposto e que o que Machado faz é levar o leitor a desconfiar desse narrador para chegar ao verdadeiro Machado.
Eu tentei encontrar uma leitura que o libertasse dessa suspeita e ajudasse a perceber a relação entre Dom Casmurro e Capitu em outros termos, que não tivesse como ponto de partida a idéia que Dom Casmurro quer me enganar, me levar a conclusões que não seriam as minhas se eu tivesse um acesso direto à matéria. Esse esforço de discussão das teses dessa tradição crítica é um esforço movido por respeito, mas que é essencial para eu criar o meu próprio espaço, a possibilidade de um terreno e de uma voz próprios, e creio que o que pode passar como minha contribuição está na questão da tragédia, que é aliás um ponto que me deixa um pouco insatisfeito.
Folha - A questão é tratada no no livro de modo um pouco sumário.
Barros Baptista -
Sim, e ela é muito importante. É aí que reside um dos grandes problemas da interpretação do livro e uma das grandes originalidades de Machado: tratar do problema da possibilidade da tragédia por meio do "drama" de Dom Casmurro. O caso do Dom Casmurro não é tanto uma questão de suspeita, não é tanto provarmos que Capitu o atraiçoou, pois para ele isso é uma evidência, o problema é mais saber se, tendo Capitu o atraiçoado, ele viveu ou não viveu uma tragédia.
A grande originalidade de Machado, o que eu considero o aspecto mais radical do livro, é pôr a personagem com esse problema e não haver ninguém que diga: "Tu viveste uma tragédia". Porque no "Otelo", de Shakespeare, há alguém que dê essa garantia; no Édipo, há alguém que garanta que ele é filho da Jocasta. No "Dom Casmurro", entretanto, não há ninguém para garantir nada. Não é só o romance que é ambíguo, o próprio personagem como herói trágico não tem ninguém que o diga se ele foi enganado pelo destino ou se ele foi enganado pelo ciúme. E essa ambiguidade, que no fundo é entre a grande tragédia da ironia do destino ou o ridículo de uma condição humana comum a todos nós, essa ambiguidade não tem solução dentro do romance, porque não tem solução no nosso tempo.
Enfim, esse é um lado que gostaria de explorar mais tarde. Creio que já está mais ou menos abordado ali, mas não estou ainda satisfeito. São essas as razões de meu empenho em discutir o que a crítica fez antes, bem como das diferenças que tenho em relação a ela.
Folha - Na resenha escrita sobre seu livro (leia na pág. 5-7), John Gledson questiona se a sua crítica à noção de intenção não acabaria por anular a própria idéia de ironia. Até que ponto a intenção do autor deve ser levada em conta?
Barros Baptista -
Gledson tem uma certa razão, embora me pareça que isso implique uma apreciação não muito precisa daquilo que tento dizer. Não nego que haja uma intenção. Uma obra literária é uma obra intencional, seria um absurdo querer ler um livro sem ter uma noção de intenção, pois é aquilo que nos guia, é uma necessidade da própria idéia de leitura.
A minha divergência em relação a Gledson é que ele é um intencionalista. Ele acredita primeiro que é possível descobrir a intenção do autor e, segundo, que, uma vez descoberta a intenção do autor, descobriu-se o verdadeiro sentido do livro. Acho que a intenção do autor existe, não pode ser negada, até certo ponto tem que ser procurada, mas nós não temos meio de acesso viável a ela, porque não há uma atualidade da intenção do autor que nos garanta um acesso àquilo que ele realmente quis.
No caso do Machado, o livro está construído de uma forma a exatamente colocar esse problema, de dizer para o leitor "tens aqui um problema da minha intenção, mas ao mesmo tempo tens um processo de construção que te impede o julgamento a partir da minha intenção; é um problema teu, por um lado, procurar a minha intenção e, por outro, não ter meio de adquiri-la". Isso pode, inicialmente, parecer aporético, mas na verdade é a partir dai que nós lemos. Tentar resolver esta aporia é o que nos faz ler "Dom Casmurro" com a paixão que se lê em 1999. Minha divergência com Gledson é a respeito da possibilidade de procurar a intenção. E isso é um jogo irônico.
Folha - Como isso se dá em "Dom Casmurro"?
Barros Baptista -
O problema se reproduz com Dom Casmurro. Não creio que se possa dizer com toda a tranquilidade que sabemos qual é a sua intenção quando começa a escrever o romance. A verdade é que ele começa a escrever o livro dizendo que quer passar o tempo, e acho que não há razão nenhuma para querer desconfiar disso. O indiscutível é que, a partir de certa altura, o livro que ele está escrevendo adquire uma importância que não tinha no princípio.
Se ele escondeu isso no princípio ou se essa importância só surgiu mais tarde, é algo que nós nunca poderemos saber, mas é indiscutivelmente um fato com que temos que lidar: saber como algo de diferente surge e faz com que um livro dito para passar o tempo, quebrar a monotonia, se torne tão importante para o próprio autor.
Nesse aspecto, a experiência do próprio Bento Santiago a escrever ajuda-nos a perceber o que se passa com a intenção do autor, que há um momento em que ela necessariamente se perde, em que ela se afasta, e esse momento é necessário para que o livro possa subsistir como um livro autônomo, como um livro próprio.
Folha - O sr. considera que um dos pontos fundamentais na construção desse livro é a importância do capítulo. Por quê?
Barros Baptista -
O protagonismo do capítulo é uma idéia que busquei em Haroldo de Campos, num ensaio que não é nem inteiramente dedicado a Machado, no qual ele até faz um jogo de palavras, dizendo que o personagem principal de "Dom Casmurro" não é Capitu, é o capítulo.
Uma das grandes descobertas de Machado de Assis é essa invenção, é a forma com que ele usa o capítulo curto. Nós podemos dizer que o humor está em (Laurence) Sterne, ou que em parte vem de Cervantes, ou que o estilo coloquial é retirado das "Viagens da Minha Terra", mas esse uso do capítulo curto, pequeno, de 10, 15 linhas, a possibilidade de fazer um capítulo que não tem nada, ou só tem título, ou de fazer um capítulo só dizendo "acabo de fazer um capítulo inútil", isso é genuinamente machadiano, e é um traço que se mantém em toda a obra de Machado.
Ora, sendo toda essa obra, a chamada fase da maturidade, uma obra de livros em que as pessoas estão a construir livros, um capítulo protagonista é aquele que põe em causa a cada momento duas idéias fundamentais na idéia de livro: a idéia de linearidade, sucessão dos capítulos, e a idéia de linearidade em função do todo, da construção de um todo.
O protagonismo do capítulo em Machado impõe essa tensão de um livro que é a totalidade de seus capítulos e cada um dos capítulos isolados que interrompe essa linearidade, pondo em causa o lugar dele no todo, isto é, um capítulo que parece uma carta fora do baralho. E esse processo do capítulo curto, de transições bruscas, de interrupção da narração, de inclusão de um capítulo só com um ligeiro comentário exacerba e sublinha a existência de muitas cartas fora do baralho. De tal maneira que, no final, é muito difícil saber o que esses capítulos estão a fazer ali. São aquilo que se denomina os "capítulos extravagantes", capítulos dizendo "vou suprimir o anterior porque acho que escrevi um despropósito", ou "não contarei o caso nessa página" etc.

Acho que isso sublinha o lado que não é propriamente fragmentário -porque existe sempre a noção de totalidade-, mas sublinha o lado da interrupção. Trata-se de uma construção que se está a fazer passo a passo: interrompendo o processo da construção e olhando para o que está sendo feito. Só que, em Machado, a forma como ele olha para o que está sendo feito nunca é transparente em relação ao que está a fazer, é sempre oblíqua, e isso dá ao capítulo uma dimensão de protagonismo na leitura que é única, pelo menos na língua portuguesa.
Folha - E a "errata pensante"?
Barros Baptista -
A "errata pensante" aparece nas "Memórias Póstumas de Brás Cubas", na passagem em que Machado diz "não é um caniço pensante, é uma errata pensante...". Eu tentei usar essa metáfora, partindo da idéia da errata tipográfica, aquela folha que se acrescentava no final dos livros, indicando as gralhas, os erros que a obra tinha já depois de ser editada, e que é uma folha que tem uma função muito perversa, pois, ao mesmo tempo em que corrige, chama a atenção para a existência dos erros. Quem tenha lido um livro sem perceber aqueles erros chega ao fim, encontra a errata e é obrigado a ir procurá-los.
Esse processo de construção que o Machado usa por meio do protagonismo do capítulo baseia-se muito no modelo da "errata pensante". Em todos os cinco grandes romances, há momentos em que surgem capítulos que vêm de alguma forma corrigir o que está para trás e, ao fazê-lo, não só assinalam um erro do qual nós não nos tínhamos apercebido, como criam novos problemas ao leitor, chegando ao ponto em que não se sabe se o erro é o que está para trás ou se o erro é a própria errata.
Dou dois exemplos: um é esse, no Brás Cubas, o capítulo que diz, "talvez suprima o capítulo anterior... não quero dar pasto a crítica do futuro". Como ele se refere ao capítulo anterior como sendo o anterior, e não o 35, 57 ou 69, nunca se pode saber se o anterior foi efetivamente suprimido ou não, porque haverá sempre um capítulo anterior. Outro exemplo, e esse é muito mais importante, de fato é o paradigma da "errata pensante", é o capítulo que Dom Casmurro chama "A Saída", no qual ele diz: "Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego quase ao fim do papel com o melhor da narração por dizer".
Esse capítulo funciona claramente como uma errata, porque é o momento que marca o aparecimento de um projeto de livro diferente daquele que Dom Casmurro tinha dito. Ele dissera que pretendia passar o tempo, portanto ia pôr no papel as reminiscências à medida que viessem vindo. Quando chega ao meio, ele diz "aqui devia ser o meio", ou seja, há um princípio e há um fim. Então percebe que tem o melhor da história por contar, quer dizer: ele está escrevendo para contar uma história.
Ora, isso tem para trás um efeito de correção -tudo que está para trás precisa ser corrigido- e essa parte passa a valer como um novo livro. Mas, na medida em que ele não pode eliminar o que está para trás, e o que está para trás continua a colocar problemas, a "errata pensante" é uma forma de corrigir enunciando a lei que permite a correção. Ele está enunciando ao mesmo tempo a regra segundo a qual o que está para trás deve ser corrigido, o que cria legitimamente o problema de saber se essa regra existiu sempre ou se essa regra só está a ser enunciada no próprio momento em que surge a errata.
É aí que aparecem os problemas todos, porque, na verdade, como sabem os tipógrafos, o grande problema das erratas é que, por sua vez, podem precisar de outras erratas, uma errata pode ter novos erros. A figura da "errata pensante" cria um livro com capítulos curtos, com processos de interrupção acentuados, com capítulos que ferem claramente o livro que está sendo construído, mas sem que exista um capítulo em que nós possamos surpreender a lei que governa o todo e dizer "é aqui que ele diz o que está fazendo". Tanto pode ser aqui, como pode ser ali. O processo da errata torna-se infinito. E, no caso do "Dom Casmurro", é absolutamente visível.
Se nós formos seguir a errata, há uma parte substancial do livro que tem que ser expurgada. Se o essencial do livro é a história dele com a Capitu, então metade do livro tem que ser posta para fora. Se o essencial não é a história com a Capitu, então há uma série de coisas sobre a história com a Capitu que tem ser posta para fora, como, por exemplo, quando ele diz "aqui começou a minha vida, aqui ia começar a minha obra".
Nós não conseguimos, com base naquela errata, reunir o conjunto dos capítulos num todo coerente e harmonioso de acordo com uma única lei. Há uma regra, mas essa regra não é válida para todo o livro. Terá que haver uma errata que, por sua vez, venha corrigir essa regra e iremos encontrar erratas atrás e erratas à frente. É isso que faz o caráter pensante dessa errata. Ela solicita novas erratas que fazem pensar, que solicita novas erratas que fazem pensar, sem que o livro nunca se feche numa única regra e numa única errata de sentido.
Folha - Por que, passados cem anos de sua publicação, "Dom Casmurro" ainda provoca tanta polêmica?
Barros Baptista -
A grande proeza de Machado foi reunir toda a tradição do romance do adultério e assimilar essa tradição ao motivo da tragédia e ao motivo sobretudo da tragédia do ciúme. E, ao assimilar isso à tragédia e ao ciúme, associar isso a uma questão que é básica em nossa sociedade, a da felicidade, do direito à felicidade. Creio que uma das razões que motiva tal fato está, aliás, em um dos capítulos de "Dom Casmurro", chamado "Uma Reforma Gramática". Ele diz que há qualquer coisa a se corrigir nesse gênero. As tragédias deviam começar pelo fim. Por exemplo, "Otelo mataria a si e a Desdêmona no primeiro ato, os três seguintes seriam dados à ação lenta e decrescente do ciúme..." até a vitória do amor, indo o espectador para casa com uma impressão doce e feliz. Essa impressão doce e feliz, ou a necessidade, a procura, de uma impressão doce e feliz, é uma das razões que provoca tanta paixão em volta dessa questão.
De fato, o problema que o livro nos põe nesses termos é saber se realmente o Bentinho foi ou não foi vítima de um destino muito irônico: é certo que ele era ciumento, mas também é certo que ele nunca teve ciúmes justamente daquele de quem ele vem a desconfiar depois de morto, Escobar, e também é Escobar que serve como agente para o tirar do seminário e o entregar a Capitu. Escobar parecia ser um agente da felicidade e, no final, segundo o Dom Casmurro, tornou-se o principal agente da infelicidade. Saber se ele foi ou não foi vítima de uma ironia terrível do destino é uma coisa que afeta qualquer pessoa, desde o crítico literário mais sofisticado até o leitor mais ingênuo, pois é um exemplo dramático, vivo, do que pode ser a busca da felicidade e do fraudar dessa busca da felicidade.
A verdade é que nós assistimos em dois terços do livro à marcha gloriosa, encantadora, de um amor que, obstaculizado entre dois adolescentes, parecia ir direto no sentido da felicidade. No último terço do livro é a marcha para a derrocada, para a destruição que surge. Saber quem foi responsável por essa destruição é um problema básico, essencial, para qualquer leitor. Por isso não me admira que o livro provoque tanta paixão. É comparável, mal comparando, por exemplo, à morte da princesa Diana. É um problema supostamente universal. Toda a gente sente que tem direito à felicidade, toda a gente sente que vai voltar para a felicidade, mas toda a gente sabe que a felicidade é qualquer coisa de muito difícil, e o destino, qualquer coisa de muito traiçoeiro.
O cerne do livro para os críticos literários, a meu ver, reside no encontro com a tragédia, mas, para qualquer leitor comum, o cerne do livro é colocado, numa forma tão visível e, simultaneamente, tão amarga, no problema da felicidade e da busca da felicidade nesta vida.


Onde encomendar:
"Autobibliografias - Solicitação do Livro na Ficção de Machado de Assis" (Lisboa, Relógio d'Água, 605 págs., 1998), de Abel Barros Baptista, pode ser encomendado na Livraria Portugal (r. Genebra, 165, tel. 011/ 3104-1748, SP).




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